Assim como no Cristianismo, há no Islã uma série de grupos e pessoas que acreditam piamente na harmonização da religião islâmica com ideais socialistas. Tal como ocorre nas trincheiras ideológicas de sua irmã abraâmica, existem aqueles no Islã que defendem o exato oposto: a total incompatibilidade entre ideias socialistas com a religião, apesar dos elementos comuns, como conceitos de “justiça social”, caridade e a condenação aos postulados predatórios inerentes ao capitalismo ou as decorrências inevitáveis dele: juros, consumismo, destruição do meio-ambiente e assim por diante.
Independentemente da visão islâmica mais ortodoxa e mainstream a respeito da compatibilidade entre Islã e socialismo, há na história islâmica diversos indivíduos e movimentos que defenderam e defendem tais harmonizações, inclusive com experiências comunistas em países que há séculos são de tradição islâmica. Nesse artigo buscaremos abordar da forma mais imparcial possível esse fenômeno, sem adentrarmos em juízos de valor sobre a possível compatibilização ou não com o Islã, divulgando o assunto nas palavras de seus próprios idealizadores e membros e contando um pouco da história de figuras proeminentes nesse meio.
Dito isso, o socialismo islâmico não se apresenta como uma ideologia monolítica, mas como um espectro de ideias que foram articuladas por diferentes líderes e intelectuais muçulmanos ao longo do século XX. O termo foi cunhado para descrever uma forma de socialismo “mais espiritualizada”, que se distanciava do materialismo ateísta associado ao marxismo-leninismo, ao mesmo tempo que rejeitava as desigualdades inerentes ao capitalismo.
A base teórica do socialismo islâmico reside na reinterpretação de fontes sagradas, como o Alcorão e a Sunnah (os ditos e atos do Profeta Muhammad), para justificar suas propostas. Conceitos como o Zakat — a caridade obrigatória que funciona como um imposto sobre a riqueza para distribuição aos pobres — são vistos como um mecanismo socialista intrínseco ao Islã, destinado a reduzir a acumulação de capital e promover a equidade. Seus defensores frequentemente citam o exemplo do primeiro estado islâmico em Medina, estabelecido pelo próprio Profeta, como um modelo de governo baseado no bem-estar social e na justiça. Figuras históricas como Abu Dharr al-Ghifari, um companheiro do Profeta que protestou contra o acúmulo de riqueza pela classe dominante durante o califado de Uthman, são reivindicadas como antecedentes do pensamento socialista islâmico.
Esta ideologia surgiu em grande parte como uma resposta às condições históricas do mundo muçulmano no século XX: a luta contra o imperialismo e o colonialismo, a necessidade de desenvolvimento econômico e a busca por uma identidade política que não fosse nem capitalista ocidental nem comunista soviética. O Socialismo Islâmico ofereceu uma “terceira opção”, uma forma de modernização e soberania nacional que era, ao mesmo tempo, autêntica à cultura e fé locais. Esse sincretismo foi especialmente proeminente nos trabalhos do escritor egípcio Salama Moussa (1887-1958), que defendia a fusão do socialismo com o nacionalismo egípcio como uma ferramenta de resistência contra o domínio britânico, fenômeno que também veio a ocorrer na Índia com figuras como Ubaidullah Sindhi, que inclusive chegou a viajar para a Rússia durante o período da Revolução de 1917.
Dentro do movimento, é possível distinguir diferentes vertentes. Uma ala mais à esquerda, influenciada pelo marxismo, defendia o internacionalismo proletário e a colaboração com movimentos socialistas globais. Como representantes dessa ala podemos mencionar Yasser Arafat na Palestina e Sukarno na Indonésia, a título de exemplo. Por outro lado, uma ala mais à direita, muitas vezes associada à terceira-posição, enfatizava o renascimento islâmico e a implementação da Sharia, mantendo distância de outros movimentos socialistas internacionais. Nessa ala, podemos mencionar Muhammad Iqbal como exemplo.
Apesar das diferenças, o objetivo comum era a criação de uma sociedade mais justa e igualitária, baseada em um Estado de bem-estar social que garantisse renda, pensões e seguridade social para todos. Vejamos agora algumas figuras importantes dentro desse movimento.
