Mehmed Zillî, conhecido como Evliya Çelebi, foi um dos mais célebres viajantes do século XVII, tendo se aventurado pelos territórios do Império Otomano e suas adjacências ao longo dos últimos 40 anos de sua vida, justamente durante o período áureo de produção e expansão cultural do império. “Çelebi” era um título honorífico de origem turca que significa “cavalheiro”, “nobre”, “de boa educação”, derivado do árabe “Djellaba” (“mercador, comerciante”), ou seja, aquele que ocupa posição de destaque na pirâmide social.
Nascido em Constantinopla (atual Istambul, na Turquia) no ano de 1611, já possuía proximidade com os círculos da realeza otomana: sua mãe era parente do Pasha (grão-vizir, conselheiro do sultão) Melek Ahmed. Seu pai, também chamado Mehmed Zillî, era joalheiro-chefe do palácio de Edirne, antiga residência dos sultões, e dervixe, devoto do caminho ascético das confrarias esotéricas (tariqah) do sufismo, corrente esotérica dos muçulmanos sunitas. Evliya recebeu educação junto à corte imperial do ulemás (autoridades e estudiosos da doutrina e da lei islâmicas), destacando-se pela sua notória capacidade de recitação do Corão e pelos seus dotes musicais. Além de receber uma boa educação, aprendeu árabe, persa e depois aprendeu grego com o vizinho de seu pai, o joalheiro Simyon, além de ter assistido algumas aulas de latim.
A casa de Evliya Çelebi em Kütahya, hoje usada como museu | Wikimedia
Segundo relatos do próprio Evliya, ele teve seu primeiro sonho no ano de 1630, quando ainda tinha 19 anos, em que recebeu orientações para começar sua jornada itinerante. O primeiro lugar onde começou a conhecer e a escrever foi sua própria terra natal. Continuou seus estudos e, entre os anos de 1636 e 1638, foi empregado como clérigo e artista na corte de Murad IV. Dois anos depois, em 1640, vai rapidamente para Bursa fazer algumas anotações, mas o faz em segredo. É duramente repreendido por seu pai, mas, notando a paixão do filho por aventuras, Mehmed pai permite que ele viaje pelo menos com o seu consentimento. Depois de ter dado alguns conselhos, pede para que Evliya conheça o mundo todo, escreva o que vê e aprenda a compilar tudo num Diário de Viagem. Então, aproveitando a infraestrutura do império (e sua posição nele), começa as viagens que o levaram de Belgrado a Bagdá e da Crimeia ao Cairo, às vezes como representante oficial do governo e às vezes por conta própria.
Nos locais onde visitou, Evliya primeiro recebeu informações dos administradores daquela localidade, examinou os registros e cadastro da região, conversou com o povo e, além de tudo isso, anotou as informações que obteve visitando, vendo e medindo tudo por conta própria. Ele guardou essas informações consigo e as reuniu no Egito, sua última parada e provável local de falecimento no ano de 1682, anotando-as sistematicamente na ordem de suas viagens, numa obra de 10 volumes conhecida hoje como Seyahâtname (“Diário de viagem”). A cópia original foi escrita em caligrafia rik’a em papel grosso e parte desses manuscritos são encontrados no Museu Nacional do Palácio de Topkapi.
Evliya chegou a fazer descrições sobre o processo de captação e venda do petróleo feitos pelos comerciantes de Baku, inclusive como anualmente as receitas das vendas iam para a dinastia xiita dos safávidas, no atual Irã; escreveu sobre o tráfico monumental de escravizados no Canato da Crimeia, a ponto de haver mais escravos do que muçulmanos livres na região; relatou suas duas idas à Palestina, bem como a antiguidade e a unanimidade da forma como aquelas terras eram chamadas, “Palestina”. No continente europeu, chegou a testemunhar a presença dos nativos americanos em Roterdã, graças a convite para conhecer a corte neerlandesa, e que se queixavam da destruição que os europeus estavam causando ao seu mundo. Mas foi em Viena, convidado em 1665 para ver de perto a corte do Sacro Imperador Romano Leopoldo I, onde ele fez um de seus relatos mais pitorescos sobre a aparência do monarca:
“Pode-se quase duvidar que o Todo-Poderoso realmente pretendeu, nele, criar um homem (…) Ele é um jovem de estatura mediana, sem barba, quadris estreitos, não exatamente gordo e corpulento, mas não exatamente abatido. Por decisão de Deus, ele tem uma cabeça em forma de garrafa, pontuda no topo como o gorro de um dervixe dançante ou como uma pêra de cabaça. Sua testa é plana como uma tábua e ele tem sobrancelhas pretas grossas, bem separadas, sob as quais seus olhos castanhos claros, redondos como círculos e contornados por cílios pretos, brilham como os orbes de uma coruja-de-chifres.
Seu rosto é longo e afiado como uma raposa, com orelhas tão grandes quanto chinelos de criança, e um nariz vermelho que brilha como uma uva verde e é tão grande quanto uma berinjela da Moreia. De suas narinas largas, em cada uma das quais ele poderia enfiar três dedos de cada vez, caem pelos tão longos quanto bigodes de um espadachim de 30 anos, crescendo em emaranhados confusos com os pelos do lábio superior e com seus bigodes pretos, que chegam até suas orelhas. Seus lábios estão inchados como os de um camelo e sua boca poderia segurar um pão inteiro de uma vez. Seus dentes também são tão grandes e brancos quanto os de um camelo. Sempre que ele fala, a saliva jorra e espirra sobre ele de sua boca e lábios de camelo, como se ele tivesse vomitado. Então os deslumbrantemente belos pajens que estão ao lado dele enxugam a saliva com enormes lenços vermelhos. Ele mesmo penteia constantemente seus cachos e madeixas com um pente. Seus dedos parecem pepinos de Langa.
Pela vontade do Deus Todo-Poderoso, todos os imperadores desta casa são igualmente repulsivos na aparência. E em todas as suas igrejas e casas, bem como em suas moedas, o imperador é retratado com esta cara feia; de fato, se algum artista o retrata com uma cara bonita, ele manda executar aquele homem, pois considera que o desfigurou. Pois esses imperadores são orgulhosos e jactanciosos de sua feiura”.
Retrato de Leopoldo I (1640-1705), Sacro Imperador Romano
Essa apresentação rocambolesca e até bem humorada de Leopoldo não se trata meramente de uma caricatura, mas também de como a endogamia, enquanto estratégia matrimonial dos Habsburgos que durou séculos, começou a ter efeitos visíveis em seus descendentes. Estima-se que, de 1516 a 1700, mais de 80% dos casamentos dentro do ramo espanhol da dinastia Habsburgo eram consanguíneos. Em outras palavras, eram casamentos entre parentes de sangue próximos. Essas uniões frequentemente tomavam a forma de casamentos entre primos de primeiro grau, primos de segundo grau duplos e tios/sobrinhas. Essas deformações ficaram tão evidentes na fisionomia da família que o prognatismo mandibular, condição de desalinho do desenho da mandíbula por conta de sua projeção excessiva, ganhou o nome de “Mandíbula dos Habsburgos”.
Referências
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