A conquista muçulmana da Península Ibérica, iniciada em 711 d.C., constituiu um dos eventos mais transformadores da história medieval. Esta série de campanhas militares culminou na derrocada do Reino Visigótico e no estabelecimento do que seria chamado al-Andalus, território sob domínio islâmico que perduraria por quase oito séculos. Contudo, longe de ser uma empreitada homogênea, a conquista islâmica caracterizou-se por sua diversidade, reunindo diversos grupos com interesses distintos que se entrelaçaram em alianças estratégicas. As figuras de Tariq Ibn Ziyad, Kaula al-Yahudi e Mughith al-Rumi representam diferentes facetas deste mosaico político-militar, cada um simbolizando as motivações e aspirações de grupos específicos (e distintos) que viram na conquista uma oportunidade para alcançar seus objetivos pessoais.
Tariq Ibn Ziyad: O Comandante Berbere a Serviço dos Omíadas
Nascido no território da atual Argélia, Tariq Ibn Ziyad emergiu como uma figura militar decisiva sob o comando de Musa ibn Nusayr, o governante muçulmano na Ifriqiya, atual região do Magrebe. Como lugar-tenente do general muçulmano, Tariq liderou em abril de 711 d.C. um exército inicial composto principalmente por berberes, atravessando o estreito que hoje leva seu nome – Gibraltar, derivado de “Jabal al Tariq” (Montanha de Tariq). Este comandante representava diretamente os interesses do Califado Omíada, encontrando na fragilidade política do reino visigodo uma oportunidade de ouro. A expedição de Tariq foi favorecida por alianças inesperadas, como a do conde Juliano, nobre visigodo e comandante de Ceuta, que incentivou a conquista como vingança contra o rei Rodrigo, acusado de ter violentado sua filha, Florinda [1].
A genialidade militar de Tariq Ibn Ziyad manifestou-se claramente na histórica Batalha de Guadalete, ocorrida em 19 de julho de 711. Enfrentando um exército visigodo numericamente superior, liderado pelo rei Rodrigo (Roderic), Tariq empregou táticas que compensaram sua desvantagem numérica. Com aproximadamente 12.000 soldados, majoritariamente de cavalaria leve, contra supostos 100.000 visigodos [2], o comandante berbere utilizou magistralmente técnicas de “bater e correr” (em árabe, karr wa farr) [3], explorando as falhas na coesão do exército inimigo. Em certa lenda, é narrado que Tariq ordenou que queimassem os navios após desembarcar na costa ibérica, eliminando a possibilidade de retirada e inflamando o moral de suas tropas com a certeza de que só restaria a vitória ou o martírio. A batalha culminou com a morte do rei Rodrigo e a desintegração do exército visigodo, abrindo caminho para a rápida conquista do território hispânico.
Kaula al-Yahudi: A Resistência Judaica Contra a Opressão Visigótica
Em meio ao arranjo político-militar da conquista, destaca-se a figura de Kaula al-Yahudi, general judeu nomeado por Tariq Ibn Ziyad durante a conquista da Península Ibérica e infelizmente pouco conhecido. Nascido em c. 685 no território que viria a ser conhecido como Al-Andalus, Kaula representava os interesses da comunidade judaica sefardita, que há muito sofria perseguições e discriminações sob o domínio visigodo. Para os judeus, a chegada das forças muçulmanas não representava uma mera uma troca de governantes, mas uma genuína oportunidade de libertação das severas restrições religiosas e civis impostas pelos reis visigodos cristãos. A colaboração de Kaula com Tariq simbolizava uma aliança pragmática entre dois grupos pelo poder estabelecido na península, apesar de suas irreconciliáveis diferenças, onde cada um vislumbrava na queda do reino visigodo a possibilidade de um futuro mais promissor à sua maneira.
Na emblemática Batalha de Guadalete, Kaula al-Yahudi liderou ativamente os contingentes judeus que lutaram ao lado das forças berberes e árabes contra o exército do rei Rodrigo, conforme nos conta a crônica Akhbar majmua. Esta participação não foi marginal, mas decisiva para o resultado do conflito, demonstrando o comprometimento da comunidade judaica com a nova ordem política que se anunciava. Após as vitórias sucessivas e a conquista de importantes centros urbanos como Córdoba, Granada e Málaga, os judeus foram recompensados com posições de confiança na administração dos territórios conquistados, encarregados de salvaguardar os interesses muçulmanos.
A trajetória de Kaula al-Yahudi ilustra não apenas a aliança inicial entre judeus e muçulmanos, mas também as complexidades e tensões subsequentes à consolidação do poder islâmico. Após liderar seu exército misto de judeus e berberes em campanhas vitoriosas contra os visigodos e ocupar parte da Catalunha, Kaula eventualmente entrou em conflito com a autoridade estabelecida, levantando-se contra Al-Hurr ibn Abd al-Rahman al-Thaqafi, governante de al-Andalus. Este episódio revela que, para além da aliança estratégica inicial contra o inimigo comum, os diferentes grupos que compunham as forças conquistadoras mantinham suas próprias agendas e não hesitavam em defender seus interesses específicos quando estes divergiam. A rebelião de al-Yahudi viria a fracassar e ele seria morto em 718, ilustrando como a história é muito mais complexa do que narrativas binárias podem comportar.
