Reescrever o passado para colonizar o presente: a estratégia britânica que continua matando

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A era do colonialismo britânico não foi apenas uma empreitada de conquista militar e exploração econômica; foi também um projeto de dominação intelectual, onde a reescrita da história se tornou uma ferramenta tão potente quanto qualquer exército ou até mais, visto que seus efeitos perniciosos duram até hoje mais do que qualquer campanha militar foi capaz. Em territórios como a Índia e o Egito, administradores e historiadores britânicos não se contentaram em registrar o passado: eles o moldaram ativamente, criando e aprofundando fissuras sociais que se transformaram em abismos de tensão religiosa. Essas narrativas, criadas para servir aos propósitos do Império, provaram ter uma vida terrivelmente longa, sobrevivendo ao fim do domínio colonial e alimentando conflitos que perduram até os dias de hoje, seja entre Índia e Paquistão ou até mesmo entre os próprios muçulmanos e hindus dentro do território indiano. Este artigo analisará como, através da manipulação de eventos como o saque dos portões de Somnath e a conquista árabe do Egito, o colonialismo britânico semeou as sementes de discórdias que culminariam em tragédias como a demolição da Mesquita Babri e a contínua animosidade sectária, vista até os dias de hoje em círculos hindutvas que estão no mais alto escalão do governo indiano.

A Índia, em particular, serviu como um laboratório para essa engenharia histórica. Um dos exemplos mais flagrantes é a “Proclamação dos Portões” de 1842, emitida por Lord Ellenborough, o Governador-Geral britânico na Índia. Após uma desastrosa campanha no Afeganistão, Ellenborough ordenou que o exército britânico retornasse via Gazni e trouxesse de volta os portões de sândalo que, supostamente, o sultão Mahmud de Gazni havia saqueado do templo de Somnath dedicado a Shiva 800 anos antes. O ato foi apresentado como uma reparação de uma antiga humilhação hindu nas mãos de um governante muçulmano, um gesto calculado para angariar o favor da maioria hindu.

O Portão de Somnoth preservado no Forte de Agra, anos 1860.

A historiadora Romila Thapar – simplesmente uma das maiores autoridades em história da Índia –, em análise do evento, demonstra que toda a premissa da Proclamação de Ellenborough era uma fabricação. Não havia evidências em fontes turco-persas ou indianas de que tais portões tivessem sido levados de Somnath. Ao chegarem, os portões “recuperados” revelaram-se não ser de sândalo, mas de madeira de deodar local, e seu design não era indiano, mas afegão. O evento, desprovido de base histórica, foi um ato de teatro político colonial, criando um poderoso símbolo de opressão muçulmana e retribuição britânica onde antes não existia nenhum. Infelizmente, o que poderia ter sido um mero fiasco acabou se tornando um padrão argumentativo nos séculos XX e XXI. 

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Ruínas do Templo de Somnath.

O momento crucial na solidificação dessa narrativa ocorreu no Parlamento Britânico em 1843. O debate sobre a Proclamação de Ellenborough, longe de desmascarar a farsa, cimentou-a na consciência colonial e, por extensão, na indiana. Foi nesse debate que a ideia de um “trauma hindu” decorrente do ataque de Mahmud foi articulada pela primeira vez, não na Índia do século XI, mas bem longe dali, tanto temporal quanto espacialmente: na Londres do século XIX. Os políticos britânicos, ao debaterem o assunto, estavam, na verdade, inventando uma memória coletiva de vitimização para o povo hindu.

O discurso de Thomas Babington Macaulay durante este debate é particularmente interessante. Embora criticasse Lord Ellenborough, sua argumentação expôs o desprezo colonial pela “idolatria bramânica”, ao mesmo tempo que revelava uma preferência estratégica pelo “maometanismo” como uma fé monoteísta mais “pura” (isto é, livre de ìdolos) e, portanto, mais digna de respeito. Essa hierarquização das religiões, enquanto se criava uma narrativa de conflito histórico, era uma tática clássica do “dividir para governar”, que posicionava os britânicos como árbitros necessários entre comunidades supostamente em conflito perpétuo e incapazes de resolverem suas diferenças sem ajuda externa.

