Portugal proíbe véus islâmicos e revive polêmica do biôco

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O parlamento português aprovou recentemente um projeto de lei, proposto pelo partido direitista Chega, que visa proibir o uso de véus que cobrem o rosto por “motivos de gênero ou religiosos” na maioria dos espaços públicos. A medida, que mira diretamente vestimentas como a burca e o niqab, foi aprovada com o apoio de partidos de centro-direita e representa um novo capítulo na crescente onda de legislações restritivas sobre trajes islâmicos na Europa, alinhando Portugal a países como França e Bélgica.

A nova legislação estipula coimas (espécie de sanção pecuniária) que podem variar entre 200 e 4.000 euros para quem utilizar véus integrais em público e prevê penas de prisão de até três anos para quem forçar uma mulher a usá-los. A justificativa apresentada pelo partido proponente baseia-se na defesa da “democracia” e dos “direitos das mulheres”, argumentando que o ocultamento do rosto submete as mulheres a “situações de exclusão e inferioridade”, sendo incompatível com os princípios de “liberdade, igualdade e dignidade humana”.

A proposta, no entanto, gerou forte oposição dos partidos de esquerda, que a classificaram como uma medida discriminatória e contrária à liberdade religiosa. Críticos argumentam que a lei não resolve um problema social existente, mas sim instrumentaliza a questão religiosa para fins políticos. O deputado do Partido Socialista, Pedro Delgado Alves, afirmou que a iniciativa tem como único propósito atingir minorias, uma visão que ressalta a percepção de que a lei é um ato de islamofobia em vez de uma genuína preocupação com os direitos das mulheres. Não obstante, no caso em que uma mulher voluntariamente viesse a escolher usar uma veste tradicional – o que é muito comum, especialmente entre convertidas –, ela paradoxalmente estaria impedida sob o pretexto de violar seu próprio direito e autonomia. Resumindo: o Estado proíbe que a mulher adote certas vestes com a justificativa de que, ao optar pela via proibitiva, o Estado está assegurando o seu direito de escolha, desde que ela escolha não usar determinada indumentária.

A estranheza da proibição é acentuada pelo fato de que o uso da burca ou do niqab é extremamente raro em Portugal. A legislação parece, portanto, visar um problema praticamente inexistente, o que reforça a suspeita de que se trata de uma manobra política para capitalizar sobre o sentimento anti-imigração e a islamofobia crescente na Europa, uma pauta tão cara para partidos de direita. A medida serve mais como um gesto simbólico para um eleitorado específico do que como uma resposta a uma necessidade social concreta, tornando-se um bode expiatório para questões mais complexas.

Essa proibição, contudo, carrega uma profunda ironia histórica quando se analisa o próprio vestuário tradicional português. Até o início do século XX, era comum em Portugal o uso do rebuço, também conhecido como biôco. Esta peça consistia numa espécie de capote comprido, geralmente preto, que cobria quase totalmente o corpo da mulher, da cabeça aos pés, deixando apenas uma estreita abertura para os olhos, de forma muito semelhante às vestimentas que hoje são proibidas.

As origens do rebuço ou biôco são, muito provavelmente, inspiradas na tradição islâmica, que influenciou a Península Ibérica durante séculos e que prescrevia que as mulheres cobrissem o rosto. Essa prática, longe de ser uma particularidade do mundo muçulmano, foi adotada em diversas partes da Europa e perdurou em Portugal por um longo período, evidenciando uma conexão cultural histórica com o mesmo costume que agora é legislado como estranho e opressor. É curioso notar que Portugal hoje trata como alienígena algo que foi fundamental para a construção da sua identidade por séculos.

O biôco, aliás, também enfrentou repressões legais. No Algarve — região onde o traje se manteve mais tempo —, o Governador Civil de Faro emitiu em 28 de setembro de 1892 um edital que proibia expressamente o uso do biôco ou rebuço nas ruas e igrejas da região. O documento justificava-se afirmando que o traje facilitava disfarces, encontros ilícitos e crimes, chegando a mencionar “homens disfarçados de mulher e embiocados” que cometiam furtos e desordens. Embora se tratasse de uma proibição regional — e não de um decreto nacional —, o ato teve força de lei em todo o Algarve e marcou o início da extinção do traje no restante do país. Assim como ocorre hoje com o véu islâmico, o biôco foi associado a atraso, superstição e perigo, e eliminado em nome da “modernização” e da “ordem pública”.

Mulher com Bioco, Olhão. Artur Pastor, entre 1943 e 1945.

As autoridades e a imprensa da época consideravam o traje um símbolo de atraso, associando-o a “ridículas caricaturas” e “monumentos ambulantes”. A repressão ao biôco era justificada pela necessidade de modernização e pela alegação de que homens se disfarçavam com o traje para cometer roubos, um argumento que novamente encontra paralelo nas preocupações de segurança contemporâneas e que foi muito utilizado durante a ascensão do ISIS.

A proibição de 1892 marca o ponto final legal da história do biôco em Portugal. O traje, antes comum nas ruas do Algarve e de outras regiões do sul, passou a ser estigmatizado como símbolo de atraso e desapareceu gradualmente nas primeiras décadas do século XX. É revelador que, sob justificativas quase idênticas — segurança pública, disfarce, “modernização” —, o Estado português tenha primeiro proibido um traje nacional feminino e, séculos depois, um traje de inspiração islâmica, ambos punindo a mulher sob o pretexto de protegê-la.

