Identidade Otomana: os Sultões se viam como Césares Romanos

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No começo do século XV, o Império Otomano avançava sua dinâmica de conquistas para além da Anatólia, incluindo a Bulgária, Grécia Central, Sérvia, Macedônia e Tessália, na mesma medida em que Bizâncio ia restringindo seu poder de influência ao Peloponeso, a algumas ilhas do Egeu e a sua capital, Constantinopla. Em 1453, quando a capital Bizantina cai para as mãos otomanas, o sultão Mehmet II (1441 – 1481) reivindica para si o título de “Kayser-i Rûm”, “César de Roma”, ou seja, o sucessor do trono imperial romano e herdeiro das prerrogativas de seu governo universal, objetivo declarado dos muçulmanos desde o século VIII d.C. A posse legítima de um território como resultado da supremacia militar de um ente político sobre outro (direito de conquista) garantia ao sultanato otomano o exercício do seu domínio na mesma extensão das fronteiras do Império Bizantino.

Mehmet fez muitas reformas para reafirmar sua posição como “imperador romano”. A capital otomana foi transferida para Constantinopla; muitos aristocratas gregos foram alçados a cargos de elite no governo, incluindo o de grão-vizir; houve a nomeação de um novo Patriarca de Constantinopla, Gennadios II Scholarios, rendendo ao sultão mais legitimidade perante os seus súditos cristãos, maioria no Império até seu penúltimo século, bem como um certo nível de controle sobre a Igreja Ortodoxa Oriental; encomendou histórias de Roma e Alexandre, o Grande, identificando implicitamente os antigos governantes com sua própria dinastia. Tempos depois, Suleiman I, o Magnífico, chegou a supervisionar a construção de uma mesquita inspirada diretamente na arquitetura da Catedral de Santa Sofia. Entre os anos de 1485 a 1566, os termos “Kayser-i Rûm”, “Padişah-i Kostantiniye” e “Basileus” entravam no rol de titulações oficiais dos sultões.

Um mosaico de Mehmet II, o sultão otomano que conquistou Istambul, concedendo autoridade a Gennadios II, o primeiro patriarca grego de Constantinopla sob o domínio otomano.

Mas, para além do direito de conquista, os otomanos construíram uma rede matrimonial que unia dinastias cristãs de origem grega e muçulmanos de origem turca. Um dos vários exemplos que podemos destacar é o de João Tzelepes Comneno, neto do imperador bizantino Aleixo I. No ano de 1139, João mudou-se para a corte do sultão seljúcida Mesud I. Lá, ele se converteu ao islamismo e se casou com uma das filhas do sultão. Recebeu muitas terras e riqueza e foi altamente respeitado pelos turcos por sua erudição e seu domínio do árabe. De acordo com esta tradição posterior, João e sua esposa seljúcida tiveram um filho, Suleyman Shah, pai de Ertuğrul, pai de Osman I, emir turco fundador da dinastia otomana. Além disso, Mehmet também tinha uma linhagem de sangue que remontava a família imperial bizantina: seu antecessor e tataravô, o sultão Orhan I, se casou com a princesa bizantina Teodora Canntacuzeno.

O uso do termo “Rûm“ tem uma história bastante rica e complexa. De inspiração muçulmana e culturalmente turco-persa, a dinastia Seljucida chega definitivamente na região da Anatólia a partir do ano de 1071, quando, após a Batalha de Manzikert, subjuga uma coalizão de principados bizantinos que se viam e eram vistos pelos invasores como “Rûmes”, “romanos”. Suleiman ibn Qutulmish, antigo candidato ao trono seljúcida, possuía domínios consolidados em Iznik e Izmit, a ponto de declarar independência do Império no ano de 1078 e fundar o chamado “Sultanato de Rum”, fundado com apoio e auxílio dos próprios bizantinos. De inspiração muçulmana sunita e de ascendência cultural turco-persa, atingiu seu auge em fins do século XII e início do século XIII, quando exerceu controle sobre os portos do Mar Negro e Mediterrâneo a Oeste, bem como das redes de caravanas que perpassavam os territórios da Ásia Central, Irã e Anatólia mais a Leste. Foi o primeiro reino a enfrentar os exércitos cruzados e se tornou vassalo do Ilcanato Mongol a partir de 1243. Daí em diante, o sultanato foi se fragmentando em pequenos emirados (beilhiques), reunificados apenas em fins do século XIII pelos otomanos. Estes herdaram tanto os métodos administrativos da política persa quanto os súditos bizantinos de maioria camponesa, os “Rûm” (romanos). Também viveram nesta época o mais celebre poeta místico, Jalaluddin Mohammad, mundialmente conhecido pela alcunha “Rumi“ (romano).

