Conexões Revolucionárias: o Islamismo Político Sunita e Xiita no Século XX

Facebook
Twitter
WhatsApp

Após o término da Primeira Guerra Mundial, o cenário político no Oriente Médio foi redesenhado a partir de movimentos de inspiração nacionalista, que ora promoviam reformas profundas na estrutura administrativa dos sistemas anteriores de governo, ora serviam de diretrizes para fundação de novíssimos Estados-Nação e suas respectivas fronteiras. Percebendo que essa conformação era muito favorável aos interesses geopolítico dos capitais vindos da Grã-Bretanha, França, Alemanha e demais países europeus, muitos grupos passaram a opor uma resistência que pode se desdobrar em duas linhas de força principais: uma que pretendia aprofundar o discurso nacionalista, denunciando as empresas estrangeiras como principais fontes da miséria do povo e renunciando a qualquer caráter religioso que um regime possa ter; e outra, de cariz evidentemente religioso, defendendo os princípios do Islã como único fundamento social sólido para fazer frente a essa mesma presença estrangeira. Nessa última vertente, destacam-se as figuras do egípcio Sayyid Qutb e do iraniano Navvab Safavi cujas ideologias e ações convergiram em um momento crucial da história da região e foram considerados precursores do “islamismo radical”.

Sayyid Qutb, nascido em Musha no Alto Egito, em 1906, era filho de um ativista relativamente conhecido das redondezas, que organizava reuniões semanais para recitar o Corão e discutir acontecimentos políticos. Segundo seus biógrafos, ele imitava, já aos 12 anos, os acadêmicos ao ler os livros de sua biblioteca particular e dar palestras ao resto do vilarejo onde nasceu, de forma que muitas mulheres aguardavam sua presença para passar perguntas pra ele, além de ministrar rituais de exorcismo (ruqya), dado os seus estudos no âmbito do misticismo islâmico. Desde muito cedo, chegou a nutrir um desdém para com a formação religiosa de sua época, por entender suas instituições mais como instrumentos políticos de manipulação do pensamento do que espaços genuínos de cultivo intelectual e sagrado, além de considerar seus currículos extremamente unilaterais, voltados única e exclusivamente para o ensino religioso.

undefined

Sayyid Qutb

Entre os anos de 1929 e 1933, muda-se para o Cairo e trabalha como professor no Ministério de Instrução Pública, onde inicia sua carreira como autor e crítico literário, campo onde concentra parte considerável de sua produção bibliográfica (24 livros publicados e mais de 500 artigos). Em 1939, torna-se Ministro da Educação e passa a ter amplo acesso aos círculos intelectuais, políticos e literários de sua época. Depara-se, em 1940, com as ideias de Alexis Carrel, eugenista francês e ganhador do prêmio Nobel, que criticava a civilização ocidental como promotora de um individualismo egoísta disposta numa rede entorpecedora de controle e disciplina, perspectiva que servirá de base para suas posteriores críticas. Aprofundando seus estudos no ramo da administração da educação, passa uma temporada nas universidades de Stanford e Colorado entre 1948 e 1950, onde sua admiração pelo ocidente foi ficando cada vez mais frágil.

Retorna ao Egito em 1950 e, no ano seguinte, publica um artigo chamado “A América que eu vi”, entabulando uma série de críticas ao estilo de vida americano como, por exemplo, a superficialidade nas conversas e nas amizades; o individualismo e materialismo extremado; a convivência misturada entre homens e mulheres nos espaços (“à moda de animais”); o apoio dado a Israel; a estética e a produção artísticas rudimentares, vendo o Jazz, por exemplo, como um barulho inventado pelos negros para satisfazer suas inclinações mais primitivas e bestiais. É nesse momento também que o Egito está às portas de um golpe de Estado levado a cabo pelo Movimento dos Oficiais Livres, chefiado por Gamal Abdel Nasser e de forte caráter nacionalista e secular, além de Sayyid ter aceitado o convite para fazer parte da Irmandade Muçulmana, tornando-se editor-chefe dos canais de propaganda da organização e, posteriormente, assumindo seu conselho consultivo.

A Irmandade Muçulmana, organização sunita fundada em 1928 por trabalhadores do Canal do Suez e capitaneada pelo professor Hassan al-Banna, tinha como objetivo inicial promover um “ethos islâmico” de altruísmo e dever cívico, atuando no trabalho educacional e de caridade, opondo-se principalmente às injustiças políticas e sociais do mundo, quase sempre atreladas ao domínio britânico no Egito. À medida que ia ganhando tração política e as tensões iam aumentando, a Irmandade também planejou e executou atentados terroristas que chegaram a assassinar o primeiro-ministro Mahmoud Pasha em 1948 e a incendiar 750 edifícios no Cairo, no ano de 1950.

