Jorge Curtésio Escolário, que se tornaria conhecido como Genádio II, nasceu em Constantinopla por volta de 1400, emergindo como uma das figuras mais importantes do período final do Império Bizantino. Um polímata, versado em filosofia, teologia e direito, ele inicialmente serviu ao estado bizantino em altas funções seculares, incluindo a de juiz-geral. Sua formação intelectual o colocou no centro dos debates teológicos e políticos que agitavam a capital, sendo um profundo conhecedor tanto da tradição patrística grega quanto da escolástica latina, tendo traduzido obras de Tomás de Aquino para o grego.
A participação de Escolário no Concílio de Ferrara-Florença (1438-1439), convocado para unir as Igrejas Oriental e Ocidental, foi um momento definidor em sua carreira. Como um dos principais teólogos leigos da delegação bizantina, ele inicialmente defendeu ativamente a união, acreditando que a reconciliação com Roma era teologicamente defensável e politicamente vital para obter ajuda militar ocidental contra a crescente ameaça otomana. Sua erudição permitiu-lhe argumentar de forma persuasiva sobre os pontos de convergência dogmática.
No entanto, após o Concílio e especialmente com o retorno a Constantinopla, Escolário passou por uma profunda reavaliação de sua posição. Influenciado pela firme oposição de figuras como São Marcos de Éfeso (figura importantíssima na Igreja Ortodoxa até os dias de hoje) e pela recepção hostil da união pela população e clero bizantinos, ele voltou atrás em sua posição anterior. A mudança foi tanta que ele se tornou o mais veemente e influente opositor da União de Florença, argumentando que as concessões feitas à Roma em questões como o Filioque traíam a fé ortodoxa. Após a morte de Marcos de Éfeso, ele assumiu a liderança do movimento anti-unionista, adotando o nome monástico de Genádio (Gennadius) ao ingressar no monastério de Pantokrator.
A veemente oposição de Genádio Escolário à união com Roma revela a profunda fratura na sociedade bizantina tardia e a já velha cisão entre Igreja Ortodoxa e o Catolicismo Romano que assolava a abstrata “cristandade”. Uma parcela significativa do clero, dos monges e da população em geral via qualquer concessão a Roma como uma heresia e uma traição à identidade ortodoxa. Este sentimento anti-latino era tão intenso que, para muitos, a perspectiva de um governo otomano, que historicamente tendia a não interferir diretamente nas práticas religiosas dos povos conquistados, parecia preferível à submissão eclesiástica ao Papa. A famosa frase atribuída ao megaduque (megas doux) Lucas Notaras, “prefiro ver o turbante turco reinando sobre a cidade do que a mitra latina” encapsula perfeitamente esse sentimento, mesmo que a historicidade dessa fala seja contestada por alguns acadêmicos.
O Sultão Mehmed II, após a conquista de Constantinopla em 1453, agiu com notável pragmatismo. Ciente da necessidade de administrar uma vasta população cristã ortodoxa e desejando consolidar seu poder, ele decidiu restaurar o Patriarcado Ecumênico. Mehmed II percebeu que cooptar a liderança religiosa ortodoxa seria mais eficaz para garantir a lealdade e a ordem entre seus novos súditos cristãos, além de servir como um contrapeso à influência papal no Oriente e impedir que uma nova onda de Cruzadas atingisse as terras islâmicas. Ele necessitava de um Patriarca que fosse respeitado pela comunidade ortodoxa e, crucialmente, que fosse um firme opositor da união com Roma.
Genádio Escolário, com sua reputação de erudição e sua liderança inconteste do partido anti-unionista, era o candidato ideal aos olhos de Mehmed II. O Sultão ordenou que ele fosse libertado (foi capturado e escravizado durante a conquista) e trazido de volta a Constantinopla. No início de 1454, Genádio foi consagrado como Patriarca Genádio II. A cerimônia de investidura, na qual Mehmed II pessoalmente entregou ao novo Patriarca o báculo (dikanikion) e outras insígnias tradicionais, simbolizou a continuidade da instituição patriarcal, mas agora sob a suserania otomana e não mais bizantina, estabelecendo uma nova relação entre a Igreja e o Estado.