Thomas Babington Macaulay nos anos 1860.

Essa narrativa de trauma não desapareceu com o Império. Pelo contrário, foi avidamente adotada pelo nacionalismo hindu no século XX. K. M. Munshi, um político influente no governo indiano pós-independência, liderou a reconstrução do templo de Somnath em 1951, ecoando a retórica do debate de 1843. Ele via a reconstrução não apenas como um ato de fé, mas como a correção de um desastre nacional de mil anos. Segundo o próprio Munshi: “Por mil anos, a destruição do santuário por Mahmud ficou gravada no subconsciente coletivo da raça (hindu) como um desastre nacional inesquecível.”

A consequência mais trágica dessa reescrita da história manifestou-se na disputa pela Mesquita Babri, no fim do século passado. Construída no século XVI por um general mogol, a mesquita tornou-se o alvo de movimentos nacionalistas hindus que alegavam que ela fora erguida sobre o local de nascimento do deus Rama, após a demolição de um templo hindu. Essa alegação, embora contestada por muitos historiadores e arqueólogos, seguia perfeitamente o roteiro colonial: um governante muçulmano tirano – intolerante por natureza, obviamente – destruindo um local sagrado hindu. O movimento culminou na demolição da mesquita em 1992 por uma multidão de extremistas hindus, desencadeando violência comunitária em toda a Índia.

Nenhuma descrição de foto disponível.

Destruição da mesquita por uma multidão de hindus em 1992.

A ligação entre a historiografia colonial e a violência moderna é explícita. Os lugares-comuns do “governante muçulmano tirano”, das “conversões forçadas” e da “destruição de templos” tornaram-se o pão de cada dia da propaganda nacionalista desde então. Como aponta Suchintan Das (2024), essas narrativas não são invenções locais; elas são um legado direto do período colonial, habilmente reaproveitadas para fins políticos contemporâneos, transformando a educação histórica em um campo de batalha ideológico. Nas palavras do próprio Suchintan Das:

Os tropos mais repetidos são os do “governante muçulmano tirano”, “conversões religiosas forçadas”, “destruição de templos [hindus] para a construção de mesquitas”, “violação de mulheres hindus” e “reis hindus esquecidos que revidaram ou presidiram impérios ainda maiores”. Ironicamente, a maioria desses tropos havia germinado nos escritos de administradores e estudiosos britânicos no período colonial.

No Egito, uma estratégia semelhante, embora mais sutil, foi empregada por acadêmicos como Alfred J. Butler. Sua obra de 1902, A Conquista Árabe do Egito e os Últimos Trinta Anos do Domínio Romano, desafiou a visão predominante de que os cristãos coptas do Egito haviam acolhido os conquistadores árabes como libertadores da opressão do Império Bizantino. Butler, um autoproclamado “amigo dos coptas”, esforçou-se para apresentar uma narrativa de resistência copta e hostilidade fundamental à invasão muçulmana.

Para sustentar sua tese, Butler utilizou exemplos como a resistência em Damieta e o fato de o patriarca copta Benjamim ter permanecido escondido por três anos após a conquista. Segundo a lógica de Butler, se os árabes fossem vistos como libertadores, o patriarca teria emergido imediatamente. Essa demora, para ele, era uma prova irrefutável da falta de aliança entre coptas e árabes.

A análise do trabalho de Butler revela, no entanto, uma metodologia que, embora acadêmica, tendia a favorecer seletivamente as fontes que corroboravam sua visão. Ao enfatizar a resistência copta e minimizar a perseguição bizantina que a precedeu, Butler construiu uma narrativa que postulava uma animosidade inerente e primordial entre coptas e muçulmanos desde o momento da conquista, conforme apontado por Joseph Louis (2021).