Mughith al-Rumi: O Romano a Serviço do Califado
Completando o trio de comandantes militares que personificam a diversidade da conquista islâmica, encontramos Mughith al-Rumi, cujo epíteto “al-Rumi” (o Romano) sugere sua origem ou conexão com o mundo romano-bizantino. Dizem, na verdade, que se trata de um bizantino que se converteu ao Islam. De qualquer forma, al-Rumi foi enviado por Tariq Ibn Ziyad para conquistar Córdoba, representando mais um elemento na complexa teia de alianças que compunha o exército de Tariq. Sua presença nas forças islâmicas evidencia a inclusão de indivíduos de origens diversas, muitos deles convertidos ao Islam, que encontraram nas estruturas militares e administrativas do califado oportunidades de ascensão social e política impossíveis (ou quase) em outras épocas. A integração desses elementos não-árabes e não-berberes – e por vezes até não-muçulmanos – nas campanhas de conquista demonstra a notável capacidade do Califado Omíada de incorporar e utilizar talentos diversos em sua expansão territorial, bem como o pragmatismo de seus apoiadores, um verdadeiro distanciamento da realidade histórica com a dicotomia moderna de certos círculos que insistem na eterna visão de “guerras religiosas” e “conflitos civilizacionais”.
A conquista de Córdoba por Mughith al-Rumi revela tanto sua astúcia militar quanto o estado de fragilidade em que se encontrava o reino visigodo após a derrota em Guadalete. Encontrando a cidade praticamente desguarnecida, com apenas 400 soldados para sua defesa, Mughith não recorreu à força bruta, mas à inteligência estratégica. Aproveitando-se de condições climáticas favoráveis – uma forte tempestade que obrigou os sentinelas visigodos a buscarem abrigo – suas tropas conseguiram atravessar o rio Guadalquivir sem serem detectadas. Incapazes inicialmente de escalar as muralhas da cidade, os conquistadores contaram com a ajuda decisiva de um pastor local capturado, que revelou a existência de uma brecha na parte sul da muralha junto ao rio. Após chegarem ao local, um dos soldados conseguiu subir na muralha e utilizou um turbante como corda para que as demais tropas pudessem escalar, vindo assim a conquistar a cidade.
A diversidade das alianças
A composição das forças que conquistaram a Península Ibérica em 711 reflete a natureza multicultural do Califado Omíada e as oportunidades estratégicas que a fragilidade do reino visigodo oferecia a diversos grupos. Árabes, berberes, judeus e romanos convertidos ao Islam formavam um mosaico de interesses convergentes, unidos temporariamente pelo objetivo comum de derrotar os visigodos, uma aliança que em outras épocas poderia parecer até bem improvável. Para o Califado Omíada, representado por Musa ibn Nusayr e seu lugar-tenente Tariq Ibn Ziyad, a conquista significava a expansão de seu domínio para a Europa, consolidando sua posição como potência mediterrânea. Para os berberes, majoritários nas tropas de Tariq, a campanha representava tanto uma oportunidade de enriquecimento através dos espólios de guerra quanto uma forma de afirmação dentro da hierarquia social e política do califado, tradicionalmente dominada pelos árabes e cujo centro se encontrava muito longe dali, em Damasco.
Cada grupo envolvido na conquista buscou maximizar seus benefícios no novo ordenamento político de Al-Andalus. Os judeus sefarditas, representados por Kaula al-Yahudi, viram na queda do reino visigodo o fim de décadas de perseguição religiosa e discriminação, alcançando posições de prestígio na administração dos territórios conquistados e desfrutando de uma liberdade religiosa e cultural sem precedentes. Os bizantinos convertidos ao Islam, simbolizados por Mughith al-Rumi, encontraram vias de promoção social e política que lhes permitiram integrar a nova elite governante, coisa que outrora não poderiam vir a realizar caso se mantivesse o status quo visigodo na Península.
O legado desta heterogênea aliança de conquista manifestou-se na configuração político-cultural de Al-Andalus, um espaço onde coexistiram – não sem tensões esporádicas, é verdade – diferentes comunidades religiosas e étnicas. Os personagens de Tariq Ibn Ziyad, Kaula al-Yahudi e Mughith al-Rumi simbolizam, assim, não apenas diferentes facetas da conquista militar, mas também as raízes multiculturais de al-Andalus e a complexidade desse período que ficou tão marcado por alianças que hoje parecem improváveis.
Notas
[1] Segundo Brian Catlos (2017), a acusação seria uma lenda posterior buscando justificar a aliança de Juliano com os conquistadores muçulmanos.
[2] Esse número encontrado em algumas fontes árabes é certamente um exagero retórico. Alguns autores modernos, como David Levering Lewis (2008) e Roger Collins (1989) apontam para números que não chegam na metade disso. Contudo, a vantagem numérica das tropas visigodas é consenso acadêmico. Lewis (2008), por exemplo, aponta para um terço desse número.
Referências
- AKRAM, A.I. The Muslim Conquest of Spain. Army Publishing Education House, 2006-2007.
- BALBÁS, Y. Espada, hambre y cautiverio: La conquista islámica de Spania. [s.l.] Desperta Ferro Ediciones, 2022.
- BONNIN, P. Sangre Judía: Españoles de Ascendencia Hebrea y Antisemitismo Cristiano. 2. ed. [s.l.] Flor de Viento Ediciones, 1998.
- CATLOS, B. A. Kingdoms of faith: A new history of Islamic Spain. Nova Iorque, NY, USA: Basic Civitas Books, 2017.
- COLLINS, R. The Arab conquest of Spain, 710-797. Londres, England: Blackwell, 1989.
- JAMES, D. A History of Early Al-Andalus: The Akhbar Majmu’a. Londres, England: Routledge, 2011.
- LEWIS, D. L. God’s crucible: Islam and the making of Europe, 570-1215. Nova Iorque, NY, USA: WW Norton, 2008.