Uma das grandes falácias em torno da causa palestina reside na falsa similitude entre a crítica que se faz ao movimento sionista, entendido como um movimento político supremacista e colonialista, e o antissemitismo, uma das formas mais antigas de racismo. No entanto, a análise histórica não só desmente essa falsa comparação, como também pode nos brindar com exemplos claros de que o movimento sionista não se furtou de assassinar judeus que eles consideravam perigosos aos seus interesses. Para exemplificar isso, vamos contar a história de Jacob Israel de Haan e do seu assassinato pelas mãos da Haganah.
Nascido em uma família de chazanim – cantores litúrgicos dentro do judaísmo tradicional -, Jacob Israel de Vaan nasceu na cidade de Smilde, nos Países Baixos, em 1881. Desenvolveu desde cedo uma grande proximidade com a literatura e com a crítica literária. Em 1904 escreve o romance Pijpelijntjes (versos de Pijp – bairro operário de Amsterdã) no qual ele relata uma relação homoafetiva baseada, em muitos aspectos, em sua própria homossexualidade. O romance, como era de se esperar, causou alvoroço na comunidade literária e rendeu dificuldades empregatícias ao autor, que acabou demitido da escola onde lecionava. Em 1907 ele publica um novo romance de mesmo cunho, Pathologieën, o que lhe rende ainda mais dificuldades. Pressionado, casa-se com uma mulher não judia, Johanna van Maarseveen, 8 anos mais velha. Esses dados são relevantes, pois foram usados no contexto das investigações sobre seu assassínio.
Fotografia de Jacob Israel de Haan
Não conseguindo mais achar caminhos para lecionar acabou migrando para a área de direito. Lá destacou-se pela sua atuação junto à Anistia Internacional contra os maus tratos sofridos pelos prisioneiros políticos da Rússia czarista. Suas viagens àquele país reuniram uma série de denúncias que foram compiladas na obra In Russische gevangenissen (Nas prisões russas, 1913), sendo, pois um dos precursores do atual modelos da Anistia Internacional.
A partir da década de 1910, de Haan volta-se novamente para o Judaísmo religioso e se junta à mizrachi – um dos ramos do sionismo religioso surgido no final do XIX e que acredita que a Torah deve ser o centro da retorno dos judeus à eretz Yisrael. Com a assinatura da declaração de Balfour e o fim da I Guerra mundial, ele decide fazer a Aliá para “trabalhar na reconstrução da terra, do povo e da língua”. Essa partida é registrada nos seguintes versos datados de 1919.
“E eu vou, como as nuvens vão
Quando o sol as atrai,
Quem resistirá ao chamado de Deus,
Quem desperta o Seu povo?
E eu vou, como os dias vão,
Eu vou como a noite.
Quem viverá e resistirá
Do poder da sua vida mais íntima?
O que prende as estrelas às suas órbitas
O sol ao seu curso
Que prende o Poeta ao
Seu Povo, Seu Sonho, Seu Ato e Esperança.
Portão de Jaffa.
Meu Coração cantante: o que é mais belo
Do que o Portão de Jerusalém?
Onde, ao sol, um mendigo vacilante
Canta uma canção com uma voz desolada.”
Lá instalado, passa a lecionar direito em uma faculdade local e a ser correspondente jornalístico. No entanto, outra transformação ocorre em permanência na Terra Santa. A primeira delas se dá pela convivência com multietnicidade palestina do começo do século XX, pois, muito embora existisse uma vasta comunidade árabe, a presença de cristãos e de comunidades tradicionais judaicas, chamados de “antigo Yishuv”, coexistentes não dialogava com a proposta sionista que previa a criação de um estado etnocentrado. Ou seja, o movimento sionista europeu previa a criação de um lar apenas para os judeus na Palestina, acontece que o que Jabob Israel de Haan viu lá foi uma sociedade já formada e que sabia dialogar as suas diferenças. O Sionismo representava um projeto estrangeiro às idiossincrasias históricas dessa região, como exemplifica o seguinte parágrafo escrito por ele:
“Os judeus não querem ser habitantes comuns de um país árabe, mas governantes. O “lar nacional” judaico nada mais é do que uma transição para uma Palestina “tão judaica quanto a Inglaterra é inglesa”. O próprio Weizmann disse isso. E os árabes não querem isso.”
