Soldados Muçulmanos na Guerra Civil Americana

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Ameaça contínua a ser neutralizada, aliado coadjuvante “fazendo a coisa certa”, pessoas enfrentando, sozinhas, o drama excruciante de viver sob o regime tirânico imposto pela sua cultura e sua fé. Essas são apenas algumas silhuetas – extremamente lucrativas – que as produções literárias e cinematográficas da Europa e dos EUA emprestam a uma comunidade muçulmana com mais de 2 bilhões de fiéis espalhados pelo mundo. Estamos acostumados a ver o muçulmano, portanto, sobrevivendo do outro lado da fronteira, num mundo distante, hostil e alheio ao “nosso” abençoado e próspero estilo de vida ocidental, ao passo que ignoramos, ao mesmo tempo, que muitos deles colocaram suas vidas em risco para erigir alguns dos pilares que até hoje nos serve de exemplo.

Como os EUA é a principal nação divulgadora dessa narrativa hegemônica, atentemo-nos à Guerra Civil Americana (1861-1865), um de seus marcos de fundação nacional cuja razão de ser girava principalmente em torno da manutenção ou não da escravidão naquele território. Se olharmos os registros de soldados e marinheiros que participaram das frentes de combate unionistas (Norte) ou confederadas (Sul), 292 pessoas possuíam ascendência ou nomes de origem islâmica. Além disso, dos escravizados que lá aportaram, estima-se que 15% deles mantinham vinculação com práticas ritualísticas do Islã.

Em 1855, como parte das preparações para um conflito que era visto como iminente, o secretário da guerra do Kentucky, Jefferson Davis, chegou a convencer o Congresso a adotar um Corpo Militar de Camelos, que seria responsável pela vigilância dos desertos a sudoeste do território e pela busca por uma rota segura à parte sul de uma rodovia transcontinental. Para essa missão, foi convocado um condutor otomano de camelos, Hadji Ali, para direcionar esses animais, adquiridos também do Império Otomano. Embora Ali e os camelos fossem uma espécie de atração para os habitantes da região, a dificuldade de conduzir tal empreitada foi maior e a iniciativa não chegou a sobreviver para testemunhar as campanhas anos depois.

Hadji Ali (Hi Jolly) e sua esposa, Gertrudis Serna

Enquanto isso, no Norte, o senador Charles Sumner citava o Corão em vários de seus discursos parlamentares em prol da causa abolicionista. Graças a disseminação e publicação dos relatos escabrosos de um escravizado muçulmano senegalês de nome Ayuba Suleiman Diallo, que descrevia a crueldade da experiência a qual era submetido, muitos se convenceram que a escravidão precisava ser extinta da paisagem norte-americana. No ano de 1864, um general tunisiano e presidente do conselho municipal de Túnis, Hussein Pasha, enviou uma carta ao secretário dos Estados Unidos (do Norte), William Seward, para que eles eliminassem a escravidão “em nome da humanidade”, documento executivo que posteriormente foi listado como “muito influente” pela Casa dos Representantes (a Câmara Legislativa). O bey da regencia de Tunis, Ahmad I Ibn Mustafa, havia proclamado a abolição islâmica da escravidão em seu país, relacionada com o tráfico transaariano, em 9 de abril de 1841.

indefinido

Ahmad ibn Mustafa, bey de Túnis

Em 1859, o oficial unionista do Norte, Elmer Ellsworth, assumiu a liderança de uma companhia de homens e os treinou segundo manuais franceses de infantaria leve, de formação aberta e que se moviam em tempo dobrado, inspirado nos regimentos franceses de muçulmanos amazigues norte-africanos conhecidos como Zuavos. Essa companhia se transformou no 11º regimento de Nova York, conhecido como “Zuavos de Fogo”, tropas de elite do Exército de Potomac e que deu origem a outros regimentos, como o da Pensivânia. Na parte sul dos confederados havia poucas unidades, como as de Lousiana. Alguns regimentos zuavos conservavam chapéu otomano fez com uma borla colorida como acessório obrigatório nos Estados unidos, símbolo de filiação otomana ou, mais provavelmente, de adesão aos princípios do Islã.

Acampamento dos Zuavos do Corpo de Bombeiros de Nova York do Coronel Ellsworth

Em termos de personalidade, encontramos o nigeriano do antigo reino de Kukawa, Mohammed Ali ben Said também conhecido como Nicholas Said, como membro da I Companhia do 55º regimento de infantaria de Massachussets desde 1863. Antes de se alistar às tropas de cor do exército unionista, Said nascera em 1836 e fora capturado pelo tráfico transaariano quando adolescente, mas, por demonstrar habilidades linguísticas excepcionais, conseguira elevar sua posição social a ponto de ter viajado pelo Norte da África, Europa, Império Russo e Caribe como servo honorário e ter se libertado da escravidão em 1859. Viajou ao Canadá a trabalho como africano livre e imigrou para os EUA em 1862, onde acabou virando professor em Detroit, Michingan. No ano seguinte, juntou-se aos esforços de guerra e participou diretamente das batalhas de Honey Hill e James Islands. Depois da guerra, casou-se e fez morada no Tennesse, onde construiu escolas para crianças negras durante o período da Reconstrução.

Nicholas Said

Além dele, o iraniano persa Mohammed Khan também deu sua contribuição ao 43º regimento de infantaria desde o dia 2 de agosto de 1861, poucos meses depois de ter conseguido residência com sua família em Boston, Massachussets. Foi ferido sucessivas vezes ao longo das batalhas de Wilderness, Malven Hill e Mocacy no estado da Virgínia, havendo registro de entradas suas em 3 hospitais localizados na Filadélfia até o ano de 1864, quando passa a atuar como atirador de elite. Ele foi um dos muçulmanos que serviram na Guerra Civil Americana e é conhecido principalmente por seu pedido de pensão no ano de 1881, que está arquivado na Administração Nacional de Arquivos e Registros.

Do período, sobreviveu também a cidade de Elkader, em Iowa, nomeada em homenagem ao líder da resistência argelina anti-francesa Abdelkader al-Jazairi. Quando a comunidade foi planejada em 1846, os fundadores, Timothy Davis, John Thompson e Chester Sage decidiram nomeá-la em homenagem ao imã que guerreava contra o colonialismo ocidental no mundo árabe.

Elkader, Iowa

Referências

Lovejoy, Paul. MOHAMMED ALI NICHOLAS SAID: From Enslavement to American Civil War Veteran. Millars, vol. XLII, 2017/1, pp. 219-232.

Lauck, Jeffrey. PROFILES IN PATRIOTISM: Muslims and the Civil War. The Gettysburg Compiler: On the Front Lines of History, 2017

Smith, Robin. Zouavos of American Civil War. Londres: Osprey, 1996

Calbreath, Dean, THE SERGEANT: The Incredible Life of Nicholas Said – Son of an African General, Slave of the Ottomans, Free Man Under the Tsars, Hero of the Union Army, 2023

Mersiovsky, Kate. Private Mohammed Kahn: Civil War Soldier. Acesso em fevereiro de 2025

National Park Service. Soldiers and Sailors databases. Acesso em fevereiro de 2025

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