Mustafa Lutfi al-Manfaluti (1876-1924)
Mustafa Lutfi al-Manfaluti foi um proeminente escritor, poeta e ensaísta egípcio, nascido na cidade de Manfalut. Embora não se autodenominasse um socialista, seu trabalho é considerado precursor das preocupações sociais que mais tarde alimentariam o Socialismo Islâmico. Tendo memorizado o Alcorão aos 12 anos, al-Manfaluti foi educado na prestigiosa Universidade Al-Azhar, no Cairo, e se destacou por sua prosa eloquente e sua capacidade de adaptar obras da literatura francesa para o público árabe. Ele não lia francês, mas pedia a amigos que traduzissem as obras, que ele então reescrevia com seu estilo, infundindo-as com uma sensibilidade árabe e islâmica.
Mustafa Lutfi al-Manfaluti em 1916.
A contribuição de al-Manfaluti para o pensamento “socialista” veio através de suas críticas às injustiças e desigualdades de sua época. Em sua obra mais famosa, Al-Nazarat (“Visões” ou “Perspectivas”), uma coleção de artigos e ensaios, ele abordou temas como a pobreza, a corrupção e o declínio moral da sociedade. Seus escritos serviam como um espelho das mazelas sociais, despertando uma consciência crítica entre seus leitores. Ao expor o sofrimento dos oprimidos e criticar a opulência dos ricos, ele pavimentou o caminho ético para movimentos de reforma social, fornecendo a base moral sobre a qual o Socialismo Islâmico seria construído.
Abd al-Rahman al-Kawakibi (c. 1854-1902)
Abd al-Rahman al-Kawakibi foi um autor, pensador liberal e reformista sírio, conhecido por sua oposição ferrenha ao Império Otomano. Nascido em Aleppo em uma família influente, ele se tornou uma das vozes mais proeminentes na defesa da soberania árabe e do pan-arabismo. Seus escritos, que continuam a ser relevantes, focavam na necessidade de reformas políticas e na identidade islâmica. Ele articulou suas ideias em dois livros principais, A Natureza da Tirania e Mãe de Todas as Aldeias.
Embora também não tenha se intitulado como socialista, al-Kawakibi foi interpretado por vários estudiosos, como Charles Tripp (2006), como um defensor do “socialismo islâmico”. Essa interpretação se baseia em sua análise de que a tirania política era a causa fundamental da estagnação, da pobreza e da fraqueza das nações muçulmanas. Ele via o despotismo como a “fonte de toda injustiça, humilhação, ignorância, pobreza, desemprego e ruína”. Ao defender um sistema de democracia constitucional e a separação entre Estado e religião, ele buscava criar as condições para uma sociedade justa e próspera. Sua crítica social, portanto, alinhava-se com os objetivos socialistas de eliminar a opressão e garantir a dignidade para todos os cidadãos.
Abd al-Rahman al-Kawakibi
Para ele, o capitalismo industrial moderno foi a mais recente manifestação de uma forma de tirania e opressão que afetou a humanidade em várias formas ao longo da história humana. Ocasionalmente, na história, chegaria um momento em que, através da revelação, razão e esforço, a estrutura moral que sustentaria uma ordem justa poderia ser reafirmada para corrigir o equilíbrio contra o que ele caracterizava como ‘Deus das nações’ e ‘o segredo da existência’ – ou seja, o poder do dinheiro e da aquisição egoísta. Ele também acreditava que esses momentos haviam chegado com a revelação da mensagem cristã, mas foi com o estabelecimento da comunidade islâmica primitiva que os princípios haviam sido realizados. Foram esses princípios que ele chamou de “socialismo” (TRIPP, 2006).
Mustafa al-Siba’i (1915-1964)
Mustafa al-Siba’i foi um político, ativista e acadêmico sírio, mais conhecido como o fundador e líder do ramo sírio da Irmandade Muçulmana entre 1945 e 1961. Após estudar teologia na Universidade Al-Azhar, ele retornou à Síria, onde se tornou reitor da Faculdade de Teologia da Universidade de Damasco.
