Um novo e perturbador escândalo emergiu envolvendo as forças especiais de elite do Reino Unido, com mais de 30 ex-soldados quebrando anos de silêncio para testemunhar sobre crimes de guerra cometidos por seus colegas durante operações no Afeganistão e no Iraque. As alegações, detalhadas em uma investigação do programa Panorama da BBC (Special Forces: I saw war crimes), pintam um quadro sombrio de execuções sumárias, encobrimentos e uma cultura de impunidade dentro das fileiras do Special Air Service (SAS) e, pela primeira vez em acusações desta gravidade, do Special Boat Service (SBS), o regimento de forças especiais de elite da Marinha Real.
Os testemunhos dos veteranos descrevem um padrão de comportamento brutal e criminoso que se estendeu por mais de uma década, um período significativamente maior do que os três anos que já estão atualmente sob escrutínio por um inquérito público no Reino Unido. As acusações centrais incluem a execução rotineira de civis desarmados, prisioneiros algemados e até crianças. Em alguns relatos, as vítimas eram mortas enquanto dormiam durante invasões noturnas a complexos residenciais, sem apresentarem qualquer ameaça imediata e sem qualquer envolvimento com o Talibã.
Um dos relatos mais chocantes detalha como soldados algemavam indivíduos, incluindo um menino afegão claramente menor de idade e longe da idade de combate, e depois os executavam a tiros. Após o assassinato, as algemas de plástico eram removidas e uma arma “plantada” ao lado do corpo para forjar uma justificação para o ato. Essas execuções de prisioneiros, segundo um veterano, tornaram-se “rotina”, indicando uma prática sistemática e não incidentes isolados.
Há também relatos envolvendo execuções sumárias de insurgentes feridos, o que constitui clara violação das leis internacionais. Dentre esses relatos, um deles se destaca: a vítima, que se encontrava ferida por disparos, estava sendo atendida por um médico quando um soldado britânico se aproximou e a matou com um tiro na cabeça. Em outro caso, um dos soldados mata a vítima, já ferida e indefesa, com golpes de faca, demonstrando o grau de crueldade de algumas execuções. É ainda reportado no documentário um caso em que os golpes eram “clínicos” e não apenas facadas aleatórias na vítima.
Os veteranos também descreveram uma “mentalidade de bando” (mob mentality) e o desenvolvimento de “traços psicopáticos graves” entre alguns colegas, que agiam como se “não houvesse leis” e eles fossem “intocáveis”. Um ex-soldado do SAS admitiu que alguns soldados mantinham contagens pessoais de mortes, tratando a guerra como uma competição para ver quem matava mais, com um indivíduo sendo descrito como “notório” por tentar matar alguém em cada missão. Outro descreveu o ato de matar como algo que “poderia se tornar viciante”, com soldados ficando “intoxicados por esse sentimento”. É denunciado ainda no documentário que os esquadrões tentavam superar o número de mortes do esquadrão precedente.
Para encobrir esses assassinatos ilegais, era prática comum o uso de “armas de reserva” (drop weapons) [1]. Os soldados carregavam armas, como fuzis AK-47 e granadas que não podiam detonar, para plantá-las nos corpos das vítimas. Isso era feito para que as fotografias tiradas pelas equipes das forças especiais no local da ocorrência pudessem sugerir que os mortos estavam armados, justificando assim os disparos.
A falsificação de relatórios pós-operacionais também era uma tática empregada, muitas vezes com o auxílio de oficiais superiores. Os veteranos explicaram que aprenderam a redigir relatórios de incidentes graves de forma a não acionar um encaminhamento para a “corregedoria” (military police), por assim dizer. Um oficial de inteligência que trabalhou com o SBS descreveu relatórios que alegavam que algumas vítimas vieram a óbito pois se encontravam no meio do tiroteio, enquanto as fotos mostravam corpos com “múltiplos tiros na cabeça”, indicando execuções sumárias. Os relatórios eram frequentemente chamados de “ficção”. Vejamos um dos depoimentos:
Se parecesse que um tiroteio poderia representar uma violação das regras de combate, você receberia um telefonema do consultor jurídico ou de um dos oficiais da equipe no quartel-general. Eles pegariam e o ajudariam a esclarecer a linguagem. “Você se lembra de alguém fazendo um movimento brusco?” ‘Ah, sim, agora me lembro’. Esse tipo de coisa. Isso foi incorporado à nossa maneira de operar.
O conhecimento dessas atrocidades não se limitava a pequenas equipes ou esquadrões individuais. Segundo os testemunhos, dentro da estrutura de comando das Forças Especiais do Reino Unido, “todos sabiam” o que estava acontecendo, e havia uma “aprovação tácita” para essas ações. Alega-se que membros mais graduados do SAS instruíam operadores mais jovens a matar detidos do sexo masculino, usando frases sugestivas como “ele não vai voltar para a base conosco” ou “este detido, certifique-se de que ele não saia do alvo”.