Historiadores mais recentes, como Hugh Kennedy (2008), apresentam um quadro muito mais complexo. Utilizando muitas das mesmas fontes, Kennedy argumenta que a resposta copta foi variada e multifacetada, inclusive até mesmo “confusa”. Décadas de perseguição teológica pelos bizantinos significavam que muitos coptas tinham poucos motivos para defender o Império. A realidade, portanto, não era de uma resistência unificada ou de uma recepção universal, mas de uma série de respostas locais e pragmáticas:

A verdade parece ser que as respostas dos coptas foram variadas e talvez confusas: alguns deles em certos momentos claramente acolheram e colaboraram com os conquistadores. Em outros momentos, eles podem ser encontrados lutando ao lado dos romanos [bizantinos]. (KENNEDY, 2008, p. 168).

É faro histórico que um dos motivos que facilitaram a conquista islâmica do Egito fora a perseguição que os cristãos coptas não-calcedonianos sofriam nas mãos bizantinas (que considerava a igreja copta herege), o que resultou numa maior cooperação com os conquistadores árabes:

“Jerusalém foi ocupada por um exército de monges [monofisistas]; em nome da Natureza única encarnada, eles saquearam, queimaram, mataram; o sepulcro de Cristo foi maculado de sangue… Três dias antes da festa da Páscoa, o patriarca [alexandrino] foi sitiado na catedral, e morto no batistério. Os restos do seu cadáver desfigurado foram jogados nas chamas, e suas cinzas lançadas ao vento; e o feito se inspirou na visão de um pretenso anjo… Essa superstição fatal foi inflamada, em cada um dos lados, pelo princípio e pela prática da retaliação: no rastro de uma disputa metafísica, milhares de pessoas foram mortas.”

– Jenkins, Philip (2013), “Guerras Santas: Como 4 patriarcas, 3 rainhas e 2 imperadores decidiram em que os cristãos acreditariam pelos próximos 1.500 anos”.

No livro “The Great Arab Conquests”, Hugh Kennedy escreve que Cyrus, o governador bizantino do Egito, expulsou o patriarca copta Benjamim I para o exílio. Quando as forças árabes lideradas por Amr Ibn al-As tomaram Alexandria, um nobre copta chamado Sanutius o persuadiu a enviar uma proclamação de salvo conduto para Benjamin e um convite para retornar a Alexandria. Quando chegou, depois de treze anos de exílio, o general árabe Amr tratou o patriarca com respeito. Ele foi instruído pelos muçulmanos a retomar o controle sobre a Igreja Copta, e logo providenciou a restauração dos mosteiros no Oásis de Natrun, que haviam sido arruinados pelos cristãos calcedonianos (tais mosteiros ainda estão em pleno funcionamento hoje, após mais de mil anos de Islã):

“Benjamin também estabeleceu boas relações com Amr. Logo após a queda de Alexandria, Amr se preparou para partir em sua expedição à Líbia. Ele fez um pedido a Benjamin: ‘Se você orar por mim para que eu vá para o oeste e as Cinco Cidades e tome posse delas como fiz com o Egito e retorne em segurança e rapidamente, farei tudo o que você me pedir.’ O piedoso biógrafo, então, nos apresenta a imagem impressionante do patriarca orando pelo sucesso do comandante muçulmano contra os habitantes (cristãos) da Cirenaica.”

(…)

Ele também tem uma boa imagem nas fontes coptas. Já vimos como o biógrafo de Benjamin descreve as boas relações que Amr tinha com seu herói. Ainda mais impressionante é o veredito de João de Nikiu. João não era admirador do governo muçulmano e era feroz em sua denúncia do que via como opressão e abuso, mas ele diz sobre Amr: “Ele exigiu os impostos que haviam sido determinados, mas não tomou nenhuma propriedade das igrejas, e não cometeu nenhum ato de espoliação ou pilhagem, e os preservou durante todos os seus dias.”

– Kennedy, Hugh (2007), “The Great Arab Conquests How the Spread of Islam Changed the World We Live In. Hugh Kennedy”, pg. 164-165

A insistência de Butler em uma narrativa de conflito primordial servia a um propósito colonial muito mais sutil que o visto na Índia. Ao apagar os registros de cooperação ou pragmatismo e ao enquadrar a relação copta-muçulmana como fundamentalmente antagônica, sua obra contribuiu para a construção de identidades comunitárias separadas e em oposição, uma fundação intelectual que poderia ser explorada politicamente para justificar a contínua mediação e o domínio britânico.