undefined

Hassan al-Banna

Num primeiro momento, a Irmandade chegou a apoiar os oficiais nacionalistas, que golpeiam a monarquia títere dos britânicos no ano de 1952 e passa a tomar o poder a partir de então, na esperança de que o novo governo fosse de natureza islâmica. Nasser, inclusive, encontrava-se com frequência com Qutb para falar sobre os horizontes da revolução. Porém, a Irmandade e Qutb perceberam a escolha política de Nasser pelo secularismo e romperam com o governo, chegando a serem acusados inclusive de conspirar pelo assassinato do então presidente Gamal Nasser. Qutb é preso, torturado e vê muitos de seus correligionários da Irmandade passando pelas mesmas condições. Foi solto em 1964 para ser novamente preso no ano seguinte, condenado por traição, tentativa de golpe de estado e sentenciado à pena por enforcamento, o que realmente aconteceu no dia 29 de agosto de 1966.

undefined

Gamal Abdel Nasser

É nesse ponto que Qutb emerge como um dos principais teóricos do islamismo radical, considerado por alguns como o principal nome do “salafi-jihadismo”, ou seja, tradição teológico-política que surge nos fins do século XIX e defensora de um retorno às origens do Islã, que corresponde à pureza dos ensinamentos repassados às três primeiras gerações de seguidores do Profeta (salaf), por meio do uso da violência armada como meio para instaurar uma sociedade islâmica e para combater os abusos, as heresias e as imoralidades. Foi nesse período de prisão que Qutb compôs suas obras mais influentes: o compilado de comentários Fi Zilal al-Qur’an (“À sombra do Corão”) e o manifesto do Islã político chamado Ma’alim fi-l-Tariq (“Marcos”). Nelas, é possível enxergar uma visão de mundo dualista, dividindo a sociedade entre o Islã e a “Jahiliyyah” (período de ignorância anterior à vinda do Profeta Muhammad) e um chamado à luta, inclusive armada, contra os regimes seculares, sendo necessário, para isso, uma vanguarda revolucionária apta tanto para defender militarmente os princípios verdadeiros do Islã contra os opositores da fé quanto para construir uma comunidade de fiéis de dimensão local, regional e até mesmo global, baseada no Tawhid (monoteísmo islâmico) e na Sharia. Apesar de tomar de empréstimo alguns jargões táticos dos comunistas para a tomada violenta do poder, o autor egípcio entendia o marxismo como uma doutrina perversa que ia de encontro à natureza humana e era muito mais simpático ao enquadre conspiratório antissemita do “judeu internacional” do que pela vitória do proletariado internacional visando uma sociedade sem classes.

Após a morte do seu irmão, Muhammad Qutb se muda para a Arábia Saudita e se torna professor de Estudos Islâmicos lá, editando, publicando e promovendo o trabalho de seu irmão Sayyid. Um dos alunos de Muhammad Qutb e mais tarde um seguidor fervoroso foi Ayman Al-Zawahiri, que se tornou membro da Jihad Islâmica Egípcia e, mais tarde, um mentor de Osama bin Laden. Bin Laden assistia regularmente a palestras públicas semanais de Muhammad Qutb, na Universidade Rei Abdulaziz, onde liam e debatiam com frequência as obras de Sayyid.

Outro importante nome de uma linha similar, porém no âmbito xiita iraniano, é Sayyid Mojtaba Mir-Lohi. Nascido no Irã em 1924, era filho de um clérigo que ficou conhecido por estapear o rosto do Ministro do Xá Reza Pahlevi, Ali Davar, tendo herdado o sobrenome do tio pelo qual ficou conhecido, “Navvab Safavi”, “o deputado dos Safávidas”, dinastia iraniana xiita que governou o Irã entre os séculos XVI e XVIII. Sua trajetória foi marcada pelo ativismo político desde a juventude, com manifestações contra a proibição do hijab nas escolas que frequentava e incitando greves na Iranian Oil Company, indústria petrolífera britânica, até que se muda para Najaf, no Iraque, para aprofundar sua formação teológica. Em 1945, funda a Fada’iyan-e Islam, organização política que ficou célebre pelos assassinatos políticos, lembrando muito o estilo de outro líder xiita do período medieval, o ismailita Hassan i-Sabbah, fundador da sociedade dos assassinos (e que inspirou a franquia de jogos “Assassin’s Creed”).

undefined

Navvab Safavi

Tal como seu correlato e colega egípcio, Navvad também chegou a apoiar a “Frente Nacional”, capitaneada pelo político e advogado iraniano Mohammed Mossadegh, ajudando a organizar greves contra autoridades oficiais do conselho ministerial do Xá, realizando reuniões públicas em apoio aos árabes palestinos e promovendo manifestações violentas, tendo como pauta comum a nacionalização das riquezas oriundas da exploração petróleo. Porém, quando Mossadegh foi escolhido pelo Xá para ser primeiro-ministro em 1951, a facção de Navvad foi surpreendida pela sua recusa em implementar a lei da Sharia e nomear líderes religiosos conservadores para altos cargos, rompendo oficialmente com ele. Dois anos depois, Mossadegh é surpreendido com a revolução iraniana de 1953, liderada em parte por figuras religiosas que viam no ministro um homem ímpio e anti-islâmico.

