O nazismo, dentre os muitos fenômenos históricos da humanidade, é um daqueles que mantém viva a sua memória de forma bastante ambígua. Primeiramente, pelos horrores do Holocausto, que criou verdadeiras indústrias da morte, e pelas consequências históricas que dele decorreram. Em segundo lugar, pelo locus iconográfico que o mesmo incitou nas pessoas. Ao mesmo tempo em que odiamos o nazismo, parece que a indústria cultural nutre um verdadeiro fascínio por ele. Sua presença é vista nas mais diversas obras e tem sido construída principalmente a partir da indústria cinematográfica estadunidense – seja nos capacetes dos stormtroopers de Star Wars, nos enquadramentos e no uso do vermelho em O Conto da Aia, ou em uma série de obras que tratam do tema em específico, como A Lista de Schindler, O Menino do Pijama Listrado etc.
“German and Storm Trooper” | Mondo Blondo | Flickr
No entanto, a autora Petra Rau chama essa iconografia de “Nazi-ness” ou “nazismo entre aspas”, ou seja, é quando a análise do fenômeno histórico não consegue ultrapassar o imagético para acessar as camadas mais profundas do seu conteúdo. Esse modo de ver cria uma espécie de miopia, na qual confundimos o “nazismo entre aspas” com suas práticas de fato – eugenia, segregação racial, eliminação de um inimigo externo, ultranacionalismo. Ou seja, quando esses elementos aparecem despidos da iconografia “nazista”, parece que eles não são nazistas. Partindo desse ponto, e analisando a história de ocupação do sionismo na Palestina, é possível perceber certas práticas e nuances discursivas que lembram, embora em contextos históricos totalmente distintos, aquelas da Alemanha dos anos 1930 e 1940.
Em primeiro lugar, é preciso separar bem o conceito político do fato histórico. Como fato histórico, o nazismo foi um evento que ocorreu somente na Alemanha e na Áustria, e que durou de 1933 até 1945. Teve como contexto o fim da Primeira Guerra e o Tratado de Versalhes, explorando o revanchismo alemão e as novas tecnologias do rádio. Esse fenômeno é único e irrepetível, dadas as condições socioculturais de cada época. Portanto, dentro dos aspectos históricos, não há mais um regime nazista. No entanto, como práxis política, é possível dizer que o nazismo, sim, existe como ideia e/ou doutrina política, e que essa doutrina tem pilares bem estabelecidos: o ultranacionalismo, a xenofobia, o culto a um líder carismático, o uso ostensivo da propaganda, o colonialismo, o terror como arma política e a necessidade de um inimigo externo. Essa delimitação é extremamente importante, pois ela permite dizer que as ideias e as práticas podem ir além do fato histórico.
Posto de controle militar israelense no bairro palestino de Tel Rumeida, Hebron, Cisjordânia | Megan Hanna
Outra questão importante é a análise complexa do fato histórico em oposição ao “mito” do fato histórico. Ou seja, além de diferenciar o conceito da prática política, é preciso ter cautela com as narrativas que se criam a respeito desses temas históricos, porque cada historiador conta e organiza os fatos mediante circunstâncias e contextos diferentes. E isso não é desonestidade, é o fazer do ofício. No entanto, nenhuma narrativa é neutra. E muito da memória histórica criada em torno do nazismo foi construída para legitimar as ações dos Aliados na Segunda Guerra, especialmente os EUA. Nesse contexto, o nazismo representava, antes mesmo da URSS, o outro absoluto, o mal, que o exército dos EUA combateu. Não é à toa que, nos filmes hollywoodianos, se ignora a presença do Exército Vermelho, assim como se ignora a presença de negros, homossexuais, comunistas e ciganos nos campos de concentração.
