Texto de Javier Blanco, publicado no El Orden Mundial em 10 de fevereiro de 2019. Traduzido por Vinícius Tanure.
Nas primeiras linhas de “La cárcel del feminismo”, a autora muçulmana sírio-granadina explica que se animou para escrever o livro porque um professor a perguntou por que uma muçulmana de hijab faria uma tese de doutorado. Uma conduta carregada de islamofobia de gênero que, apesar de não ser visível à primeira vista, mantém um pano de fundo fortemente enraizado em narrativas historicamente construídas sobre o “outro”, nas quais o Islã é o inimigo.
No caso da Espanha, a alteridade distintiva em relação ao Islã foi construída em torno do imaginário de al-Andalus, um período de cerca de 800 anos da história da Península Ibérica, relegado do catolicismo nacional franquista a um parêntese na história da Espanha. Datar o nascimento da Espanha, no entanto, é difícil; existe um amplo debate que oscila dos séculos XV e XVI ao século XIX. Só podemos garantir que o que hoje constitui a Espanha, tem suas raízes na Hispânia Romana, bem como na história dos visigodos, celtas e ibéricos, enquanto que, em relação ao período andaluz, há uma forte rejeição, visto que este é excluído como um passado legítimo e influente na construção da Espanha e de Portugal.
Essa visão distorcida da história andaluza transcende as fronteiras peninsulares. A crescente islamofobia em todo o Ocidente abraça as teorias do “choque de civilizações”, que veem o Islã como um inimigo ameaçador e que veem a queda de al-Andalus – em referência às cruzadas – como uma vitória da civilização ocidental contra a barbárie islâmica. Por sua vez, essa polarização entre “bons” e “maus”, favorece grupos jihadistas, que instrumentalizam essas narrativas como método de recrutamento.
Renascimento pré-renascentista
Na Idade Média, o continente europeu se encontrava em um período hoje descrito como uma longa era de obscuridade e letargia cultural, uma Europa decadente que ansiava pelos tempos em que o Velho Continente brilhava com as civilizações de Grécia e Roma, e que só voltaria à vanguarda cultural com o Renascimento, que emergiu da Itália para o resto da Europa nos séculos XV e XVI. A narrativa ocidental, etnocêntrica, de séculos de obscuridade cultural no Medievo ignora a existência da civilização islâmica que, em ambas as margens do Mediterrâneo, escreveu a história do esplendor medieval em árabe. Partindo de uma al-Andalus arabizada e islamizada, caminha-se em direção ao Renascimento antes mesmo do próprio renascimento.
Enquanto a Europa cristã se mantinha em sua letargia cultural, a civilização e cultura islâmica se posicionou na vanguarda comercial, cultural e científica, um esplendor que pode ser visto no Califado Abássdia (750-1258), sob cuja proteção se desenvolveu a escola de pensamento islâmica mutazilista – que se tornou oficial por um período – e cuja dedicação estava voltada à tradução e interpretação de obras filosóficas gregas e a disseminação de uma teologia islâmica pretensamente racionalista.
Alguns filósofos faziam parte desta corrente teológica, como o centro-asiático al-Farabi, ou o famoso médico persa, Avicena, respectivamente conhecidos como “segundo mestre” e “terceiro mestre” – o primeiro seria o filósofo grego Aristóteles. Al-Farabi é considerado o maior tradutor e difusor do mestre grego em árabe. Avicena, além de seu trabalho sobre Aristóteles e o neoplatonismo, escreveu o importante “Cânone da Medicina”, que seria estudado nas faculdades de medicina europeias até o século XIX.
Al-Andalus, como parte da civilização e da cultura islâmica, recebeu influências culturais e intelectuais do Oriente Próximo e do Norte da África. Áreas como a agricultura, a matemática, a poesia e a medicina foram desenvolvidas neste contexto. Através da obra do filósofo muçulmano cordovês Averróis – que juntamente ao médico judeu Maimônides, foi o filósofo andaluz mais influente – o pensamento aristotélico foi transmitido para o resto da Europa continental.
O elemento essencial da vanguarda cultural islâmica foi a preservação da “razão helenística” entre filósofos muçulmanos, como al-Farabi, Avicena e Averróis, que posteriormente daria origem ao Renascimento Europeu e, séculos depois, evoluiria para a democratização europeia sob os princípios a Revolução Francesa. Portanto, entender al-Andalus como um mero parênteses é amputar uma parte crucial dos fundamentos da história da Espanha e da Europa.
