Em uma recente publicação na página, argumentamos sobre o uso do nome Palestina na Antiguidade por autores como Heródoto, Aristóteles, Ovídio e outros, bem como a designação do nome Palestina para se referir a um país e não a um território abstrato, conforme o mapa-mundi elaborado por Ptolomeu. Apesar da necessidade desse tipo de texto nos dias de hoje, houve um período em que os próprios sionistas usavam o termo Palestina aqui mesmo no Brasil.
As fontes brasileiras documentam o uso explícito do termo “Palestina” e slogans como “Palestina Livre” por ativistas sionistas no Brasil. O historiador e folclorista Nilson Montoril, ao descrever um painel de fotografias sobre Eliezer Levy, importante nome do sionismo brasileiro na primeira metade do século passado, afirma: “No carro intitulado “Palestina”, em destaque, sentada em um trono e usando um longo vestido nas cores azul e branco ia a jovem Haila.”. Esta descrição indica claramente que, já em 1918, o movimento a favor da criação do Estado de Israel utilizava “Palestina” como designação do território almejado. Mas, afinal, quem foi Eliezer Levy?
Major Eliezer Levy
Moisés Eliezer Levy nasceu em Belém, Pará, em 29 de setembro de 1877, filho de Moisés Isaac Levy e sua esposa, imigrantes judeus marroquinos de Rabat. Sua família se estabeleceu no Pará em 1870, onde seu pai se dedicou ao comércio de borracha. Eliezer Levy iniciou seus estudos em Gurupá, concluindo-os em Belém. Em 1900, casou-se com Esther Levy Benoliel, com quem teve sete filhos, incluindo a escritora Zultana Levy Rosenblatt. Ele também se dedicou ao comércio, fundando a empresa E. Levy & Cia, e posteriormente gerenciou outras empresas. Formou-se em direito e atuou na área entre 1918 e 1926, período em que também se envolveu na política paraense, filiado ao Partido Republicano Federal, e apoiou causas sionistas. Levy foi um membro proeminente da Maçonaria paraense, alcançando o grau 33, e fundou uma escola para moças chamada Dr. Weizzman.
Carro alegórico “Salve Palestina Livre”, festejando a Declaração Balfour, Belém, PA, Carnaval de 1918 | Revista Amazonia Judaica, Ed. 6
Levy liderou manifestações em favor da Declaração Balfour em 1918 e fundou o comitê “Ahavat Sion” e o jornal “Kol Israel” [1]. Nachman Falbel, em “Judeus no Brasil: Estudos e Notas”, detalha que no dia 1º de dezembro de 1918, Eliezer Levy liderou a comunidade judaica de Belém numa expressiva manifestação pública a favor da “Declaração Balfour”. Ele próprio participou do cortejo de carros alegóricos externando os mesmos anseios que os judeus desenvolviam em todo o mundo visando a liberação da Palestina.
O slogan “Palestina Livre” é diretamente atribuído a esta manifestação. Falbel continua, descrevendo o carro alegórico principal, detalhando que na frente do carro constava uma faixa com os dizeres “Salve Palestina Livre”. Esta citação evidencia o uso de uma linguagem que reivindicava uma “Palestina livre” dentro do contexto da propaganda sionista no Brasil, vinculada aos anseios gerados pela Declaração Balfour. Isso contrasta com a tendência de sionistas modernos – tanto em nosso país quanto no exterior – de evitarem o uso da palavra Palestina (como se fechar os olhos fizesse a realidade sumir), ao ponto de alguns até proporem a sua censura, como fez recentemente Daniel Rubenstein, guia turístico em Israel e muito presente em mídias sionistas, ao comparar o termo “Palestina Livre” (Free Palestine) com ofensas racistas direcionadas aos afro-americanos. [2]
Daniel Rubenstein | X.com
Conforme denunciado por um artigo da Al Jazeera, “How Israel weaponises museums to erase Palestinian existence”, apagar a Palestina e os palestinos da história é uma vocação do Estado israelense, especialmente considerando que o mito da inexistência palestina faz parte do ethos que fundou Israel.
