Assim como outras obras de ficção – por exemplo Duna e Star Wars, que já abordamos em nosso site –, a vasta tapeçaria do universo de Harry Potter é tecida com fios de inúmeras mitologias, lendas e histórias que fazem referência ao mundo real. No entanto, poucas conexões são tão inesperadas, complexas e subestimadas quanto a que une o mundo mágico a uma das figuras mais controversas da história islâmica: Yazid ibn Muawiyah, o segundo califa do Califado Omíada. Essa ligação, embora não pareça intencional por parte da autora J.K. Rowling, existe canonicamente graças ao meticuloso trabalho de design gráfico dos filmes da saga, revelando uma fascinante cadeia de transmissão de conhecimento e lendas que atravessa séculos, da alquimia medieval islâmica à cultura pop contemporânea.
Diferentemente de referências que vemos em Duna que são mais claras e diretas, a origem desta conexão não se encontra nos romances originais, mas sim nos adereços criados para as adaptações cinematográficas. A historiadora bruxa Batilda Bagshot, uma personagem do universo, é autora de um livro chamado The Decline of Pagan Magic (O Declínio da Magia Pagã). Na contracapa deste livro, criado pela dupla de designers Miraphora Mina e do brasileiro Eduardo Lima, aparece uma referência a “Khaled, o Persa, filho de Jazid”. Este “Jazid” é, de fato, Yazid ibn Muawiyah, e “Khaled” é seu filho, Khalid ibn Yazid. A inclusão não foi um ato de criação oriundo tão somente da fértil imaginação dos designers, mas o resultado do uso de um texto histórico real para dar autenticidade ao adereço.
O texto utilizado pelos designers foi extraído da tradução inglesa de uma famosa obra de alquimia, The Book of Hieroglyphic Figures (O Livro das Figuras Hieroglíficas). Este tratado é historicamente atribuído a Nicholas Flamel, uma figura que existe tanto no mundo real quanto no universo de Harry Potter, onde é celebrado como o criador da Pedra Filosofal. A obra detalha supostos métodos para a transmutação de metais e a criação de elixires, e é nesse contexto que o nome de Khalid ibn Yazid, aqui chamado de “Khaled, o Persa”, é mencionado.
A figura de Nicholas Flamel serve como uma ponte perfeita entre os dois mundos, visto que tanto o ocidente cristão quanto o oriente islâmico (e além dele, a própria China) eram intensamente aficionados pela Alquimia. Na saga Harry Potter, ele é um alquimista de sucesso que viveu por mais de 600 anos graças ao Elixir da Vida. Na vida real, Flamel foi um escriba parisiense do século XIV sobre quem, postumamente, cresceu a lenda de ser um grande alquimista. Não há evidências concretas de que o verdadeiro Flamel tenha se interessado por alquimia, mas a fama lendária fez com que diversos tratados, como The Book of Hieroglyphic Figures, fossem atribuídos a ele, solidificando seu status mítico e diretamente atrelado às ciências alquímicas.
Dentro do livro atribuído a Flamel, “Khaled, o Persa” é citado como uma autoridade em um aspecto crucial do processo alquímico: o controle do fogo. O texto menciona que Khaled sugere que o fogo deve ser medido “clibanicamente“, uma instrução enigmática cujo significado exato se perdeu no tempo. O epíteto “o Persa” é, na verdade, um equívoco comum na Europa medieval, que frequentemente não distinguia árabes de persas. Khalid era, de fato, um príncipe árabe da dinastia Omíada.
A identidade do pai de Khalid, Yazid ibn Muawiyah, torna essa inclusão ainda mais interessante. Yazid I (reinou de 680-683) é talvez a figura mais odiada na história do Islã, especialmente para os muçulmanos xiitas, mas não apenas por eles. Seu reinado é marcado pela Batalha de Karbala em 680, onde suas tropas mataram Hussein ibn Ali, neto do profeta Muhammad.