A Reconquista, o mito nacional-católico
Apesar de a construção dos estados-nação modernos estar intimamente ligada ao desenvolvimento integral de sua história, existe uma visão muito difundida que nega o legado andalusino como parte desta construção. Para o nacional-catolicismo, al-Andalus é entendida como uma descontinuidade invasiva e estrangeirizante na história da Espanha. A ideia de Espanha é, portanto, única e indissociavelmente ligada ao desenvolvimento do catolicismo, que, por sua vez, tem raízes em um glorificado Império Romano. Em 2008, o polêmico cardeal e arcebispo espanhol Antônio Cañizares dizia que a “Espanha” lutou por oito séculos contra o Islã para fortalecer a fé católica e que, portanto, o cristianismo constitui a alma da nação, excluindo, assim, tudo o que é árabe e islâmico – e, consequentemente, andalusino – dessa Espanha.
O cardeal Cañizares estava apelando para o conceito de “Reconquista”, uma invenção popularizada por historiadores e arabistas de tendência nacionalista durante os séculos XIX e XX. Até então, ninguém jamais havia se referido ao processo de conquista cristã da Península Ibérica com essa terminologia. A cunhagem exclusiva deste épico está intimamente ligada à construção contemporânea da identidade nacional espanhola. A intenção é associar a história imperial da Hispânia e a presença visigótica com a Espanha atual, apesar de não ter existido continuidade territorial ou institucional entre elas e a Espanha de hoje.
Durante o século XIX, arabistas como Eduardo Saavedra e Francisco Javier Simonet chamaram os séculos de história andalusina de “catástrofe nacional”, quando o invasor muçulmano acabou com os direitos e as liberdades civis espanholas. Os dois fizeram uma distorção anacrônica do passado, visto que na Idade Média o conceito de “Espanha” era marginal ou mesmo desconhecido – em favor da muito diferente “monarquia hispânica” – e tais direitos e liberdades só começaram a ser contemplados filosófica e juridicamente no século XVIII.
É sobre essa suposta catástrofe que se justifica a existência da “Reconquista”, privando, assim, al-Andalus de legitimidade histórica, jurídica e cultural como expressão da barbárie que o Islã representa para o nacional-catolicismo desde a chegada dos árabes à Península Ibérica em 711 até a conquista de Granada pelos Reis Católicos em 1492.
Toda mitologia também precisa de figuras e batalhas elevadas à categoria de marcos históricos e culturais. Na chamada Reconquista, um nome se destaca acima de todos os outros: El Cid Campeador, um nobre de Burgos que personifica o paradigma do heroísmo cristão e da estratégia militar na “guerra contra os mouros”. No entanto, El Cid era um mercenário que passou tanto, ou até mais tempo, nas terras muçulmanas de al-Andalus quanto nos reinos cristãos.
O mito da catástrofe e da Reconquista segue a reverberar socialmente. Ainda é comum pensar em al-Andalus como a “anti-Espanha”, um território histórico e cultural alienado da construção do “nós”. De fato, nas últimas décadas, essa mitologia nacionalista parece ter ressurgido com obras como a do historiador César Vidal, autor de “Espanha frente al Islam: de Mahoma a Ben Laden” ou do arabista Serafín Fanjul, autor de “Al Ándalus contra España”.
Autoras como a historiadora María Elvira Roca Barea e seu livro “Imperiofobia y la leyenda negra” se tornaram vozes proeminentes no acelerado rearme intelectual do nacional-catolicismo e consideram que o nacionalismo espanhol não existe e nunca existiu, baseando-se no fato de que os nacionalismos são excludentes e a Espanha nunca o foi. No entanto, o nacionalismo espanhol existe e é tão excludente e identitário quanto os outros. Os principais motes da campanha do partido de extrema-direita espanhol Vox nas eleições da Andaluzia em dezembro de 2018 faziam contínuas referências a essa história, afirmando que a “Reconquista começará em terras andaluzas”, as mesmas em que se expulsou o invasor muçulmanos nas Navas de Tolosa e que conquistou a rendição de Boabdil em Granada – último rei andalusino – em 1492.
Do inimigo vermelho ao inimigo verde
Por que no caso do Império Romano, das civilizações ibéricas e célticas, ou mesmo no caso dos reinos visigóticos, há uma inquestionável continuidade histórica que leva à Espanha moderna, mas no caso de al-Andalus é negada sua parte nesta continuidade? A exclusão de oito grandes séculos de cultura andalusina como parte da memória espanhola e europeia não responde a uma leitura ingênua da História, mas se enquadra em uma oposição distorcida entre um “eles” – o Islã – e um “nós” – o Ocidente – que transcende o meramente hispânico.
A ideia de al-Andalus como um parêntese na História da Espanha, o conceito de “Reconquista” e a consequente expulsão dos muçulmanos por parte dos cristãos através de uma cruzada liderada pelos Reis Católicos são elementos da tradição nacional-católica revitalizadas na narrativa islamofóbica do “choque de civilizações”, conceito popularizado em 1993 pelo cientista político Samuel Huntington, que considerava que os conflitos internacionais após o fim da Guerra Fria seriam marcados por diferenças culturais insuperáveis entre civilizações – das quais o Ocidente é uma e o Islã, outra.