Bahour, discutindo o clássico livro de Keith W. Whitelam, “The Invention of Ancient Israel: The Silencing of Palestinian History”, define Israel como um Estado moderno e tóxico, determinado a tentar encontrar uma origem em um passado mítico de 2.000 anos. Este processo de “invenção” de uma narrativa histórica específica serve para marginalizar ou negar a história palestina, justificando a ocupação israelense na região, afinal de contas até então não haveria qualquer povo com identidade atrelada ao solo e nem mesmo um país.
A negação da existência palestina é exemplificada pela famosa citação de Golda Meir, ex-primeira-ministra israelense: “não existiam palestinos”, vindo a indagar ainda durante uma entrevista sobre quando houve um povo palestino com um Estado palestino independente. Esta negação é um pilar da narrativa que busca deslegitimar as reivindicações palestinas, como se Israel tivesse sido estabelecido numa “terra de ninguém”.
Os museus israelenses, conforme o artigo da Al Jazeera, desempenham um papel ativo nesse esforço de apagamento, referindo-se aos palestinos como “árabes” para evitar o reconhecimento de uma identidade nacional palestina específica e bem desenvolvida, uma verdadeira estratégia deliberada de controle da narrativa histórica.
É importante notar que o próprio termo “Palestina” era a designação geográfica comum para a região durante o Mandato Britânico e antes, sendo utilizada por judeus, árabes e a comunidade internacional. Os sionistas, como evidenciado pelas fontes brasileiras, adotaram este termo para o seu projeto nacional. Não somente, mas até o slogan “do rio ao mar” foi adotado pelos sionistas.
Nesse sentido, um dos slogans iniciais do movimento sionista propunha que o futuro Estado se estendesse por ambas as margens do rio Jordão. No entanto, quando essa proposta se mostrou inviável, ela deu lugar à concepção de uma ‘Grande Israel’ (Eretz Yisrael), imaginada como abrangendo o território entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo. No manifesto eleitoral de 1977, o partido direitista israelense Likud declarou: ‘Entre o mar e o [rio] Jordão haverá apenas soberania israelense’. Formulações semelhantes, como a menção à região ‘a oeste do rio Jordão’, continuaram sendo utilizadas por políticos israelenses nas décadas seguintes, inclusive pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, em 18 de janeiro de 2024.
As evidências documentais, especialmente as provenientes do Brasil, demonstram inequivocamente que ativistas sionistas utilizaram o termo “Palestina” em sua propaganda e mobilização, chegando a empregar slogans como “Salve Palestina Livre” e “do rio ao mar”. Este uso histórico contrasta fortemente com as narrativas posteriores de negação e apagamento da existência e história palestinas que vemos hoje em dia, inclusive aqui nos comentários da página por sionistas revoltados. A história para o ‘pesquisador’ desonesto é meramente uma ferramenta para justificar suas políticas coloniais, sendo absolutamente irrelevante as mudanças no discurso desde que sejam úteis para o contexto político do momento. Resta saber, portanto, onde está essa herança reivindicada pelos sionistas, tendo em vista a necessidade de mudar o argumento com certa frequência e, não bastando, se valer de estratégias de apagamento histórico da identidade e história palestina.
Notas
[1] Optamos por contar a biografia de Eliezer Levy no corpo do texto até 1918 pelo bem da concisão do artigo. Para mais detalhes sobre sua vida, recomendamos o artigo de Montoril.
Referências
BAHOUR, S. Man-made Israel (and the obsessive erasure of Palestinian history). Disponível em: <https://mondoweiss.net/2020/07/man-made-israel-and-the-obsessive-erasure-of-palestinian-history/>. Acesso em: 26 maio. 2025.
DE ARAÚJO, N. M.; COMPLETO, V. M. P. Nilson Montoril – Arambaé. Disponível em: <https://montorilaraujo.blogspot.com/2012/07/normal-0-21-false-false-false.html>. Acesso em: 26 maio. 2025.
SEN, S. How Israel weaponises museums to erase Palestinian existence. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/opinions/2023/7/15/how-israel-weaponises-museums-to-erase-palestinian-existence>. Acesso em: 26 maio. 2025.