Tendo isso em mente, é preciso dizer mais uma coisa. Segundo Jason Stanley e Umberto Eco, uma das principais características do “fascismo”, sendo o nazismo sua variante mais famosa, é a sua plasticidade ideológica. Eco afirma que o fascismo não é sequer uma ideologia política, mas uma práxis política que variou de acordo com os mais diversos contextos, vide o integralismo brasileiro. Ou seja, não é possível exigir que o fenômeno fascista ou nazista seja igual em todos os contextos, uma vez que ele se modula aos oportunismos daquele momento específico – como o salazarismo e o franquismo. Pensar assim é reduzir o fenômeno histórico e não perceber seu potencial perigo. Ainda assim, há elementos em comum que se manifestam com maior ou menor intensidade: o ultranacionalismo, o apelo militarista, a expansão do espaço vital, o racismo e a presença de um inimigo externo que precisa ser eliminado, o uso do terror como arma política e o apelo ao passado.
Mas como esses fatores se relacionam ao sionismo? É o sionismo um movimento totalitário, no sentido dado por Hannah Arendt e Norberto Bobbio? A resposta clara e concisa é: não. O movimento sionista de Theodor Herzl não é um movimento totalitário, pois não se propõe como forma de governo. No entanto, de acordo com teóricos como Edward Said, Ilan Pappé e Breno Altman, trata-se de uma doutrina colonial, que carrega um conceito de Estado-nação excludente e estranho às dinâmicas socioculturais palestinas. E é nesse sentido que práticas de apartheid e segregação, similares às nazistas, se manifestam – ainda que em um contexto totalmente diferente daquele da Segunda Guerra Mundial.
A concepção de Israel como um Estado judaico e para os judeus não só ignora a diversidade étnica daquela região, como cria um sistema no qual uma etnia tem primazia sobre as outras. A priori, essa política se pauta em um discurso de segurança para o povo judeu, principalmente no pós-1945. Acontece que esse discurso não contempla a população local e, na prática, expropriou e tornou os não judeus cidadãos de segunda classe. Não apenas isso: o Estado sionista impôs sua presença às custas dos próprios judeus locais, substituindo-os por judeus europeus que desejavam tornar a Palestina mais próxima de Paris ou Londres, como, segundo o próprio Herzl, “ser uma barreira contra a barbárie”. As consequências negativas desse tipo de prática podem ser exemplificadas pela realidade brasileira: a maneira como o Estado tratou seus indígenas, colocando-os não como cidadãos, mas como povos tutelados até a Constituição de 1988, o que resultou em um verdadeiro genocídio dos povos originários. Resumindo: o nacionalismo sionista impõe uma ocupação étnica sobre outros povos em suas fronteiras, gerando segregação e marginalização em um verdadeiro apartheid contemporâneo – principalmente para o povo palestino que habita a região há milhares de anos.
David Ben-Gurion (Primeiro Ministro de Israel) pronunciando publicamente a Declaração do Estado de Israel, 1948, sob um grande retrato de Theodor Herzl, fundador do sionismo político moderno | Wikimedia
O Estado de Israel justifica sua ocupação com base no antigo reino de Israel. Ao mesmo tempo, passou a incorporar em seu discurso passagens do Antigo Testamento para ocupar ainda mais territórios. Muitos israelenses almejam a destruição do Domo da Rocha para a reconstrução do Novo Templo, e recentemente o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu mostrou os túneis de demolição da mesquita. Diversos rabinos usam argumentos bíblicos para defender a expulsão de palestinos dos territórios ocupados, resgatando a ideia de uma aliança eterna com o povo de Israel. Essa idealização do passado mítico para fins políticos, buscando justificar uma “pureza”, é típica de regimes fascistas, de acordo com Norberto Bobbio e Hannah Arendt. E gera, mais uma vez, políticas discriminatórias não só contra palestinos, mas contra cristãos de várias tradições. Por outro lado, o Estado de Israel faz uso ostensivo do Holocausto como justificativa contra todos que criticam suas ações: é comum no debate político israelense que alguém seja chamado de “nazi” ou de “antissemita”, principalmente se esse alguém defende a causa palestina.
