A Torá como instrumento de legitimação do genocídio: a retórica bíblica em Gaza

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O uso de narrativas bíblicas para justificar ações militares contemporâneas representa um fenômeno complexo e perturbador no cenário geopolítico atual. Philip Jenkins, historiador e estudioso de religião, argumenta em seu livro “Laying Down the Sword: Why We Can’t Ignore the Bible’s Violent Verses” que textos sagrados frequentemente contêm passagens violentas que podem ser manipuladas para legitimar atrocidades modernas. No contexto da guerra de Israel contra a Palestina, observamos um padrão alarmante de apropriação de textos bíblicos violentos para justificar operações militares que resultam em dezenas de milhares de vítimas (podendo escalar para centenas de milhares a qualquer instante), enquanto simultaneamente o Ocidente mantém uma narrativa que associa predominantemente a violência religiosa exclusivamente ao Islã. Terrorismo e violência religiosa se tornaram sinônimos da religião islâmica, mas a realidade denuncia o exato oposto.

A utilização de narrativas bíblicas como ferramenta de legitimação política não é um fenômeno novo, mas ganha contornos particularmente preocupantes quando empregada para justificar operações militares modernas com altos índices de mortalidade. Philip Jenkins destaca que muitos textos sagrados contêm passagens que “parecem dizer coisas desarmônicas com o impulso primário daquela religião”. Esta observação é fundamental para compreendermos como líderes políticos podem selecionar passagens específicas, descontextualizadas de seus significados históricos e teológicos mais amplos, para avançar agendas militares contemporâneas. Não que isso seja algo novo na história da humanidade, mas no caso israelense, a invocação de figuras bíblicas como Gideão em operações militares estabelece uma continuidade simbólica entre narrativas antigas de conquista divina e conflitos territoriais modernos.

Um dos conceitos mais perturbadores presentes nos textos bíblicos é o “herem”, que significa aniquilação total. Conforme Jenkins expõe, este conceito aparece especificamente no Livro de 1 Samuel, quando Deus instrui o Rei Saul a atacar os amalequitas: “E destrua totalmente tudo o que eles têm, não os poupe, mas mate homem e mulher, criança e bebê de peito, boi e ovelha, camelo e jumento”. Quando Saul falha em executar completamente este genocídio, Deus retira seu reino, sugerindo que “Saul cometeu um pecado terrível ao não completar o genocídio”. Esta passagem ressoa ao longo da história cristã e judaica, sendo frequentemente utilizada para justificar violência contra populações consideradas inimigas ou obstáculos ao cumprimento de desígnios divinos.

Ilustração da Coleção Phillip Medhurst retratando Josué lutando contra Amaleque (Êxodo 17).

Em nossos dias, a denominação de operações militares com nomes bíblicos, como “Carruagem de Gideão”, representa uma tentativa deliberada de estabelecer conexões entre narrativas bíblicas de vitória divina e ações militares. Gideão, figura do livro de Juízes, é conhecido por liderar uma pequena força escolhida por Deus contra um inimigo numericamente superior, simbolizando a intervenção divina em favor do povo escolhido. Jenkins observa que ao longo da história cristã, os papas católicos durante as Cruzadas na Idade Média declararam os muçulmanos como amalequitas [1]. Este padrão de demonização bíblica do inimigo continua presente na retórica contemporânea, permitindo a caracterização de adversários políticos como inimigos teológicos cuja eliminação seria permitida por mandamento divino.

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O Chamado de Gideão, xilogravura de 1860 de Julius Schnorr von Karolsfeld

Em outubro de 2023, ao discursar sobre a guerra contra o Hamas, Netanyahu declarou: “Vocês devem se lembrar do que Amaleque lhes fez”. A referência de Netanyahu aos amalequitas, um antigo povo inimigo dos israelitas bíblicos, é carregada de significado e simbolismo. Ao citar diretamente a injunção para “lembrar o que Amaleque fez”, Netanyahu evoca todo o peso histórico e teológico dessa inimizade com os inimigos perenes de Israel desde os tempos do Êxodo (17:8-16), passando por Deuteronômio (25:17-19) e 1 Samuel. Trata-se de um discurso retórico extremamente perigoso e que ao mesmo tempo acena para as alas religiosas mais radicais dentro do sionismo, como se os ataques contra Gaza pudessem ser justificados teologicamente e fossem da vontade divina.

