Entre os anos de 1780 e 1815, o nascente Estados Unidos da América se envolveram numa série de conflitos intitulados de “Guerras Berberes”, por conta do assédio marítimo que vinham sofrendo dos reinos costeiros do Norte da África por quererem usar suas águas, porém forçando seus próprios preços. As províncias otomanas de Trípoli, Túnis e Argélia, bem como o sultanato independente do Marrocos, especializaram-se no provimento e projeção da atividade corsária em torno de vários pontos de intercessão entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico, formando uma barreira de contenção marítima ao fluxo da marinha mercante dos países ocidentais, que se viam obrigados a pagar tributos ou a fazer acordos de natureza comercial para que o livre trânsito fosse assegurado, prática cuja origem remonta desde o início da era moderna, entre os séculos XVI e XVII.
Mapa do Norte da África em 1794, Samuel Dunn.
As embarcações dos EUA, ainda colônia do império britânico, estavam sob o manto de proteção da Marinha Real para a realização, por exemplo, do Comércio Triangular, circuito internacional que envolvia a troca de escravizados africanos; produtos manufaturados e armamentos europeus; e produtos primários oriundos das colônias americanas (cana de açúcar, algodão, ouro etc). Com a instauração e consolidação do processo de independência dos EUA, principalmente após 1783, tal proteção cessa de existir de maneira permanente e as naus mercantes estadunidenses passam a depender do auxílio errático da marinha francesa (que termina logo que estoura a Revolução Francesa) e da marinha portuguesa, antiga opositora das estratégias magrebina de controle marítimo. O primeiro país a reconhecer a independência americana via um acordo de abertura de portos naquela altura foi o Marrocos, em 1777 na figura do sultão Mohammed III, mas que porém tais acordos eram renegociados de tempos em tempos com ajustes de preços (e incentivo inglês para que embarcações da colônia tornada independente fosse atacadas).
Carta de George Washington a Mohammed ben Abdallah em agradecimento pela assinatura do Tratado de Paz e Amizade assinado em Marrakech em 1787.
Nesse ínterim, em 1784, corsários marroquinos interceptam o bergantim Betsie, mas conseguem, logo em seguida, um acordo de paz e proteção mútua junto à diplomacia dos EUA. Entretanto, no ano seguinte, o Dey Muhammad da Argélia declara guerra ao capturar duas de suas escunas e fazer cativa todas as duas tripulações. Após sucessivas tratativas malfadadas para se chegar num consenso acerca do valor do resgate e dos critérios para a livre passagem, em 1794, o Congresso dos EUA comprometeu-se a: i) desembolsar 642 mil dólares em espécie (moedas de prata) pela paz com o reino argelino e pelos cativos americanos em sua posse; ii) pagar uma taxa anual de 21 mil dólares de despesas militares, necessárias para armamentos e suprimentos; iii) enviar dotes e presentes à corte e à família do Dey. Isso considerando apenas as despesas com a Argélia, com cada Estado magrebino exigindo uma taxa diferente pelo uso de suas águas.
O corso financiado pelos estados semi-independentes do Magrebe constituía parte significativa da infraestrutura necessária para o volumoso tráfico berbere de escravizados, que fez circular milhares de europeus entre os séculos XVI e XIX e que era a parte complementar de outro circuito em contrapartida de comércio de humano, menos conhecido e largamente ocultado, que tirou à força marroquinos, árabes e berberes de seus locais de origem e os escravizaram aos milhares nas penínsulas itálica e ibérica, um processo que se inicia já na idade média. Ambas representaram condições de vida precárias para a maior parte dos aprisionados, mas, de acordo com cartas e testemunhos da tripulação capturada pelo corso do Magrebe, havia muitos ex-escravizados europeus que conseguiram amealhar riqueza e poder, como atesta o exemplo de James Cathcart, que tinha alcançado o status de conselheiro do Dey, ou mesmo outros que foram do fundo das galés ao sultanato, enquanto a contrapartida de escravizados islâmicos em postos de poder na Europa e américas é desconhecida.
