O historiador britânico Edward Gibbon conseguiu cristalizar, a partir de sua volumosa obra “História do Declínio e Queda do Império Romano”, tendências interpretativas que foram adotadas por gerações sucessivas de historiadores da antiguidade, conformando, por isso mesmo, um clássico da historiografia moderna ocidental. Após um acúmulo de debates no campo da teoria e metodologia da História, no entanto, é difícil defender muitas das afirmativas presentes nesse clássico do século XVIII de forma acrítica. Porém, algumas teses de Gibbon ainda ecoam firme na opinião de muitos especialistas sobre um marco específico do período tardo-antigo: que a batalha de Poitiers demarcou o limite civilizacional posto por uma Europa Cristã (Ocidente) contra o avanço indomável das potestades islâmicas (Oriente), e que a batalha foi tão determinante, que se o resultado fosse outro, o autor coloca em termos apocalípticos que:
“Uma linha de marcha vitoriosa havia sido prolongada por mais de mil milhas do rochedo de Gibraltar até as margens do Loire; a repetição de um espaço igual teria levado os sarracenos aos confins da Polônia e às Terras Altas da Escócia; o Reno não é mais intransponível do que o Nilo ou o Eufrates, e a frota árabe poderia ter navegado sem um combate naval até a foz do Tâmisa. Talvez a interpretação do Alcorão fosse agora ensinada nas escolas de Oxford, e seus púlpitos pudessem demonstrar a um povo circuncidado a santidade e a verdade da revelação de Maomé.”
Contudo, faz sentido afirmar isso? Para o bem do raciocínio, vamos supor que a “hipótese-Poitiers” esteja correta, que se trata de um evento a encerrar um movimento anterior e a inaugurar uma conjuntura posterior distinta.
É verdade que o Califado Omíada, desde as invasões berberes capitaneadas por Tariq ibn Zayid em 711 no sul da Península, foi militarmente bem sucedido na conquista do território visigótico, só parando com a tomada de Toulouse no ano de 716, capital do ducado da Aquitânia, localizado no coração da atual França. Porém, antes de Poitiers, o duque aquitânio, Odo, empreendeu uma emboscada que fez com que o então líder militar Al-Samh ibn Malik al-Khawlani sofresse pesadas baixas, não lhe restando alternativa senão o recuo até Narbona com seus exércitos, morrendo logo em seguida devido à gravidade dos ferimentos. O Cerco de Toulouse (721), que atrasou a marcha muçulmana Europa adentro em quase uma década, é esquecido como um episódio fatídico de contra-arresto levado a cabo pela parte “cristã”.
Esse esquecimento é reflexo de uma política de apagamento deliberada vinda do lado… “cristão”: Odo não contava com as graças de Carlos Martel, então prefeito de palácio do reino dos Francos e que nada fez para auxiliar o duque contra as investidas árabes em seu território, mostrando que a Cristandade medieval estava bem longe de ver os “sarracenos” como única e mais importante ameaça. Vale frisar que o avanço mouro sobre o reino visigótico foi exitoso, não pela subjugação total e irrestrita dos inúmeros povos nativos ibéricos por meio do uso indiscriminado da força, visto que os muçulmanos não tinham sequer números para isso, mas através da colaboração desses mesmos nativos que, em troca de pagamento de tributo aos novos soberanos, conseguiam exercer seus costumes e preservar sua forma de organização político-administrativa. Muitos cristãos, e principalmente judeus, viram na chegada islâmica um alívio contra as medidas de repressão do reino visigótico. Por conta de sua instabilidade crônica, os próprios visigodos não tardaram em forjar, junto com a nova leva de invasores, aristocracias locais de cunho misto: visigóticos na origem, árabes na cultura e muçulmanos no credo.
Diante do abandono de seus “camaradas” cristãos mais ao norte e sendo constantemente ameaçado por escaramuças muçulmanas ao sul, Odo é obrigado a firmar, em 730, um acordo de proteção mútua com o governante rebelde na Catalunha muçulmana chamado Uthman ibn Naissa (Munuza, como ficou conhecido entre cristãos), concedendo a mão da própria filha ao senhor berbere. Apesar de estarem em lados opostos, tanto o cristão Odo quanto o muçulmano Munuza se opunham a seus respectivos senhores, fazendo com que partilhassem interesses imediatos de sobrevivência. O casamento consolidou uma aliança em que um ajudaria o outro com seus respectivos inimigos, sejam eles quais fossem. Essa aliança só se finda entre os anos de 731/732 quando a Aquitânia é devastada pelas forças de Carlos Martel e Munuza é decapitado por traição e Abdul Rahman al-Ghafiqi assume seu lugar, e este enfrentaria Carlos em Poitiers.