O segundo aspecto dialoga com o primeiro nas seguintes modulações. Uma vez que Jacob Israel de Haan percebeu que o movimento sionista ignorava, como até mesmo se recusava a colaborar com a comunidade local, isso o levou a se aproximar aos Haredim, chamados de judeus ultraortodoxos, e a fazer sérias críticas ao movimento sionista. Acabou juntando-se à Agudat e servindo de secretário sobre assuntos internacionais, devido aos seus conhecimentos em direito e fluência em inglês. Quando, em 1922, o Lord Northcliffe viajou para a Palestina, de Haan denunciou os abusos das lideranças sionistas. Outra frente de atuação foi a busca por apoio no emir da Transjordânia, Abdullah, contra as investidas de um sionismo sem Deus. Essas negociações renderam duas viagens para Amã, capital do Emirado. A iniciativa, no entanto, não encontrou o apoio necessário.
Em 1924, Jacob Israel de Haan, se preparava para ir para a Inglaterra junto com outros Haredim para expor suas denúncias contra o sionismo, quando foi assassinado com três tiros pelas costas enquanto voltava das orações em honra ao seu pai que acabara de falecer. O crime chocou tanto a comunidade árabe, quanto a judaica, pois o De Haan era alguém benquisto. Nos meios judaicos era um tabu que um judeu matasse outro judeu e a princípio o crime foi atribuído ao seu comportamento homossexual. A polícia chegou a prender por engano um jovem árabe local. No entanto, ao longo das investigações as ligações foram ficando mais claras. O assassinato não só havia sido perpetrado por mãos judias, mas pelo Haganah, organização terrorista criada para pressionar o Reino Britânico a criar o estado judaico. O assassino, Avraham Tehomi, anos mais tarde não somente admitiria a autoria do crime, como também diria que o fez a mando de Yitzhak Ben-Zvi, que seria mais tarde o segundo presidente de Israel. Nunca foi punido. Envolveu-se no comércio internacional de pedras preciosas e na sua biografia aparece como ativista.
Avraham Tehomi nos anos 1930
Considerações finais. O assassinato de Jacob Israel de Haan, pode ser lido como o primeiro assassinato político do sionismo. No entanto, quando a pesquisa foi se debruçar sobre os agentes envolvidos e principalmente sobre os mandantes desse crime, o Haganah não aparece listada como uma organização terrorista, muito embora seus atos fossem associados a atos terroristas, o assassinato inclusive. As palavras usadas são: organizações paramilitares, autodefesa etc. Esse não é o único exemplo, houveram outros. Destacamos aqui o assassinato do Barão de Moyne, que apontava no contexto do final da II Guerra para os excessos das organizações armadas sionistas na Palestina. Foi emboscado por membros do Lehí. Outro assassinato notável pela foi o de Folke Bernadotte, herói da II guerra mundial e responsável por salvar 450 judeus do Holocausto. Sua atuação o levou a ser escolhido para ser mediador no conflito de 1948-49. Foi assassinado pelo Lehí, que, aliás, não titubearia em se aliar aos nazistas. Yitzhak Shamir, mais tarde se tornaria premier de Israel e defenderia que a prática do “terrorismo” encontra paralelos na Torah. Mais uma vez, a história é escrita não só do que se lembra, mas do que se decide ignorar. Walter Benjamin, em sua alegoria do anjo da História, nos alerta para que olhemos para trás e resgatemos as ruínas.
Referências
GIEBELS, LUDY. “Jacob Israel de Haan in Mandate Palestine: Was the Victim of the First Zionist Political Assassination a ‘Jewish Lawrence of Arabia’?” Jewish Historical Studies 46 (2014): 107–29. http://www.jstor.org/stable/43855720.
STROOMENBERG, Bart Wallet; trad. Annemieke van der Vet. The Multiple Lives of Jacob Israël de Haan. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2023. Disponível em: https://library.oapen.org/bitstream/id/c9843d1e-4703-45eb-a317-4de724d686a1/The%20multiple%20lives%20of%20Jacob%20Israel%20de%20Haan.pdf.
HAARETZ. How and why the Haganah killed Jacob de Haan, the first political assassination in the Yishuv. Haaretz, Tel Aviv, 26 jun. 2024. Disponível em: https://www.haaretz.com/israel-news/2024-06-26.