Os Reinos de Israel e Judá, mapa de Edward Weller, c. 1890
O apelo militarista segue na mesma linha. Israel é uma potência nuclear no Oriente Médio, com um dos exércitos mais bem treinados do mundo. Ao mesmo tempo, suas forças de defesa atuam fortemente nas redes sociais, onde o apelo patriótico de defesa contra os inimigos é reforçado diariamente. Um dos ícones dessa propaganda são soldados com kippá e tefilin no campo de batalha ao som de versões do Salmo 121. Além disso, os diversos equipamentos de vigilância constante nas fronteiras e os aprimoramentos tecnológicos infinitamente superiores aos dos vizinhos são justificados pela narrativa de autodefesa. Esse militarismo impõe, há anos, uma lei marcial nos territórios ocupados da Cisjordânia, ao mesmo tempo que consolida os assentamentos ilegais.
O Tenente Asael Lubotzky reza com tfillin após a Batalha de Bint Jbeil, durante a Guerra do Líbano de 2006, foto de Yoav Lemmer via Wikimedia Commons.
Os palestinos representam o inimigo externo a ser eliminado para que se alcance a paz. Imediatamente após a guerra de 1967, Robin Maxwell-Hyslop, um conservador britânico, relatou na Câmara dos Comuns uma conversa com David Hacohen, ex-embaixador israelense na Birmânia. Conforme relatado, Hacohen “falou com grande intemperança e longamente sobre os árabes. Quando respirou fundo, fui forçado a dizer: ‘Dr. Hacohen, estou profundamente chocado que o senhor fale de outros seres humanos em termos semelhantes aos que Julius Streicher usava para falar dos judeus. O senhor não aprendeu nada?’”. Ele respondeu: “Mas eles não são seres humanos, são árabes”. Em 2023, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, ordenou o fechamento total das fronteiras de Gaza afirmando: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”. Pesquisa encomendada pelo jornal Haaretz mostra que 47% dos israelenses apoiam o assassinato de todos os palestinos – homens, mulheres e crianças – na Faixa de Gaza. Além disso, 82% apoiam a continuidade da limpeza étnica. Já 56% dos judeus israelenses querem a expulsão de todos os palestinos do território de Israel – entre os com menos de 40 anos, esse número sobe para 66%. Nem as crianças escapam: segundo reportagem da BBC, mais de 10 mil menores palestinos já foram presos sem julgamento. Em 2024, o rabino Elyahu Mali sugeriu que até as crianças deveriam ser eliminadas – postura condenada até por outros rabinos ortodoxos. A ofensiva sobre Gaza já dizimou mais de 50 mil pessoas, em sua maioria civis, mulheres e crianças. Netanyahu já afirmou que o objetivo é o deslocamento da população para fora de Gaza. Essa matança não começou em 2024 – massacres desse tipo têm sido uma constante desde a Nakba.
“Não há futuro na Palestina”, diz outdoor que os colonos israelenses estão espalhando pela Cisjordânia para aterrorizar os palestinos e pressioná-los a deixar sua terra natal | i24news.tv
O projeto expansionista da “Grande Israel”, que abrangeria desde o Eufrates até o Nilo, desloca toda a população local. O ideário colonialista é herdeiro direto do colonialismo europeu do século XIX, de onde o sionismo se originou. A migração em massa de judeus começou sob o protetorado britânico, e a comoção causada pela Shoah facilitou a criação do Estado de Israel. Desde sua fundação até hoje, tratados têm sido desrespeitados, não apenas em desfavor da Palestina, mas também de Síria e Líbano, além de diversos ataques a países da região com o intuito de desestabilizar governos locais – tudo com apoio dos EUA. Segundo reportagem da BBC, “Os ministros mais radicais do governo de coalizão liderado por Netanyahu, que defendem o domínio total de Israel entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, não escondem suas intenções – e esse discurso já não se limita aos círculos extremistas, sendo cada vez mais comum.”
