Ibrahim Vargas, também conhecido como Brahim Vargas, foi uma figura central na história dos mouriscos do século XVII, sendo originário da comunidade de Hornachos, na Extremadura espanhola. Filho de um corregedor local, Vargas pertencia a uma elite mourisca que, ao contrário da maioria dos seus contemporâneos, ainda mantinha uma forte adesão ao Islã e ao idioma árabe, apesar da conversão forçada ao cristianismo perpetrada pelos Reis Católicos. Antecipando o decreto de expulsão que seria promulgado por Filipe III em 1609, ele e seus conterrâneos, os hornacheros, organizaram uma retirada estratégica da Espanha, conseguindo levar consigo suas riquezas e estabelecendo as bases para uma nova vida no Marrocos.
A chegada dos hornacheros ao Marrocos, um grupo de aproximadamente 3.000 pessoas, foi inicialmente em Tetuan, mas logo o sultão Mulei Zidane lhes concedeu um local para se estabelecerem: o antigo ribat (fortaleza) na margem esquerda do rio Bu Regregue. Esta fortaleza, conhecida hoje como Casbá dos Oudaias, estava praticamente abandonada. Os recém-chegados revitalizaram a área, que passou a ser conhecida como Salé, a Nova (ou Sala Jdid), em oposição à cidade já existente na margem direita, Salé, a Velha (Sala El-Bali), um centro religioso e comercial dominado pelos marabutos.
A partir de 1614, Ibrahim Vargas ascendeu como o primeiro governador de Salé, a Nova, liderando a comunidade hornachera. Sob sua governança, que durou até aproximadamente 1619, a principal atividade econômica da cidade tornou-se a “guerra de corso”, ou pirataria. Apoiados pela autorização tácita dos sultões saadianos, os corsários de Salé, conhecidos em inglês como Sale Rovers, rapidamente se tornaram uma força naval respeitável, atacando navios europeus no Atlântico e no Mediterrâneo e acumulando vastas riquezas para a nova cidade.
Com a expulsão geral dos mouriscos da Espanha, cerca de 10.000 “andaluzes”, mais pobres e culturalmente distintos, juntaram-se à colônia. Essa nova onda de refugiados, ávida por vingança contra seus ‘expulsadores’ ibéricos, integrou-se rapidamente à guerra de corso, aumentando as fileiras das tripulações e fortalecendo ainda mais o poderio militar de Salé. A cidade também se tornou um polo para aventureiros, renegados e comerciantes europeus, que viam na pirataria uma oportunidade de fortuna.
O sucesso de Salé atraiu figuras notáveis como o renegado holandês Jan Janszoon, que se converteu ao Islã e adotou o nome de Murad Rais. Em 1624, o sultão Mulei Zidane o nomeou “Grande Almirante” da frota corsária, conferindo-lhe autonomia, mas não total independência. A presença de Murad Rais, com seu conhecimento naval europeu, profissionalizou ainda mais as operações corsárias, expandindo seu alcance até a Inglaterra, Islândia e Terra Nova e Labrador (Newfoundland, no Canadá).
Após a morte do sultão Mulei Zidane, os hornacheros deixaram de pagar tributos ao poder central marroquino e declararam formalmente a independência, estabelecendo a República do Bu Regregue, também chamada de República de Salé. A nova república foi organizada como uma cidade-estado, inspirada nos modelos de Veneza ou Gênova, e governada por um conselho, ou Diwan, composto pelas 14 famílias hornacheras mais influentes, que elegiam anualmente um governador e capitão-geral.
No entanto, a república logo enfrentou sérias dissensões internas. O poder, inicialmente concentrado nas mãos dos hornacheros, foi contestado pela crescente população de “andaluzes”, que se sentiam marginalizados. Conflitos sangrentos eclodiram, levando a um acordo em 1630 para reformar o governo. O Diwan foi expandido para 16 membros, com representação paritária: oito hornacheros e oito andaluzes. Este arranjo, embora buscasse o equilíbrio, marcou o início de um período de instabilidade política conhecido como as “Três Repúblicas do Bouregreg”, com cada facção (hornacheros, andaluzes e os marabutos de Salé, a Velha) governando sua respectiva margem do rio.
A instabilidade interna e as constantes ameaças externas levaram a república a um declínio gradual. Em 1641, a confraria sufi da Zauia de Dila tomou o poder na região, impondo um tributo e encerrando a independência de fato da república. A cidade-estado continuou a operar com certa autonomia, mas sob a suserania dos Dilaítas. O fim definitivo da República de Salé veio em 1668, quando o sultão alauíta Mulai Rashid conquistou a região, unificando o Marrocos e pondo fim à era das cidades-estado corsárias.
Apesar do fim da república, o legado de Ibrahim Vargas e dos hornacheros perdura até hoje em Rabat. O nome de sua família, Vargas, foi corrompido para Bargach, tornando-se uma das famílias mais influentes e proeminentes da capital marroquina ao longo de mais de quatro séculos. A cidade de Rabat, que cresceu a partir de Salé, a Nova, é considerada uma das “cidades andaluzas” do Marrocos que, sob a liderança de seu primeiro governante, transformou um refúgio de exilados em uma poderosa república.
A população da República de Salé era notavelmente heterogênea. Embora a maioria fosse de mouriscos, havia também árabes, berberes, judeus, escravos e um número significativo de renegados europeus. Essa diversidade cultural resultou na formação de uma língua franca, uma mistura de árabe, castelhano, português e italiano, falada principalmente na Casbá e em Nova Salé. Muitas famílias atuais de Rabat, como Perez, Moreno, e a já mencionada Bargach, ainda carregam nomes que denunciam sua origem mourisca, refletindo a marca deixada pelo pioneirismo de Ibrahim Vargas.
Referências:
GUERRA, Antonio. Los moriscos de Hornachos y la República de Rabat. El Faro Ceuta, 2020. Disponível em: <https://elfarodeceuta.es/moriscos-hornachos-republica-rabat/>. Acesso em: 10 nov. 2025.
MAZIANE, Leila. Salé au xviie siècle, terre d’asile morisque sur le littoral Atlantique marocain. Cahiers de la Mediterranee, 2009. Disponível em: <https://journals.openedition.org/cdlm/4941>. Acesso em: 10 nov. 2025.
PAULA, Frederico Mendes. A República Corsária de Bouregreg. In: Histórias de Portugal em Marrocos. 2014. Disponível em: <https://historiasdeportugalemarrocos.wordpress.com/2014/04/30/a-republica-corsaria-de-bouregreg/>. Acesso em: 10 nov. 2025.