Até aqui, vimos quão historicamente frágil é a “hipótese-Poitiers”, mas passemos a analisar mais detidamente o evento propriamente dito. Em se tratando de um conflito armado acontecido no ano de 731 e que, de fato, culminou na vitória da coalizão liderado pelos francos, há um abismo semântico entre “Abdul Rahman al-Ghafiqi empreendeu uma campanha de conquista da Europa Ocidental que foi derrotada” e “Abdul Rahman empreendeu uma campanha de razia como tantas em território franco que foi eficientemente neutralizada”. No primeiro caso, as intenções e proporções militares assumem contornos monumentais: contingentes maciços de soldados árabes-berberes, preparados para liquidar as forças francas e tomar de assalto suas terras e seus súditos. No segundo caso, no entanto, a situação é menos gloriosa, tratando-se mais de táticas corriqueiras de “bater e correr” (saques e pilhagens seguidos de fuga) do que de enfrentamento aberto premeditado. O exército de al-Ghafiqi perde em Poitiers exatamente por debandar para o acampamento tentando proteger os espólios e riquezas da razia, motivo pelo qual haviam saído da Iberia para território franco em primeiro lugar.
E depois? Os omíadas se intimidaram diante da “força cristã tão pujante que salvou a Europa”? Na verdade, não! Nem eles, e nem os Estados muçulmanos sucessores. Os assédios se tornaram cada vez mais frequentes e vigorosos depois de Carlos Martel e, em 732, há um pico significativo no gráfico de incursões islâmicas na terra dos francos. Em 734, o califa Hisham I envia Uqba ibn al-Hajjaj al-Saluli para ampliar os muros do califado, a fim de adicionar mais contribuintes às fileiras dos dhimmis e os territórios islamizados. O então emir de Córdoba, Uqba, aproveita a Septimânia, região da Gália Franca tomada dos visigodos em 720 e base omíada para incursões terrestres e militares, para realizar duas frentes de projeção sobre o território dos Francos: uma no sentido noroeste em direção à Aquitânia e outra no sentido norte, em direção à Dauphiné e à Borgonha. E a vitória de Poitiers? Sim, ela só foi isso. Uma vitória naquele dia.
Setas azuis: ataques muçulmanos. Áreas em azul: regiões mais afetadas pelas incursões muçulmanos. Reparar datas posteriores a Poitiers (732).
Vale ressaltar que a frente Norte, conduzida pelo governador Yusuf de Narbonne, contou com a colaboração de vários condes cristãos, inclusive do duque cristão de Marselha, Maurontus. Essa invasão foi tão crítica que obrigou a Carlos Martel pedir ajuda ao reino adversário dos Lombardos, que efetivamente ajudaram os francos a fazer com que as tropas muçulmanas recusassem à Septimânia e começassem um cerco à Narbonne, que caiu em 759.
Mesmo perdendo a Septimânia, os mouros não permaneceram estáticos em suas fronteiras ibéricas, como atesta o Emirado de Fraxineto, fundado em 890 por 20 aventureiros de Al-Andalus, que aportaram na região de Provença, inaugurando mais uma base muçulmana em território franco. Por meio de um acordo firmado em 924 com Hugo, Duque de Provença, o Emirado de Fraxineto, além de consolidar a presença entre os provençais (que não os viam como inimigos), conseguiu formalmente o controle dos Alpes Suíços em troca de suporte militar ao duque. Com isso, Hugo garantiu o apoio do poderoso califa árabe-basco Abdul Rahman III de Córdoba na Espanha, um possível aliado contra ameaças vindas do norte. As rotas comerciais floresceram, conectando Fraxineto a Genebra, Lyon e ao norte da Itália, que também passaria por suas próprias conquistas islâmicas no século seguinte. A influência cultural transcendeu as fronteiras do comércio: Palavras como “aceituna” e “alcazar” se incorporaram ao idioma provençal, eternizando a presença muçulmana. Os emirados de Taranto e de Bari, e mais famosamente o da Sicília, todos na península itálica, também são evidências cabais de que os muçulmanos estavam longe de estarem barrados da Europa.
Há quem diga, numa leitura às avessas, que a Batalha de Poitiers representou a criação de uma Europa atrasada do ponto de vista econômico, balcanizada e fratricida que, ao se definir pela oposição ao Islã, transformou em virtude a aristocracia hereditária, a intolerância religiosa persecutória, o partidarismo cultural e a guerra perpétua, deixando para trás um legado islâmico desprovido de casta sacerdotal, animado pelo dogma da igualdade dos fieis e respeito a todas as crenças religiosas, sem contar nos inúmeros avanços no campo da astronomia, trigonometria, filosofia, etc. Nas palavras do historiador americano David Levering Lewis em seu livro “O Islã e a Formação da Europa de 570 a 1215”:
“A Batalha de Poitiers, que interceptou o Islã quando este contornava os Pirineus, em 732, e o martírio de Rolando e de seus companheiros, quase meio século depois em Roncesvales (Roncevaux), foram acontecimentos de consolidação e de comemoração da identidade emergente do povo chamado de ‘’europense’’ pela primeira vez, por um sacerdote espanhol desconhecido do século VIII. (…) Sob essa perspectiva, a batalha de Poitiers e a Canção de Rolando são momentos fundamentais na criação de uma Europa atrasada do ponto de vista econômico, balcanizada e fratricida que, ao se definir pela oposição ao Islã, transformou em virtude a aristocracia hereditária, a intolerância religiosa persecutória, o partidarismo cultural e a guerra perpétua.