Em seu trabalho seminal, Jenkins surpreendentemente constata que “as passagens islâmicas no Alcorão eram na verdade muito menos sangrentas e violentas do que as da Bíblia”. Esta observação contradiz frontalmente narrativas ocidentais predominantes que caracterizam o Islã como inerentemente violento enquanto retratam a tradição judaico-cristã como pacífica [2]. Jenkins especifica que “em termos de ordenar violência e derramamento de sangue, qualquer afirmação simplista sobre a superioridade da Bíblia em relação ao Alcorão estaria completamente errada” [3]. A Bíblia, segundo ele, “transborda com textos de terror” – termo que o autor pega emprestado da teóloga Phyllis Trible – e “contém muito mais versículos exaltando ou incitando derramamento de sangue do que o Alcorão”.

Jenkins aponta para uma hipocrisia fundamental na forma como o Ocidente caracteriza diferentes tradições religiosas: “Inconscientemente, talvez, muitos cristãos consideram o Islã como uma espécie de sombra obscura de sua própria fé, com as palavras feias do Alcorão em contraste absoluto com as escrituras que eles mesmos valorizam”. Esta postura perpetua uma narrativa que associa violência religiosa primariamente ao Islã, enquanto ignora ou minimiza as justificativas bíblicas para violência extrema, mesmo que elas estejam ocorrendo diante de nossos olhos. Quando líderes políticos ocidentais ou israelenses evocam figuras bíblicas em contextos militares, isso raramente é interpretado como extremismo religioso no mesmo nível em que referências religiosas por líderes muçulmanos seriam criticadas. 

Bill Tammeus (2011) destaca que o trabalho de Jenkins “certamente será rejeitado por alguns entre os adeptos do literalismo estrito quando se trata de ler textos sagrados”. Nesse sentido, Jenkins argumenta que “se as religiões devem ter sucesso – se devem viver, crescer e mudar as sociedades ao seu redor – então, por necessidade, devem superar pelo menos partes de suas escrituras”. Esta perspectiva sugere a necessidade de uma hermenêutica crítica que contextualize passagens violentas em vez de aplicá-las literalmente a conflitos modernos, coisa que os estudiosos muçulmanos sempre fizeram e ainda fazem ao interpretar seu livro sagrado, afinal um dos principais gêneros literários nos estudos corânicos (ulum al-Qur’an) é justamente o do contexto das revelações, conhecido em árabe como asbab al-nuzul.

A invocação de figuras e narrativas bíblicas em discursos políticos sobre operações militares opera em múltiplos níveis, dirigindo-se simultaneamente a diferentes audiências. Para sionistas religiosos em Israel, estas referências reforçam a percepção de uma missão divina e uma guerra santa sancionada por Deus. Para cristãos evangélicos e outros sionistas cristãos internacionais, especialmente nos Estados Unidos – e no Brasil, por imitação fruto de um viralatismo inexplicável –, estas alusões bíblicas funcionam como sinalizações de que o conflito atual faz parte de um plano divino maior, merecedor de apoio incondicional. Jenkins observa que essas passagens bíblicas violentas “ecoam através da história cristã” e foram “frequentemente usadas, por exemplo, em histórias americanas de confronto com indígenas – não apenas é legítimo matar os indígenas, mas você está violando a lei de Deus se não o fizer”.