Battle of Manzikert - World History Encyclopedia

Batalha de Manzikert

No século XVI, as fontes portuguesas destacavam a presença dos chamados “rumes” em diversas regiões da Índia Ocidental e do Iêmen antes do domínio otomano a partir de 1517. Eram, em sua maioria, soldados, marinheiros e especialistas em armas de fogo, que desempenharam papéis cruciais em exércitos locais como os do sultanato de Gujarat. Afonso Albuquerque, fildalgo português e 2º governador militar da Índia Portuguesa, noticia, em carta datada no ano de 1510, a presença de Rumes na cidade de Diu, na costa ocidental da Índia, e que traziam consigo os melhores exemplares de armamentos vindos de Goa. O primeiro historiador português, João de Barros, no terceiro volume de sua obra “Décadas”, sublinha que o governante de al-Hafa encomendou a construção de velas pelos “turcos” (usado como sinônimo de “Rume”). A organização militar sob influência desses “rumes” revelou uma sofisticação no uso de armas e táticas de combate, indicando a circulação de saberes bélicos e a atuação de mercenários estrangeiros, frequentemente descritos como “soldados brancos” nos relatos portugueses, engajados em serviços militares e de engenharia naval na Índia muçulmana.

Contudo, à medida que o século XVI avançava, o termo tornou-se mais difuso, refletindo a complexidade cultural e linguística do Império Otomano, um sistema político multirreligioso e multicultural comparável a outros grandes impérios históricos. Garcia da Orta, que fora para a Índia no ano de 1534 e escreveu um livro em 1569, ficou interessado na distinção que vez ou outra se fazia entre “turcos” e “rumes” e escreveu o seguinte: “Muytas vezes perguntava, andando nas guerras destes reis da India, a algum soldado branco se era Turco, e respondia que não, senão que era Rume; e a outras perguntava se erão Rumes e respondião-me que não, senão que erão Turcos: e perguntando-lhe qual era a differença que havia antre hum e outro, diziãome que eu a não podia entender, porque não sabia os nomes das terras nem a lingua mo sabia dar a entender”.

Tirando militares e agentes do império, os habitantes das cidades se viam como romanos (“Rumi”), pelo menos até o século XVII. A maior parte da população cristã, tanto de Constantinopla quanto de outras regiões do Império Otomano, viam Mehmet II e seus sucessores como novos imperadores romanos, como um elemento de continuidade com os bizantinos, mas não exatamente “romano” pelas disparidades teológicas evidentes com o legado romano propriamente dito: tratava-se de um estado islâmico.

“Turco” possuía uma dupla carga pejorativa: era assim que os reinos ocidentais se referiam à sociedade otomana e as elites otomanas usavam o termo para se referir exclusivamente ao povos nômades e camponeses da região da Anatólia. Vale ressaltar que tanto o Império Russo quando o Sacro Império Romano Germânico rejeitavam terminantemente essa transmissão otomana do legado romano, visto que eles próprios reivindicavam para si esse legado

Quanto ao mundo islâmico, primeiro eram vistos como “turcos” (do árabe “atrak”) e depois principalmente como “romanos” (do árabe “rumi”, “arwan”). Segundo o historiador especialista em Egito Mameluco, Ulrich Haarman, “As oposições e estratificações internas no interior das castas dominantes turcas (nesse período particular, a elite cultural otomana, os “rumes”, em contraste com os turcos (etrak), soldados vindos das classes mais baixas e com baixíssimo grau de instrução (considerados inclusive como estrangeiros), não tinham qualquer relevância para os observadores árabes contemporâneos”.

Referências

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