O massacre em Roncesvalles deu ao ‘’Ocidente’’ um herói icônico que personificava a supremacia casta e o valor marcial irrestrito: Rolando é um protótipo do caubói norte-americano do século VIII. Poitiers e Roncesvalles alimentaram a ideologia da Guerra Santa e, com o tempo da arrogância nacional para conter o avanço do Islã. A maior parte da história é indiscutivelmente escrita pelos vencedores; no entanto, ‘’vencer’’ em Poitiers na verdade significou que os níveis econômicos, científicos e culturais que os europeus atingiram no século XIII poderiam, quase com certeza, ter sido alcançado mais de três séculos antes de eles terem sido incluídos no império mundial muçulmano. Com poucas exceções, o famoso pronunciamento de Edward Gibbon influenciou os julgamentos de valor reproduzidos pelos historiadores no que diz respeito ao desfecho desejável da disputa entre essas duas ordens mundiais. O grande historiador do século XVIII sentiu um calafrio ao elaborar sua famosa ideia do que poderia ter se seguido à vitória árabe em Poiters: “Talvez a interpretação do Corão hoje fosse ensinada nas instituições de educação de Oxford e seus púlpitos talvez apresentassem ao povo circuncidado a santidade e a verdade da revelação de Maomé.’’
Um ou outro estudioso colocou uma questão mais filosófica a respeito de Poitiers, que se desvia de considerações relativas à nacionalidade ou religião. Diminuindo os julgamentos de valor ao grau possível, esses acadêmicos iniciaram especulações a respeito do custo-benefício do derramamento de sangue cerca de cem quilômetros dos Pirineus. Se os homens de Abd al-Rahman tivessem prevalecido naquele dia de outubro, o Ocidente pós-romano provavelmente teria sido incorporado a um regnum muçulmano cosmopolita sem a obstrução de fronteiras. De acordo com essa hipótese, um reino desprovido de casta sacerdotal, animado pelo dogma da igualdade dos fieis e respeito a todas as crenças religiosas. Curiosamente, tal especulação tem pedigree francês. Há quarenta anos, dois historiadores, Jean-Henri Roy e Jean Deviosse, enumeraram os benefícios de um triunfo muçulmano em Poitiers: astronomia, trigonometria, numerais arábicos, o corpus da filosofia grega. “Nós (a Europa) teríamos ganhado 267 anos”, conforme seus cálculos. “Poderíamos ter sido poupados das guerras religiosas.”
De uma forma ou de outra, Poitiers continua sendo um instrumento retórico poderoso, um exagero a serviço dos mitos de fundação nacional, mas nunca como o que devidamente foi: uma batalha vitoriosa que, no entanto, estava longe de ganhar a guerra, pois é um fato histórico que após ela, os muçulmanos não pararam de avançar, interrompendo suas conquistas, tanto as vidas da Itália quanto da Espanha no que hoje é o território da Suíça, sem que uma determinada batalha nos Alpes freasse seu avanço.
No fim, o que impediu uma tomada muçulmana da Europa foram dois fatores: suas divisões internas que drenavam recursos militares de tempos em tempos, e porque o Oriente a ser conquistado em direção a China era infinitamente mais rico, ou como coloca Bernard Lewis:
“Da Europa cristã pouca coisa atraia os muçulmanos em termos de comércio. A Europa em sua Idade Média não era uma conhecida exportadora de nada de valor apreciado pelo resto do mundo, e praticamente tudo que era manufaturado com algum valor comercial na Europa era obtido das distantes terras orientais pelo mundo islâmico como fornecedor e as vezes como intermediário. Porém, pelos registros da história alguns poucos produtos europeus parecem ter atraído uma certa atenção de escritores muçulmanos medievais. Eram eles: armas, lã inglesa e, é claro, escravos eslavos.” (A Descoberta da Europa pelo Islã – Bernard Lewis – cap. 7 A economia: Percepções e Contatos.
Referências
HISTÓRIA ISLÂMICA. BARI: um emirado árabe na Itália Medieval. Disponível em: Porta História Islâmica. Acesso em: 11/12/2024.
GAIÃO, Pedro. POITIERS NÃO SALVOU NADA: Conheça a Septimania, o enclave muçulmano da França Medieval. Disponível em: Portal História Islâmica. Acesso em: 11/12/2024.
____________. CARLOS MARTEL SALVOU A EUROPA NA BATALHA DE TOURS-POITIERS?. Disponível em: Portal História Islâmica. Acesso em: 27/12/2024.
BALLAN, Mohammad. “Fraxinetum: An Islamic Frontier State in Tenth Century Provence”. A Journal of Medieval Renaissance Studies. 2010. Acesso em: 2024.
LEWIS, David Levering. O ISLÃ E A FORMAÇÃO DA EUROPA DE 570 A 1215. Barueri: Amarylis, 2009, p. 502.
COLLIN, Rogers. THE ARAB CONQUEST OF SPAIN 710-797. Oxford, UK/Cambridge, USA: Blackwell, 1989, p. 195.
HOLT, P.M. et al. THE CAMBRIDGE HISTORY OF ISLAM. Cambridge: Cambridge University Press, 1977, p. 95.