Quando textos sagrados são utilizados para legitimar operações militares contra civis, as consequências humanitárias são devastadoras. Jenkins insiste que é hora de enfrentar essas passagens violentas e buscar entender o que elas podem possivelmente significar. Este chamado à responsabilidade interpretativa adquire urgência cada vez maior quando consideramos operações militares contemporâneas que resultam em milhares de mortes civis, como o que está acontecendo nesse exato momento em Gaza: enquanto escrevemos esse artigo certamente há alguém morrendo em Gaza, muito possivelmente uma criança, e infelizmente o mesmo ocorrerá enquanto esse texto for revisado e editado para ser transformado em post para as redes sociais, bem como quando você estiver lendo essa publicação. 

A aplicação contemporânea do conceito bíblico de “herem” representa uma das manifestações mais perigosas de extremismo religioso no cenário geopolítico atual, especialmente quando normalizada ou minimizada por políticos e analistas ocidentais que simultaneamente criticam outras tradições religiosas por justificativas semelhantes. O trabalho de Philip Jenkins representa um desafio fundamental tanto para comunidades religiosas quanto para analistas políticos: confrontar honestamente a violência prescrita em textos sagrados e questionar sua aplicabilidade em contextos contemporâneos. Nas palavras de Bill Tammeus, a obra de Jenkins oferece “sabedoria e visão para judeus, cristãos e muçulmanos” ao insistir que não podemos ignorar seletivamente os textos violentos de nossas próprias tradições enquanto criticamos outras religiões. Este desafio torna-se particularmente urgente quando referências bíblicas são empregadas para justificar operações militares que resultam em numerosas vítimas civis. Até que o Ocidente confronte honestamente seu próprio legado de violência religiosamente chancelada, continuaremos vendo ciclos de violência legitimados através de leituras seletivas e instrumentalizadas de textos sagrados onde os violentos e extremistas sempre são os “outros”.

Quando líderes políticos evocam figuras bíblicas e narrativas de aniquilação divina como Gideão ou os amalequitas para justificar operações militares contemporâneas, eles não estão apenas comunicando-se estrategicamente com bases religiosas, mas também perpetuando perigosas teologias de violência que contradizem os princípios fundamentais de justiça e humanidade. 

Notas

[1] E curiosamente católicos e protestantes vieram a se chamar dessa maneira em seus conflitos. 

[2] Embora o termo ‘judaico-cristão’ seja problemático e facilmente contestável, especialmente em falas como ‘civilização judaico-cristã’ e afins, optamos por utilizá-lo nesse contexto visto que estamos falando da interpretação tanto de grupos judeus quanto de grupos cristãos, que por vezes se valem dos mesmos trechos bíblicos como fundamento.

[3] Ou com a ênfase que o autor se vale no original em inglês: “wildly wrong”, algo como “selvagemente errada” se fôssemos traduzir literalmente. 

Referências

ABDULLAH. Genocide in the Bible and the Hypocrisy of Christian Critique. Disponível em: <https://muslimskeptic.com/2021/06/05/genocide-bible-christianity/>. Acesso em: 20 maio. 2025.

COLE, J. Jenkins: Bible far more violent than qur’an. Disponível em: <https://www.juancole.com/2010/03/jenkins-bible-far-more-violent-than.html>. Acesso em: 20 maio. 2025.

DUANE, L. Violence in the bible and qur’an. SSRC The Immanent FrameThe Immanent Frame, , 12 mar. 2009. Disponível em: <https://tif.ssrc.org/2009/03/12/violence-in-the-bible-and-quran/>. Acesso em: 20 maio. 2025

JENKINS, P. Laying down the sword: Why we can’t ignore the bible’s violent verses. [s.l.] HarperSanFrancisco, 2011.

NPR. Netanyahu’s references to violent biblical passages raise alarm among critics. NPR, 7 nov. 2023.

Statement by PM Netanyahu. Disponível em: <https://www.gov.il/en/pages/statement-by-pm-netanyahu-28-oct-2023>. Acesso em: 21 maio. 2025.

TAMMEUS, B. The violence in sacred texts. Disponível em: <https://billtammeus.typepad.com/my_weblog/>. Acesso em: 20 maio. 2025.

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