Atire a primeira pedra quem nunca se deparou com um famigerado “Zé Cruzadinha” pela Internet. Essa figura, inevitavelmente caricata, costuma alardear frases do tipo “as cruzadas salvaram a Europa do Islã”, “caso não fosse pelas cruzadas, hoje seu nome seria Muhammad” e coisas do gênero, isso quando não propõem cruzadas modernas para lidarem com a crise migratória, afinal de contas a Europa está novamente sendo invadida pelos muçulmanos inimigos da civilização e a única forma de lidar com um imigrante faminto só com a roupa do corpo é justamente pelo fio da espada.
Apesar da imagem folclórica que essa figura evoca nos dias de hoje, o “zé cruzadismo” encontra representantes em cargos relevantes no governo da maior potência global, como é o caso de Pete Hegseth, secretário de defesa dos EUA. Hegseth tem nada mais nada menos do que uma tatuagem clamando “Deus Vult”, uma cruz templária e a palavra “kafir” em grafia árabe, que significa “descrente”, “infiel”. Isso para não mencionarmos o avistamento recente de um veículo militar americano na Síria com “kafir” escrito e uma cruz ao lado.
Curiosamente, o termo “kafir” não é utilizado para designar cristãos e judeus, que se encaixam na definição de Povo do Livro (ahl al-Kitab). O Alcorão distingue entre os chamados ‘mushrikun’ – isto é, aqueles que praticam ‘shirk’, idolatria – e o Povo do Livro, reservando o primeiro termo para adoradores de ídolos. Nesse sentido, o ódio irracional de Hegseth que se manifestou numa “lacrada” permanente no próprio corpo nada mais faz do que atestar sua própria ignorância e o aproxima de religiões que o próprio cristianismo combateu, se afastando da tradição abraâmica que ele (supostamente) deveria zelar.
Além disso, quem nunca viu esses mesmos grupos celebrando o gesto de São Bonifácio ao cortar o Carvalho de Thor, simbolizando a vitória cristã sobre o paganismo? Bem, ao se intitular como “kafir”, Hegseth está mais próximo – dentro da terminologia islâmica, pelo menos – dos pagãos germânicos do que do santo de sua própria igreja que os combateu [1].
De qualquer forma, apesar das idiossincrasias e delírios de certos sujeitos, será mesmo que as cruzadas salvaram o Ocidente de algo? Já temos artigos abordando esse tema detalhadamente em nosso site [2], então nessa nova publicação focaremos em postar os resultados e motivos de diversas expedições que levaram o nome de “cruzadas”.
Para uma análise mais detalhada do caráter salvífico de certas batalhas, retemos o leitor ao artigo mencionado. Abaixo listamos praticamente todas as cruzadas, ofensivas ou defensivas e com seus desdobramentos, incluindo também as ocorridas na Península Ibérica e as contra os Otomanos, bem como as separamos por cruzadas “oficiais” (possuidoras de bulas papais) e as cruzadas “independentes”, isto é, sem bulas papais chanceladoras.
Normalmente o foco costuma ser para as cruzadas com o objetivo de retomar Jerusalém e Constantinopla, mas aqui decidimos abranger outros conflitos militares (por vezes até bem distante da Terra Santa) e que nem sempre são lembrados.
Cruzadas na Terra Santa e Oriente Próximo
Chanceladas por Bulas Papais
⚔️ Primeira Cruzada (1095-1099)
📚 Motivo: Convocada pelo Papa Urbano II para ajudar o Império Bizantino e libertar Jerusalém.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️ (Uma das duas únicas vitórias militares decisivas na Terra Santa).
⚔️ Segunda Cruzada (1147-1150)
📚 Motivo: Lançada em resposta à queda de Edessa para os muçulmanos.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️.
⚔️ Terceira Cruzada (1189-1192)
📚 Motivo: Resposta à perda de Jerusalém para Saladino.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (o objetivo principal de retomar Jerusalém falhou, terminando em um acordo de retirada).
⚔️ Quarta Cruzada (1202-1204)
📚 Motivo: Originalmente atacar o Egito para reconquistar Jerusalém.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (desviada para saquear Constantinopla, uma cidade cristã, enfraquecendo fatalmente a cristandade oriental).
