Quando se fala nos familiares do profeta Muhammad, muito pouco é dito sobre seus antepassados mais distantes, normalmente mantendo o foco em seus parentes mais próximos na linhagem e nos que o sucederam. Dentre os parentes mais distantes em sua linhagem, encontramos uma figura muito interessante e pouco conhecida: Qusai ibn Kilab, o tetravô do profeta, ou seja, o pai de seu tataravô.
Ancestrais do Profeta Muhammad.
A jornada de Qusai inicia-se como Zaid ibn Kilab, natural de Meca e herdeiro de uma linhagem que outrora deteve o poder na cidade, mas que por algum motivo veio a perder o domínio. A orfandade paterna em tenra idade e o novo casamento de sua mãe com um mercador cristão o conduziram a Damasco. Ali, imerso na cultura síria, foi educado no cristianismo e familiarizou-se com o aramaico e o grego, ao ponto de suas memórias de Meca e seu idioma nativo sumirem quase por completo. Contudo, sua mãe manteve viva a chama de sua herança, instigando-o a reconquistar o legado de seus antepassados do deserto.
Desde cedo, Zaid cultivou habilidades de liderança e diplomacia, embora se sentisse um estranho na elite de Damasco e em certo sentido rejeitado em sua nova nação. Aos dezesseis anos, alistou-se nas tropas auxiliares romanas (Auxilia romana). Sua ascensão foi meteórica, culminando na obtenção da cidadania romana. No exército, percorreu o Império, testemunhando a diversidade unida pela Pax Romana, embora já no período decadente de Roma. Zaid tornou-se um arqueiro exímio, vindo a adotar o nome Qusai – mestre arqueiro de longo alcance – um ato simbólico para o iminente retorno à sua terra natal.
Painel na Coluna de Trajano, em Roma, mostrando a infantaria auxiliar romana atravessando um rio sobre uma ponte de barcas, durante as Guerras Dácias promovidas pelo imperador Trajano (101–106). Podem ser distinguidos pelo escudo oval chamado clípeo (clipeus) que utilizavam, em contraste ao escudo retangular (scutum) portado pelos legionários.
Aos vinte e um anos, após mais de duas décadas afastado de sua terra natal, Qusai finalmente retornou a Meca. Astuciosamente, ele chegou disfarçado de mercador sírio com o intuito de analisar o cenário político e social de Meca sem revelar ser um nativo da cidade. Ele se vestia de forma extravagante, esperando chamar a atenção dos anciãos da cidade ao projetar uma imagem de grande riqueza.
Sua estratégia funcionou. Hulail, o principal ancião de Meca, logo ouviu os comentários sobre aquele jovem notável e organizou um banquete em sua honra. Durante o jantar, Qusai, com seu estilo e elegância, cativou a todos com sua eloquência, tanto no dialeto árabe de Meca quanto em línguas estrangeiras. Profundamente impressionado, Hulail, ali mesmo, ofereceu a mão de sua cobiçada, Hubbah, em casamento.
Ao casar-se com a filha do chefe, Qusai posicionou-se estrategicamente como o herdeiro da cidade, visto que Hulail não tinha filhos homens e já havia indicado Qusai como seu sucessor. Ao herdar a cidade, ele precisou enfrentar uma Meca sem liderança centralizada, com poder fragmentado entre tribos. Sua experiência romana o inspirou a criar um conselho unificado inspirado no modelo imperial. Para tal, idealizou o Dār al-Nadwa, a Casa da Assembleia, concebida como uma miniatura do Senado Romano e em um local proeminente com vista para a Caaba. Artesãos gregos foram trazidos para caiar suas paredes e decorá-las com tinta vermelha, enquanto carpinteiros de Yathrib (posteriormente Medina) cuidaram da estrutura. A arquitetura mais tarde viria a impressionar o próprio profeta durante sua infância (JEBARA, 2021).
O edifício possuía doze aposentos para dignitários e um salão principal com doze janelas de cedro. Doze círculos vermelhos, feitos com tinta vermelha e sangue dos chefes tribais, adornavam os pilares e selavam o pacto cívico. No salão, doze almofadas aguardavam os líderes dos doze clãs, refletindo o simbolismo semita do número doze como representação da totalidade e da ordem. Além do próprio simbolismo semita, segundo alguns autores muçulmanos medievais, Qusai teria rejeitado os deuses em favor do monoteísmo, consolidando ainda mais seu legado transformador (COLE, 2018).
Apesar da Arábia aparentar estar muito distante do centro do Império Romano, Roma era muito presente no imaginário árabe e continuou sendo mesmo com a queda da porção ocidental do Império. Há no Alcorão um capítulo (surah) intitulado Os Romanos, ou Ar-Rum em árabe. A surah é, em parte, uma resposta aos árabes não muçulmanos de Meca que consideraram a vitória sassânida sobre os bizantinos (cristãos) como um sinal de que as práticas politeístas tradicionais venceriam o monoteísmo das religiões abraâmicas. Nos primeiros versos, a comunidade muçulmana recebe a promessa de que os bizantinos sairiam vitoriosos e retomariam Jerusalém “dentro de alguns anos”.
Os bizantinos foram derrotados.
Em terra muito próxima; porém, depois de sua derrota, vencerão,
Dentro de alguns anos; porque é de Deus a decisão do passado e do futuro. E, nesse dia, os fiéis se regozijarão,
Com o socorro de Deus. Ele socorre quem Lhe apraz e Ele é o Poderoso, o Misericordiosíssimo (Q. 30:2-5, tradução de Samir El Hayek).
Para a comunidade islâmica, a vitória de Heráclio poucos anos depois (622 em diante) sobre os sassânidas seria o perfeito cumprimento da profecia corânica. Muitos séculos depois, a memória romana dentro do Islã permaneceria viva já no período do sultão Mehmet II que, ao conquistar Constantinopla dos Bizantinos em 1453, passou a se intitular César, qayṣar-i Rūm.
Referências
COLE, Juan. Muhammad: Prophet of Peace Amid the Clash of Empires. Nation Books NY, 2018.
JEBARA, Mohamad. Muhammad, the World Changer. St. Martin’s Press, 2021 (essa obra possui uma excelente tradução para o português).