Para contextualizarmos melhor e ir um pouco mais além na história de Yazid e na sua importância histórica, cumpre dizer que a sua ascensão ao califado em 680 d.C. representou uma fratura de extrema relevância na comunidade islâmica primitiva. Sua nomeação por seu pai, Muawiyah I, instituiu a sucessão hereditária, rompendo com a tradição anterior de eleger ou aclamar o líder (califa). Esta quebra de precedente foi vista como uma conversão do califado em uma “monarquia” e foi imediatamente contestada por figuras proeminentes, notavelmente por Hussein ibn Ali, o neto do profeta.
Recusando-se a jurar lealdade a um regime que considerava corrupto e ímpio, Hussein partiu de Medina em direção a Kufa (Iraque), onde seus apoiadores haviam prometido apoio. Contudo, suas forças foram interceptadas no deserto de Karbala pelo exército muito superior de Yazid. O confronto culminou no massacre de Hussein e de seu pequeno grupo de seguidores e familiares em 10 de outubro de 680. Embora o episódio seja comumente atrelado ao “cisma” entre xiitas e sunitas e o partidarismo ao Imam Hussein seja associado ao xiismo, tanto xiitas quanto sunitas lamentam esse fato e relembram o martírio do neto do profeta.
Já em contraste com a reputação de seu pai, Khalid ibn Yazid (nascido por volta de 668, ou seja, ainda uma criança quando ocorreu o martírio de Hussein) tornou-se uma figura lendária por razões muito diferentes. Embora tenha sido um príncipe omíada afastado da linha de sucessão, a tradição o celebra como um grande patrono do conhecimento. O biógrafo do século X, Ibn al-Nadim, o descreve como “o primeiro muçulmano a se interessar por alquimia”, afirmando que Khalid usou sua riqueza para financiar a tradução de textos gregos, siríacos e persas sobre alquimia e outras ciências para o árabe.
Este patrocínio, segundo a tradição, representou o início do grande movimento de tradução que floresceria mais tarde sob o Califado Abássida, um período de intensa atividade intelectual no mundo islâmico e que originou a tão aclamada Casa da Sabedoria. Embora a evidência histórica da participação direta de Khalid na alquimia seja escassa, a lenda de um príncipe estudioso em uma família conhecida pela devassidão e pelo derramamento de sangue foi poderosa. Essa reputação fez com que inúmeros trabalhos de alquimia fossem atribuídos a ele, garantindo que seu nome fosse associado à arte por séculos. Seria isso, talvez, uma forma de redimir o legado da família? Quem sabe.
A fama de Khalid como alquimista viajou da Arábia para a Europa. Uma das obras mais famosas a ele atribuídas, “As Perguntas de Khalid ao Monge Maranas”, foi traduzida do árabe para o latim no século XII pelo inglês Robert de Chester. Esta foi a primeira tradução de um livro de alquimia do árabe para uma língua europeia, introduzindo as lendas e o conhecimento do mundo islâmico sobre o tema a uma nova audiência e solidificando o nome de Khalid nos círculos alquímicos ocidentais.
E foi assim que a presença de Yazid e Khalid apareceu em Harry Potter: um príncipe árabe do século VII se torna uma lenda da alquimia, seu nome é reverenciado e citado em textos europeus medievais atribuídos a outra figura lendária, Nicholas Flamel, e, finalmente, um trecho desse texto é selecionado por designers de nossa era para um adereço de filme. Mais amplamente, a própria centralidade da Pedra Filosofal na saga reflete a profunda influência da alquimia, uma ‘protociência’ que foi significativamente desenvolvida e preservada por estudiosos do mundo islâmico e que influenciou imensamente o imaginário ocidental – e que, ao que tudo indica, continua a influenciá-lo.
Referências
AL MUQADDIMAH. Why is YAZID ibn Mu’awiyah in the HARRY POTTER Books? YouTube. 14 mai. 2024.
BRITANNICA, The Editors of Encyclopaedia. Yazīd I. Encyclopædia Britannica.