⚔️ Quinta Cruzada (1217-1221)
📚 Motivo: Tentativa de conquistar o Egito para usar como base para retomar Jerusalém.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️.
⚔️ Sexta Cruzada (1228-1229)
📚 Motivo: Expedição do Imperador Frederico II para recuperar a Terra Santa.
🟰 Resultado: Fracasso militar cristão; Jerusalém foi obtida por concessão diplomática, não por conquista militar.
⚔️ Sétima Cruzada (1248-1254)
📚 Motivo: Liderada pelo Rei Luís IX da França contra o Egito.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (resultou na captura do rei francês e no pagamento de um resgate humilhante).
⚔️ Oitava Cruzada (1270)
📚 Motivo: Nova expedição de Luís IX, desta vez contra Túnis.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (o exército foi destruído por doenças antes mesmo de qualquer batalha significativa).
⚔️ Nona Cruzada (Cruzada do Lorde Eduardo, 1271-1272)
📚 Motivo: Tentativa de reverter as perdas na Terra Santa.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (resultou em uma trégua que não impediu o avanço mameluco e a queda final de Acre).
Uma pintura representando a rendição do governante latino Guy de Lusignan a Saladino, o sultão do Egito e da Síria (r. 1174-1193 d.C.), após a batalha de Hattin em 1187 d.C.
Expedições militares que receberam o nome de cruzadas, mas que não possuíam bulas papais
⚔️ Cruzada de 1101 (1101-1102)
📚 Motivo: Reforçar os recém-criados estados cruzados.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️.
⚔️ Cruzada Veneziana (1122-1124)
📚 Motivo: Expedição naval de Veneza para apoiar o Reino de Jerusalém.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️ (A segunda e última vitória militar significativa na Terra Santa).
⚔️ Cruzada de 1129 (Cruzada de Damasco)
📚 Motivo: Tentativa de capturar a estratégica cidade de Damasco.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️.
⚔️ Invasões Cruzadas do Egito (1154-1169)
📚 Motivo: Ataques do Reino de Jerusalém para explorar a fraqueza do Califado Fatímida.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (acelerou a ascensão de Saladino e a unificação das forças muçulmanas).
⚔️ Cruzada dos Barões (1239-1241)
📚 Motivo: Expedição para recapturar territórios na Terra Santa.
🟰 Resultado: Sucesso diplomático limitado, não uma vitória militar decisiva.
⚔️ Cerco de Acre (1291)
📚 Motivo: Defesa do último grande bastião cruzado na Terra Santa.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (marcou o fim definitivo dos Estados Cruzados no Levante).
Uma pintura do século XIX representando os Cavaleiros Hospitalários defendendo Acre durante o cerco do Sultanato Mameluco em 1291.
Cruzadas Ibéricas e Reconquista
⚔️ Cruzada de Mallorca (1113-1115)
📚 Motivo: Uma expedição liderada pela República de Pisa contra os domínios muçulmanos nas Ilhas Baleares.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️.
⚔️ Guerra de Granada (1482-1491)
📚 Motivo: Campanhas de Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão para conquistar o Emirado de Granada.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️.
⚔️ Cruzada Espanhola no Norte da África (1499-1510)
📚 Motivo: Após o fim do domínio muçulmano na Hispânia, uma série de cidades foram recapturadas no Norte da África.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️
Rendição de Granada, por Francisco Pradilla.
Cruzadas contra o Império Otomano
Expedições com Bula Papal
⚔️ Cruzada de Esmirna (1344)
📚 Motivo: Proclamada pelo Papa Clemente VI para conter o poder naval turco.
🟰 Resultado: Sucesso parcial cristão ✝️ (captura do porto, mas não da cidade, com pouco efeito estratégico).
⚔️ Cruzada da Santa Liga (Batalha de Lepanto, 1571)
📚 Motivo: Formação de uma coalizão papal para destruir a frota otomana.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️, porém com impacto limitado, pois os otomanos se recuperaram e expandiram em apenas dois anos.