Tanto no caso da Índia quanto no do Egito, a historiografia colonial britânica operou como um poderoso agente de divisão. No subcontinente, fabricou-se uma narrativa de trauma milenar para justificar a intervenção imperial e criar uma inimizade duradoura entre hindus e muçulmanos. No Egito, uma interpretação seletiva da história da conquista árabe serviu para enfatizar o antagonismo entre coptas e muçulmanos, obscurecendo uma realidade mais complexa de coexistência e acomodação.

A estratégia de “dividir para governar” não era apenas uma tática administrativa, mas um projeto ideológico profundo, executado nas páginas de obras historiográficas, nos debates parlamentares e nos relatórios de governantes. Ao redefinir as identidades dos povos colonizados, enquadrando-os como adversários históricos e irreconciliáveis, o Império Britânico justificava sua própria existência como uma força pacificadora e estabilizadora indispensável. Isso, claro, quando os britânicos não utilizavam estratégias mais ardilosas para dividir e desestabilizar um povo, como drogá-lo com ópio e forçá-lo a assinar tratados aviltantes.

O legado mais trágico é que essas narrativas sobreviveram aos seus criadores. Elas foram internalizadas, adotadas e, por fim, instrumentalizadas por movimentos nacionalistas e forças políticas nas nações pós-coloniais, como visto hodiernamente no movimento hindutva e nas políticas revisionistas encabeçadas pelo primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. 

As chamas da violência comunitária na Índia e as tensões sectárias no Egito são alimentadas, em parte, por fantasmas históricos conjurados não em tempos antigos, mas nas bibliotecas e gabinetes de um império já desaparecido, cuja pena se revelou mais cortante e duradoura que sua espada e muito mais contundente que seus canhões. Se hoje boa parte do mundo se encontra mergulhado em divisões internas e “brigas de vizinhos” aparentemente perenes, certamente podemos rastrear algum DNA britânico em determinado momento desses conflitos, seja em sua gênese ou na sua escalada. 

Referências

BANSAL, Jai G. The Somnath Gate Saga – A Vivid Example of the Imperial Contempt for “Hindoos”. Stop! Hindudvesha, 20 set. 2023. Disponível em: <https://stophindudvesha.org/the-somnath-gate-saga-a-vivid-example-of-the-imperial-contempt-for-hindoos/#:~:text=An%20initiative%20of%20VHPA,temples%20dedicated%20to%20Lord%20Shiva.> Acesso em: 24 de junho de 2025.

CHUGHTAI’S ART BLOG. Theft of Gates of Sultan Mahmud’s Mausoleum. 13 dez. 2013. Disponível em: <https://blog.chughtaimuseum.com/?p=697>. Acesso em: 24 de junho de 2025.

DAS, Suchintan. Narendra Modi’s Government Is Falsifying Indian History. Jacobin, 29 de abril de 2024. Disponível em: <https://jacobin.com/2024/04/narendra-modi-falsify-history-authoritarianism> Acesso em: 24 de junho de 2025.

KENNEDY, Hugh. The Great Arab Conquests: How The Spread Of Islam Changed The World We Live In. Da Capo Press, 2008.

KOSHAL, Karishma. The Travelling Gates: A Misadventure with Restoration. MAP Academy, 21 set. 2023. Disponível em: <https://mapacademy.io/the-travelling-gates-a-misadventure-with-restoration/>. Acesso em: 24 de junho de 2025.

LOUIS, Joseph. Review of The Arab Conquest of Egypt and the Last Thirty Years of the Roman Dominion Book By Alfred J. Butler. Evangelical Theological Seminary in Cairo, 2021.

THAPAR, Romila. Somanatha and Mahmud. Frontline, v. 16, n. 8, 10-23 abr. 1999.

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