As alegações se estendem até o mais alto nível político, com o programa Panorama revelando que o então primeiro-ministro David Cameron foi repetidamente alertado sobre os assassinatos de civis pelas forças especiais britânicas no Afeganistão. O ex-presidente afegão Hamid Karzai teria levantado “consistentemente e repetidamente” essas preocupações com Cameron durante suas sete visitas ao Afeganistão entre junho de 2010 e novembro de 2013, o mesmo período que está sendo investigado. Um ex-embaixador dos EUA na OTAN, General Douglas Lute, afirmou que Karzai era tão persistente em suas queixas que nenhum líder ocidental de alta patente poderia ter ignorado a questão, desde diplomatas até militares. Essa afirmação encontra eco com a entrevista concedida por Rangin Dadfar Spanta, ex-ministro das relações exteriores do Afeganistão.
Em resposta às alegações, um porta-voz do Ministério da Defesa do Reino Unido afirmou que estão “totalmente comprometidos” em apoiar o inquérito público em andamento e instou todos os veteranos com informações relevantes a se apresentarem, mas declarou ser “inapropriado” comentar alegações específicas dentro do escopo do inquérito. Um porta-voz de Cameron disse que, segundo se recorda, as preocupações levantadas por Karzai eram sobre as forças da OTAN em geral, e não sobre operações específicas das Forças Especiais do Reino Unido, negando qualquer conluio para encobrir irregularidades, sendo também uma clara contradição com os relatos aqui apresentados e referendados por autoridades do mais alto calibre.
Bruce Houlder, ex-juiz britânico, expressou a esperança de que o inquérito examine o conhecimento de Cameron sobre as baixas civis e enfatizou a necessidade de “saber até onde a podridão chegou”. Se os relatos forem verdadeiros – e muito provavelmente são –, “podridão” não passará de um eufemismo perto do que a realidade nos denuncia.
Há ainda na produção uma denúncia gravíssima: afegãos que buscavam asilo no Reino Unido e lutaram contra o Talibã, os chamados Triples, tiveram o pedido negado porque poderiam servir como testemunhas contra os crimes de guerra cometidos pelas forças britânicas. Segundo o documentário, alguns desses “deixados para trás” já sofreram represálias do grupo que agora governa o país após a retirada das tropas norte-americanas.
O documentário da rede britânica BBC está disponível gratuitamente para quem se encontra no Reino Unido em sua própria plataforma de vídeos e documentários, iPlayer, e conta com entrevistas em primeira mão com os soldados britânicos (interpretados por atores para preservar a identidade dos denunciantes) e com familiares das vítimas. Os relatos são assombrosos e os depoimentos são emocionantes, mas ainda assim recomendamos que assistam.
Assistimos ao documentário para redigir esse texto e aqui trouxemos as principais informações contidas na produção, mas infelizmente algumas informações acabam ficando de fora, afinal o documentário tem duração de 1 hora e esse texto pode ser lido em apenas 2 a 5 minutos.
Notas
[1] Drop weapons, que aqui chamamos de “arma de reserva”, é uma arma ilegal que é deliberadamente colocada em um local (ou próximo ao corpo da vítima) para incriminar alguém. A arma de reserva é geralmente usada nos casos em que o policial/soldado sente que alguém precisa ser executado, buscando justificar seu ato como “legítima defesa” ou por outro motivo semelhante. Desnecessário dizer que se trata de um crime cuja justificativa é um senso moral completamente deturpado.
Referências
AL JAZEERA. UK veterans allege war crimes by British forces in Afghanistan, Iraq. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2025/5/12/uk-veterans-allege-war-crimes-by-british-forces-in-afghanistan-iraq>. Acesso em: 15 maio. 2025.
ARAB NEWS. UK veterans break silence on ‘barbaric’ killings in Iraq, Afghanistan. Arab news, 12 maio 2025. Disponível em: <https://www.arabnews.com/node/2600409/world>. Acesso em: 15 maio. 2025.
KABULNOW. Veterans expose civilian killings by UK Special Forces in Afghanistan. Disponível em: <https://kabulnow.com/2025/05/british-veterans-allege-war-crimes-by-uk-special-forces-in-afghanistan/>. Acesso em: 15 maio. 2025.
O’GRADY, H.; GUNTER, J.; TINMAN, R. “Children handcuffed and shot” – ex-UK Special Forces break silence on war crime claims. BBC, 12 maio 2025. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/articles/cj3j5gxgz0do>. Acesso em: 15 maio. 2025.
QUINN, B. UK special forces veterans accuse colleagues of war crimes in Iraq and Afghanistan. The guardian, 12 maio 2025. Disponível em: <https://www.theguardian.com/uk-news/2025/may/12/former-uk-special-forces-personnel-accuse-colleagues-of-war-crimes>. Acesso em: 15 maio. 2025.
ŞAHIN, T. TRT Global – UK forces veterans expose “war crimes” involving unarmed civilians in Iraq, Afghanistan. Disponível em: <https://trt.global/world/article/e77d3c5d6a45>. Acesso em: 15 maio. 2025.
UK Special Forces veterans expose “war crimes” involving children in Iraq, Afghanistan. Disponível em: <https://www.aa.com.tr/en/europe/uk-special-forces-veterans-expose-war-crimes-involving-children-in-iraq-afghanistan/3564789>. Acesso em: 15 maio. 2025.
Link para o documentário: <https://www.bbc.co.uk/iplayer/episode/m001ykkf/panorama-special-forces-i-saw-war-crimes>.