Mustafa al-Siba’i
Al-Siba’i é talvez o mais explícito e sistemático teórico do Socialismo Islâmico entre os abordados nesse artigo. Em sua obra seminal de 1959, Ishtirakiyyat al-Islam (“O Socialismo do Islã”), ele argumentou de forma contundente que o socialismo não era uma ideologia estrangeira, mas sim uma expressão autêntica e necessária dos princípios islâmicos de justiça e igualdade. Ele defendia que o Islã era inerentemente compatível com o socialismo. O livro foi tão influente que chegou a ser reimpresso e endossado por membros do governo egípcio de Gamal Abdel Nasser, embora al-Siba’i tenha criticado o uso de sua obra para justificar o nasserismo autoritário. O próprio Gamal Nasser proibiu a Irmandade Muçulmana e prendeu centenas de membros.
Ahmed Sékou Touré (1922-1984)
Ahmed Sékou Touré foi um líder político guineense, estadista pan-africanista e o primeiro presidente da Guiné, governando desde a independência do país em 1958 até sua morte em 1984. Ele foi uma figura central na luta pela independência da Guiné da França, liderando seu país a votar “não” no referendo de 1958 sobre a nova constituição francesa, o que resultou na independência imediata. A Guiné foi a única colônia africana a votar pela independência imediata em vez da associação contínua com a França e, portanto, a única colônia francesa a recusar a participação na nova Comunidade Francesa quando se tornou independente.
Ahmed Sékou Touré em visita a Washington em 1982.
Durante sua presidência, Sékou Touré implementou uma forma de socialismo de Estado, com forte inspiração marxista. Suas políticas incluíam a nacionalização de empresas estrangeiras, planejamento econômico centralizado e a criação de um Estado de partido único, o Partido Democrático da Guiné (PDG). Ele justificava essas políticas como necessárias para consolidar a soberania nacional e combater o colonialismo. Sua famosa declaração, “A Guiné prefere a pobreza na liberdade à riqueza na escravidão”, encapsula sua ideologia, que fundia nacionalismo, pan-africanismo e socialismo. Embora tenha formalmente renunciado ao marxismo no final de sua vida e restabelecido as relações comerciais com o Ocidente, seu governo permanece um dos exemplos mais notáveis da aplicação prática do socialismo no continente africano e da ideia de “socialismo islâmico”.
Em suma, para concluirmos, através das obras e vidas de figuras tão distintas como o escritor literário Mustafa Lutfi al-Manfaluti, o reformista anti-despotismo Abd al-Rahman al-Kawakibi, o teórico sistemático Mustafa al-Siba’i e o líder de Estado pan-africanista Ahmed Sékou Touré, percebe-se que a ideia se manifestou de formas variadas: desde a crítica social literária até a articulação de um sistema político e a implementação de políticas de Estado.
O fio condutor que une esses pensadores e de outros brevemente mencionados no texto, apesar de suas diferenças geográficas e temporais, é a resposta direta aos desafios de sua época: o colonialismo, o imperialismo e a tirania. O socialismo islâmico para esses personagens históricos ofereceu uma outra alternativa, um caminho para a modernização e a soberania que era, ao mesmo tempo, enraizado na cultura e na fé islâmica e que rejeitava os abusos do capitalismo individualista e os exageros de um comunismo ateísta.
Referências
ACHCAR, G.; DUCANGE, J.-N. Marx and the prophet. Disponível em: <https://jacobin.com/2019/04/marx-prophet-proletariat-muslim-fundemantalism-islam-socialism>. Acesso em: 6 jun. 2025.
BADAWI, M. M. (ED.). The Cambridge history of Arabic literature: Modern Arabic literature. Cambridge, England: Cambridge University Press, 2012.
GRAHAM, T. Islamic socialist figures to remember. Disponível em: <https://hoodcommunist.org/2023/05/04/islamic-socialist-figures-to-remember/>. Acesso em: 6 jun. 2025.
TRIPP, C. Islam and the moral economy: The challenge of capitalism. Cambridge, England: Cambridge University Press, 2006.
ZAHEER, K. Are Marxism and Islam mutually compatible? Disponível em: <https://www.islamicity.org/813/are-marxism-and-islam-mutually-compatible/>. Acesso em: 6 jun. 2025.