Um dos muitos mapas que circulam com a possível extensão do “Grande Israel”
O uso do terror como arma de dissuasão é uma realidade comum nos territórios ocupados. Além das prisões ilegais, mesmo de menores, é comum o uso de sequestros e assassinatos de lideranças locais. Um exemplo recente foi o de um dos diretores do documentário No Other Land, que teve sua casa apedrejada por colonos e foi levado pelas Forças de Defesa de Israel. Mais recentemente, o ativista brasileiro Thiago Ávila foi colocado em uma solitária por tentar furar o bloqueio de Gaza, mesmo em águas internacionais. As equipes do Mossad possuem protocolo que justifica o uso da tortura contra inimigos perigosos – argumento semelhante ao usado por ditaduras latino-americanas, como a argentina.
Em seu livro O Mal-Estar da Pós-Modernidade, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman faz uma análise detalhada do ideal de pureza. O texto se inicia com uma menção ao Holocausto como uma “solução estética”, na qual um artista – Hitler – eliminava uma mancha. A tese central é que “cada ordem tem suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua própria sujeira que precisa ser varrida” (BAUMAN, 1998, p. 20). O autor problematiza o conceito ao lembrar que aquilo que se chama de “sujeira” são, na verdade, outros seres humanos. O resultado é que, na busca utópica por uma pureza social, as sociedades classificam e “varrem” os que consideram sujos – principalmente outros seres humanos. Isso é inerente a qualquer modelo social. Mas sociedades que se agarram à utopia da pureza – como o sionismo ou o nazismo – fazem do “varrer e extirpar” um imperativo categórico: “São outros seres humanos que são concebidos como um obstáculo para a ‘apropriada organização do ambiente’; (…) uma certa categoria de pessoas que se torna ‘sujeira’ e é tratada como tal.”
Diante de todos esses fatores, podemos dizer que, embora em contextos geográficos e históricos distintos, a ocupação sionista na Palestina – mesmo sem ostentar iconografia nazi-fascista – tem reproduzido práticas semelhantes? Essa percepção tem sido acompanhada por pensadores judeus como Breno Altman, Gabor Maté, Yeshayahu Leibowitz, Hannah Arendt, bem como por outros como Edward Said, Karen Armstrong, entre outros. Tanto dentro do Estado de Israel quanto, sobretudo, nos territórios ocupados, a sensação de sufocamento para as minorias é latente. Embora se venda como a única democracia do Oriente Médio, ao fim, a pergunta que fica é: para quem? Um dos pilares da democracia liberal é a igualdade de direitos e o respeito à propriedade privada, assim como a autodeterminação dos povos. Em que sentido isso é uma realidade para o povo palestino desde 1948?
O estudo de Petra Rau é fundamental porque ao fazer o contraponto ao “nazismo” ela alerta para os reais perigos das práticas nazistas. O dramaturgo Bertold Brecht, autor da obra “Terror e miséria no terceiro Reich” dizia que “O fascismo é uma cadela que está sempre no cio”. Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém” apresenta a tese da banalização do mal, em que como cidadãos comuns podem ser dessensibilizados ante o horror. O Holocausto dói porque toda vida humana deve ser preservada. No entanto a própria Petra Rau aponta para um “cansaço do Holocausto” pela longa exposição ao “nazismo”. Isso não pode. Tem que continuar doendo pra continuar inaceitável, pra que genocídios como o de Gaza sejam considerados inaceitáveis, asquerosos e desumanos e seus perpetradores sejam chamados pelo o que eles realmente são: CRIMINOSOS.
Referências
AMNESTY INTERNATIONAL. Israel’s system of apartheid.
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Fascismo [e] Totalitarismo. In: BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 466-475; p.1247-1259.
DASGUPTA, Punyapriya. Israel’s foes as beasts and insects. CounterPunch, 29 jul. 2006.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018.
RAU, P. Our Nazis: Representations of Fascism in Contemporary Literature and Film. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2013.
ROSAS, Paula. Como é o novo mapa do Oriente Médio que Israel gostaria de desenhar. BBC News Brasil, 15 out. 2024.
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do ‘nós’ e ‘eles’*. \[S.l.]: L\&PM, 2018.
VALDEZ, Jonah. Israel e EUA exploram a fome dos palestinos e usam ajuda humanitária para expulsá-los de Gaza. Intercept Brasil, 29 mai. 2025.