Patriarca Gennadios e Mehmed II retratados em uma pintura do século XVIII | Wikimedia
A nomeação de Genádio II como Patriarca marcou a formalização do Rum Milleti (Millet dos Romanos, ou seja, dos gregos ortodoxos) dentro da estrutura otomana. O sistema de millet permitia que comunidades religiosas não muçulmanas tivessem autonomia considerável em seus assuntos internos, como religião, educação e aspectos do direito civil (casamento, divórcio, herança), sob a liderança de sua própria autoridade religiosa que também atuava como chefe civil perante o sultão. Karen Barkey (2008, p. 211), explica a funcionalidade do sistema: “O sistema de millet, um conjunto administrativo flexível de arranjos centrais e locais, era um programa para o governo multirreligioso, embora não fosse totalmente codificado nem comparável entre as comunidades.” Ainda segundo Barkey, os otomanos tinham vários objetivos com a instituição do Millet, dentre eles: garantir a lealdade de uma comunidade cristã em crescimento com importantes habilidades econômicas, manter a ordem e permitir que a administração funcionasse sem quaisquer problemas, ao mesmo tempo em que reforçava a barreira entre os mundos ortodoxo e católico da Europa. O millet posteriormente foi estendido para outras comunidades religiosas, como a dos judeus.
Os arranjos estabelecidos por Mehmed II para a comunidade ortodoxa após a conquista foram marcados por um pragmatismo calculado, visando a integração e a governabilidade. Ao restaurar o Patriarcado e nomear Genádio Escolário, o sultão conferiu ao novo Patriarca uma significativa autoridade sobre seus correligionários. Como dito, essa autoridade não se limitava apenas à esfera espiritual, mas estendia-se a assuntos civis internos da comunidade. Mehmed ordenou que fosse emitido um documento para Genádio com o efeito de “que ninguém o importunasse ou perturbasse; que, sem ser molestado, sem ser tributado e sem ser oprimido por qualquer adversário, ele deveria, com todos os bispos sob seu comando, ser isento de qualquer tributação por todo o tempo” (BABINGER, 1978, p. 104).
Genádio II, afresco do mosteiro “São João Batista”, perto de Serres, Grécia | Wikimedia
Por decreto, os membros da igreja ortodoxa receberam três privilégios: (i) que suas igrejas não fossem transformadas em mesquitas (há posts na página sobre as igrejas que viraram mesquitas, em especial a Hagia Sophia); (ii), que ninguém interferisse em seus casamentos, funerais e outros ritos da igreja; e (iii), que eles fossem livres para celebrar a Páscoa com todos os seus ritos e que, durante as três noites da celebração, os portões de Fener, o bairro grego, permanecessem abertos. Ainda segundo Babinger (1978), os privilégios concedidos ao patriarca foram tantos que seria quase o equivalente a instituir um Estado Cristão dentro do próprio Estado Otomano. Não apenas, mas o sultão fez com que o patriarca Genádio escrevesse um tratado sobre o Cristianismo para que ele pudesse ler e estudar mais sobre a fé cristã (INALCIK, 2000).
O legado de Genádio II é, assim, intrinsecamente ligado à sobrevivência e reorganização da Igreja Ortodoxa sob um novo poder. Sua aceitação do cargo patriarcal (embora relutantemente, diga-se de passagem), num momento de profundo trauma e desorientação para a comunidade grega, representou um passo fundamental para a continuidade institucional da Igreja e para a definição do estatuto dos cristãos ortodoxos no emergente Império Otomano. Desta forma, Genádio desempenhou um papel indispensável na fundação do Rum Milleti que cruzaria os séculos, embora, como muito bem aponta Papademetriou (2015), não seja possível resumir todo esse período posterior no encontro de Genádio com o Sultão.
Mehmed II e Genádio II retratados num mosaico do século XX.
Bibliografia
BABINGER, Franz. Mehmed the Conqueror and his Time. Princeton University Press, 1978.
BARKEY, Karen. Empire of Difference: The Ottomans in Comparative Perspective. Cambridge University Press, 2008.
CROWLEY, Roger. 1453: The Holy War for Constantinople and the Clash of Islam and the West. Hyperion, 2005.
HARRIS, Jonathan. The End of Byzantium. Yale University Press, 2012.
INALCIK, Halil. The Ottoman Empire: The Classical Age 1300-1600. Weidenfeld & Nicolson, 2000.
PAPADEMETRIOU, Tom. Render unto the Sultan: Power, Authority, and the Greek Orthodox Church in the early Ottoman Centuries. Oxford University Press, 2015.