undefined

Mohammed Mossadegh

Importa dizer que foi Navvab Safavi que apresentou a Khomeini o ideário radical da Irmandade Muçulmana e sua obra, Barnameh-ye Inqalabi-ye Fada’ian-i Islam (“O Programa Revolucionário do Fada’ian-e Islam”), publicada em 1950, foi amplamente utilizada como fonte para as posteriores reformas que o aiatolá iria implementar no âmbito da política externa (crítica à Grã-Bretanha e à URSS + antissionismo + islamismo xiita como nacionalismo iraniano) e da economia (modelo sismondiano de trocas justas entre lojistas e artesãos mediadas pelo princípio da caridade e do imposto religioso), divergindo apenas do regime de governo (Navvab defendia a Monarquia, mas Khomeini conduziu a formação de uma República). Após uma tentativa frustrada de assassinar Hosein Ala’, Navvab Safavi foi preso e condenado à morte por fuzilamento em 25 de dezembro de 1955 sob acusações de terrorismo, junto com outros três camaradas, pelo mesmo tribunal militar.

undefined

Ruhollah Khomeini

Ambos chegaram a se encontrar no ano de 1953 e tiraram uma foto juntos, sendo ambos os pensadores revolucionários radicais que mudariam a face do islamismo político tanto sunita quanto xiita por mais de meio século após aquele encontro. Qutb, apesar de ser sunita, possuía uma certa afinidade com o pensamento revolucionário xiita. Em seu livro Al-Adala al-Ijtima’iyya fi’l-Islam (“A Justiça Social do Islã”), publicado em 1949, figuras do Islã primitivo que possuem uma relevância positiva na literatura sunita como Osman Ibn Affan e Amr Ibn al-As são criticadas no maior estilo xiita por Qutb. No mesmo livro, o movimento xiita dos Qarmatas contra a dinastia Abássida no século X, é descrito como “uma expressão do espírito islâmico, que combate a exploração, governos injustos e diferenças de classes. Essas indicativas fizeram com que suas obras fossem recepcionadas e traduzidas para o persa pelo aiatolá Khomeini no ano de 1966.

Sayyid Qutb e Navvab Safavi

Referências

BENJAMIN, Daniel; SIMON, Steven. The Age of Sacred Terror. [Local: Editora], [Ano]. p. 62.

CALVERT, John. Sayyid Qutb and the Origins of Radical Islamism. Oxford: Oxford University Press, 2009. pp. 40–43.

KAZEMI, Farhad. The Fada’iyan-e Islam: Fanaticism, Politics and Terror. In: ARJOMAND, Said Amir (ed.). From Nationalism to Revolutionary Islam. SUNY Press, 1984. p. 160.

KHALIDY, Saleh. Sayyid Qutb: From Birth to Martydom. 3. ed. Dar Al-Qalam, 1999.

McHUGO, John. Uma história concisa dos árabes. Nova York: The New Press, 2013. p. 207–208.

MOIN, Baqer. Khomeini: Life of the Ayatollah. I.B.Tauris, 1999. p. 246.

MUSALLAM, Adnan. From Secularism to Jihad: Sayyid Qutb and the Foundations of Radical Islamism. [Local: Editora]: Greenwood Publishing Group, 2005. p. 30.

SHEPARD, William. Sayyid Qutb and Islamic Activism: a translation and critical analysis of Social Justice in Islam. Leiden: E.J. Brill, 1996. p. 62.

SIVAN, Emmanuel. Radical Islam: Medieval Theology and Modern Politics. Yale University Press, 1985.

TAHERI, Amir. The Spirit of Allah: Khomeini and the Islamic revolution. Adler & Adler, 1986.

YUSUF, Badmas ‘Lanre. Sayyid Quṭb: A Study of His Tafsīr. The Other Press, 2009. p. 58.

BEHDAD, Sohrab. Islamic utopia in pre-revolutionary Iran: Navvab Safavi and the Fada’ian-e Eslam. Estudos do Oriente Médio, v. 33, n. 1, p. 40-41, 1997.

KHATAB, Sayed. ‘Hakimiyyah’ e ‘Jahiliyyah’ no Pensamento de Sayyid Qutb. Estudos do Oriente Médio, v. 38, n. 3, p. 145–170, 2002.

MURA, Andrea. A dinâmica inclusiva do universalismo islâmico: do ponto de vista da filosofia crítica de Sayyid Qutb. Filosofia comparativa, v. 5, n. 1, p. 29–54, 2014.

UNAL, Yusuf. Sayyid Quṭb no Irã: traduzindo o ideólogo islâmico na República Islâmica. Revista de Estudos Islâmicos e Muçulmanos, v. 1, n. 2, p. 50–55, nov. 2016.

ÚLTIMOS ARTIGOS PUBLICADOS