Thomas Jefferson, então 1º Secretário dos EUA, foi partidário da criação de uma marinha própria e financiada com recursos domésticos, posto que entendia não haver nenhum resguardo dos interesses comerciais norte-americanos através dos pagamentos de taxas às monarquias norte-africanas, então, investiram em sua invasão e destruição. Por conta de toda essa situação, foi aprovada a Lei Naval de 1794, que previa a disposição hierárquica, os provimentos e o desenho da frota da marinha americana submetida ao Presidente da República como seu comandante supremo e, em 1798, foi fundado o Departamento de Defesa Naval dos EUA. Porém, a proposta de Jefferson de ampliar e aprofundar a presença dos EUA no Atlântico recebeu oposição, seja pelo fato do país estar financeiramente endividado e destruído em decorrência do processo de independência, seja por conta de divergências internas no Partido Republicano, onde haviam alas que defendiam ser a expansão para o Oeste, e não o Atlântico, o horizonte mais desejável para o país.
Os pagamentos para resgate e tributos aos estados berberes já somavam 20% de todas as despesas governamentais dos EUA no ano de 1800. Esse também foi o ano das eleições presidenciais, que chancelaram a vitória de Jefferson como 3º presidente da República. Como rezava a tradição, o paxá de Trípoli, Yusuf Karamanli, cobrou mais 225 mil dólares à nova administração empossada para manter o acordo, pretexto perfeito para Jefferson, no ano seguinte, recusar o pagamento e colocar em ação seu plano de “proteger nosso comércio e castigar a insolência berbere”, dando início a chamada “Primeira Guerra Berbere” (1801 – 1805). Vale salientar que, apesar da Lei Naval conter um dispositivo de abortamento das operações militares após a feitura da paz com os estados corsários, cabia ao Presidente instruir seus comandantes a defender os interesses e segurança de americanos fora de casa e neutralizar quaisquer fontes de hostilidade vindas dos nativos magrebinos.
O comodoro Edward Preble, em 31 de maio de 1801, conseguiu ajuda de Fernando IV, do Reino de Nápoles, que forneceu aos americanos mão de obra, artesãos, suprimentos, canhoneiras, barcos de morteiro e os portos de Messina, Siracusa e Palermo para serem usados como bases navais para lançar operações contra Trípoli e, a partir do ano seguinte, todos os melhores navios da frota dos EUA foram designados para combate. Mas foi só no ano de 1805, quando o oficial do exército William Eaton e o 1º tenente do corpo de fuzileiros navais, Presley O’Bannon, marcharam de Alexandria até a cidade portuária de Derna, com fuzileiros e um grupo de 500 mercenários cretenses, gregos, bem como muitos beduínos árabes e berberes, que a virada aconteceu.
Os EUA planejavam depor o paxá Yusuf Karamanli e, em seu lugar, colocar seu irmão Hamet, que estava exilado no Egito. Depois de cruzarem o Egito e se assentarem em Derna, segunda maior cidade do reino tripolitano, as forças mercenárias lideradas pelos americanos foram brutais: assassinaram 800 pessoas e feriram outras 1200. Conseguiram hastear a bandeira americana na principal fortaleza de Derna e, de lá, conseguiram sitiar a capital por terra e por mar. O paxá Yusuf aceitou a derrota e concordou em assinar um novo acordo: entregar todos os cativos norte-americanos em troca da libertação de seus homens capturados pelos estadunidenses, além do recebimento de 60 mil dólares de pagamento.
Pintura representando o bombardeio de Trípoli em 3 de agosto de 1804.
Essa foi a primeira vez que a bandeira americana foi hasteada em solo estrangeiro, a primeira guerra dos EUA fora do continente e foi a primeira política de mudança forçada de regime em outra parte do mundo para atender os interesses econômicos norte-americanos. Até hoje, essa guerra é lembrada como um ato heroico de bravura, constando na letra do Hino dos Fuzileiros (“Das colinas de Montezuma ao litoral de Trípoli“) e no Monumento de Trípoli, localizado atualmente na Academia Naval dos EUA em Annapolis, Maryland. 10 anos depois da Primeira, aconteceu a “Segunda Guerra Berbere” (1815), agora contra Argel e cujo desfecho ocorreu ainda no mesmo ano, solapando de vez as bases da prática do corso na região e forçando os reinos locais a receberem o que os EUA considerassem adequado, quando muito, para usar suas águas e portos.
O Monumento a Trípoli, na Academia Naval dos EUA, em Annapolis, é o memorial de guerra mais antigo dos Estados Unidos.
Referências
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