“Os biocos algarvios”, pintura de Alfredo Roque Gameiro.

Não podemos nos esquecer ainda da famigerada almalafa, veste similar à burca e ao niqab que inclusive foi utilizada no Brasil por mulheres católicas, sendo retratada inclusive por Aimé-Adrien Taunay (1803-1828) ao relatar o cotidiano da cidade de São Paulo no primeiro quarto do século XIX. Indo um pouco mais longe na história, na Espanha do século XVI, a almalafa, um véu branco que as mulheres mouriscas usavam para cobrir o rosto e a cabeça em público, foi alvo de proibições por parte das autoridades cristãs. Longe de ser uma preocupação com a emancipação feminina, a antipatia pela almalafa estava impregnada de suspeitas e ansiedades morais, temendo-se que a vestimenta ocultasse comportamentos ilícitos. Um decreto de 1513, por exemplo, condenava o seu uso, refletindo a crença de que o véu escondia “a falta de vergonha e desonestidades” e facilitava a prostituição ou relações amorosas proibidas.

“Costume de S. Paul”, aquarela de Aimé-Adrien Taunay, 1825.

A perseguição à almalafa era, na verdade, um componente de uma estratégia maior de erradicação cultural, que buscava expor a intimidade do espaço doméstico muçulmano ao controle da sociedade cristã. A influência da vestimenta era tão notória que algumas mulheres cristãs também a adotaram, levando a uma proibição específica em 1523 para que não dessem “um mau exemplo aos recém-convertidos”. A retirada do véu era, portanto, uma ferramenta política para desmantelar a identidade mourisca e submetê-la a uma “vigilância hostil da sociedade cristã”, ecoando os argumentos contemporâneos que associam o véu a uma ameaça aos valores ocidentais, conforme nos ensina Matthew Carr (2009).

“Mulher mourisca de Granada” trajando suas almalafas, ilustração por Christoph Weiditz, 1530.

Como há pouco mencionado, apesar da sua proibição e da sua origem moura, o costume de cobrir o rosto sobreviveu e foi ressignificado no mundo ibérico colonial entre as mulheres católicas paulistas. Essa moda, longe de ser vista como opressora ou imoral, era na verdade uma herança direta da almalafa, que havia se transformado no padrão de recato e decência para as mulheres da elite, demonstrando como uma mesma prática pode ser vista como libertina em um contexto e como o ápice da virtude em outro.

Voltando ao cenário português, a atual proibição da burca revela um paradoxo social e um esquecimento histórico, ou ao menos uma tentativa de negar o próprio passado, inclusive dos hábitos praticados em suas colônias. Enquanto o país proíbe uma vestimenta estrangeira usada por uma minoria ínfima, ignora que uma peça muito semelhante, o biôco, fez parte integral da sua própria cultura durante séculos, tendo sido ela própria alvo de proibições por razões análogas. A lei parece menos uma questão de segurança ou de direitos das mulheres e mais um reflexo de uma tendência europeia de legislar sobre corpos e símbolos de uma minoria, utilizando a islamofobia como ferramenta política.

Sendo essa a tendência da direita ocidental, certamente não irá tardar até que projetos semelhantes comecem a ganhar capilaridade em terras brasileiras, muito embora existam problemas reais e muito mais concretos e urgentes do que este – que sequer é um problema –, em especial num país de terceiro mundo feito o nosso. Como político é eleito não pela sua capacidade de gerar frutos para a sociedade, mas sim pela sua habilidade de convencer o eleitorado, é necessário que temas inúteis desviem a atenção dos assuntos críticos do país e que problemas imaginários tomem o contorno de problemas reais.

No fim, a distração propositalmente maquinada pela classe política é essencial para que a população viva num eterno estado de torpor e ignore a realidade caótica que o cerca, em especial as raízes de seus problemas que não raramente remontam aos seus próprios governantes. Ao despender energias contra um inimigo imaginário, jamais surgirão esforços contra o inimigo real. O status quo permanece e mais um bode expiatório é sacrificado no altar do populismo.

Referências

AL JAZEERA. Portugal’s parliament approves far-right party’s bill to ban face veils. 2025. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2025/10/17/portugals-parliament-approves-far-right-partys-bill-to-ban-face-veils>. Acesso em: 18 out. 2025.

CARR, Matthew. Blood and Faith: The Purging of Muslim Spain, 1492-1614. New Press, 2009.

THE GUARDIAN. Burqa ban bill approved by Portugal’s parliament seen as targeting Muslim women. 2025. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2025/oct/17/burqa-ban-bill-approved-by-portugals-parliament-seen-as-targeting-muslim-women>. Acesso em: 18 out. 2025.

PORTAL G1. Portugal aprova projeto que proíbe uso de burcas e véus em locais públicos. 2025. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/10/17/portugal-aprova-projeto-que-proibe-uso-de-burcas-e-veus-em-locais-publicos.ghtml>. Acesso em: 18 out. 2025.

RENASCENÇA. Designer recupera antiga capa banida que cobria mulheres algarvias. 10 ago. 2015. Disponível em: <https://rr.pt/noticia/pais/2015/08/10/designer-recupera-antiga-capa-banida-que-cobria-mulheres-algarvias/17793/>. Acesso em 18 out. 2025.

THE PORTUGAL NEWS. Portugal approves burqa ban. 2025. Disponível em: <https://www.theportugalnews.com/news/2025-10-17/portugal-approves-burqa-ban/903893>. Acesso em: 18 out. 2025.

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