⚔️ Cruzada de Nicópolis (1396)
📚 Motivo: Grande campanha para deter a expansão otomana nos Bálcãs.
🟰 Resultado: Vitória otomana ☪️ (derrota esmagadora que consolidou o domínio turco na região).
⚔️ Cruzada de Varna (1443-1444)
📚 Motivo: Convocada pelo Papa Eugênio IV para expulsar os otomanos da Europa.
🟰 Resultado: Vitória otomana ☪️ (a expansão na Europa continuou sem oposição significativa).
⚔️ Cruzada de São João de Capistrano (Cerco de Belgrado, 1456)
📚 Motivo: Resposta à ameaça otomana sobre a Hungria.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️ (um raro sucesso defensivo que adiou a conquista otomana da Hungria).
Rei Ladislau III da Polônia na Batalha de Varna, por Jan Matejko
Expedições sem Bula Papal
⚔️ Cruzada de Mádia (1390)
📚 Motivo: Expedição contra piratas da Barbária.
🟰 Resultado: Vitória muçulmana ☪️ (o cerco foi abandonado após o pagamento de tributo).
⚔️ Cerco de Rodes (1480)
📚 Motivo: Primeira tentativa otomana de capturar a ilha dos Cavaleiros Hospitalários.
🟰 Resultado: Vitória cristã ✝️ (defesa bem-sucedida, mas temporária).
⚔️ Cerco de Rodes (1522)
📚 Motivo: Segunda e bem-sucedida tentativa otomana de capturar a ilha.
🟰 Resultado: Vitória otomana ☪️ (expulsão definitiva dos Cavaleiros de Rodes).
⚔️ Cruzada Espanhola a Mádia (1550)
📚 Motivo: Expedição naval espanhola para capturar o reduto otomano de Mádia.
🟰 Resultado: Vitória otomana ☪️ (a cidade foi capturada, mas abandonada três anos depois).
⚔️ Cruzada do Rei Sebastião de Portugal (Batalha de Alcácer-Quibir, 1578)
📚 Motivo: Tentativa portuguesa de conquistar Marrocos.
🟰 Resultado: Vitória marroquino-otomana ☪️ (desastre que levou à morte do rei e à perda da independência de Portugal, bem como ao surgimento do sebastianismo).
Cena da Batalha de Alcácer Quibir, pintura romântica, c. século XIX
Caso fôssemos fazer um “placar” de absolutamente todas as cruzadas elencadas nesse texto (28) apenas a título de curiosidade, tratando como fracassada uma expedição que não tenha resultado em uma vitória militar clara e decisiva, mas sim em uma retirada, trégua ou concessão diplomática, ficamos com um resultado de 20 vitórias para o lado muçulmano e 8 vitórias para o lado cristão.
No fim, os muçulmanos mantiveram Jerusalém, tomaram um quarto da Europa, e o Império Otomano se expandiu após Lepanto (1571), que embora não esteja na lista de cruzadas para a Terra Santa, é uma batalha icônica no discurso entre certos círculos cruzadistas. Pelo o que podemos ver, as campanhas que realmente obtiveram o sucesso alardeado foram no período da Reconquista, mas não nas tentativas de conquistar Jerusalém ou de proteger/retomar Constantinopla – que inclusive foi saqueada pelos exércitos cristãos –, que é o que se compreende como cruzadas nesses círculos anti-islâmicos.
Notas
[1] Não entraremos no mérito dos possíveis significados que os termos “paganismo”, “pagão” e “ídolos” podem tomar, nem mesmo no fato de que os próprios ditos pagãos não acreditavam que a árvore (ou qualquer outro “ídolo”) fosse um de seus deuses.
[2] Link para o artigo: <<https://historiaislamica.com.br/as-cruzadas-salvaram-a-europa-de-se-tornar-muculmana/>>
Referências
MURRAY, Alan V. The Crusades: An Encyclopedia. ABC-CLIO, 2006.
LOCK, Peter. The Routledge Companion to the Crusades. Routledge, 2006.
HOUSLEY, Norman. The Later Crusades, 1274-1580: From Lyons to Alcazar. Oxford University Press, 1992.