Em 2004, o ex-presidente do governo espanhol, José María Aznar, dizia numa conferência universitária sobre terrorismo que o problema da Espanha com a al-Qaeda remontava ao século VIII; dois anos mais tarde, sugeriu que os muçulmanos deveriam pedir desculpas por “ocupar a Espanha por oito séculos”, muito embora nem a Espanha, nem a al-Qaeda, existissem. Dessa forma, o ex-presidente conectava a leitura nacional-católica da História espanhola com o discurso xenofóbico e islamofóbico tão crescente no Ocidente, onde lideranças, como o presidente da Hungria, Viktor Orban, consideram que os muçulmanos não são refugiados, mas “invasores”.
Desde a queda do Muro de Berlim e a desintegração da União Soviética entre 1989 e 1991, a ameaça para a civilização era vermelha – o comunismo. Com o fim da Guerra Fria, era necessário prover o imaginário ocidental com um novo inimigo estrangeiro que reafirmasse sua coesão e identidade – então, a ameaça passou a ser verde: o Islã assumiu o papel de antítese da civilização. Enquanto o Ocidente se apresenta como guardião das liberdades, da democracia e dos direitos humanos, o Islã – assim como o comunismo, antes dele – passou a ser o sinônimo mais latente de barbárie e autoritarismo.
A última grande derrota do maior inimigo vermelho, a União Soviética, foi a guerra do Afeganistão nos anos 1980. O apoio financeiro e militar dos Estados Unidos aos mujahidins – inimigos da URSS e que mais tarde originaria o Talibã – se transformou num prelúdio involuntário, mas paradoxal, desta troca de cores. E, apesar de os EUA não terem fundado a al-Qaeda, como alguns afirmam, seu apoio aos grupos islamistas afegãos alimentou o consequente nascimento desta organização terrorista, considerada a principal inimiga do Ocidente após os ataques de 11 de setembro de 2001.
A outra Reconquista
Al-Andalus sempre foi contemplada pela literatura árabe-islâmica a partir da perspectiva da nostalgia, como se fosse um paraíso perdido e um período de esplendor em uma Europa Medieval que se encontrava em obscuridade cultural. Essa ideia nostálgica de paraíso terrestre é repleta de significados a depender de quem a narre, já que funciona como um importante motor de construção identitária. Enquanto a narrativa imposta pela perspectiva ocidental visa excluir al-Andalus como parte da História e identidade da Espanha e da Europa, os grupos terroristas também encontram na história andalusina uma desculpa ideológica e propagandística para justificar e enquadrar sua luta num cenário globalizado.
Antes mesmo do Daesh, grupos como a al-Qaeda, al-Shabab na Somália ou o Boko Haram na Nigéria se referiram a al-Andalus como uma espécie de paraíso perdido. Em diversas ocasiões, militantes da al-Qaeda fizeram referência direta à pretensão de recuperar al-Andalus; em 2001, compararam a perda de al-Andalus com a causa palestina. As ameaças do Daesh, apesar de menos numerosas que a da al-Qaeda, recebem muita atenção, talvez por causa da superestimação do problema do terrorismo contemporâneo. Imagens de bandeiras do Daesh em monumentos espanhóis como forma de ameaça viralizaram e vídeos de seus militantes afirmaram que a Espanha é terra de seus antepassados e lhes pertence, como o famoso vídeo do jihadista espanhol apelidado de Cordovês, que estava após os atentados de 17 de agosto de 2017 em Barcelona, clamou por vingança pelos assassinatos de muçulmanos andalusinos pelos “cristãos espanhóis”, uma instrumentalização tão distorcida, anacrônica e oportunista da História de al-Andalus como a que se faz no na
A glorificação de al-Andalus pelos jihadistas funciona exclusivamente como mito mobilizador e identitário em seus esforços de recrutamento, sendo um erro interpretar essas ameaças de maneira literal. Nem mesmo entre 2014 e 2015, quando o Daesh possuía maior capacidade operacional, representou uma ameaça à integridade territorial da Espanha ou de qualquer outro país europeu, como alguns meios de comunicação ocasionalmente afirmam, criando um alarme social infundado e desnecessário, ao mesmo tempo em que promovem a islamofobia.
A radicalização terrorista é produzida num cenário de ação e reação entre um inimigo hipotético – o Ocidente, “eles” – e os terroristas – o Islã, “nós” – um processo impulsionado, dentre outras coisas, pela existência de uma narrativa islamofóbica que permite a canalização das frustrações pessoais através da contraposição oportunista entre o Oriente e o Ocidente. Sem uma massa populacional ligada a identidades excludentes, as chances de a frustração levar à radicalização e ao terrorismo diminuem, uma vez que não haveria confronto narrativo suficiente para se justificar em um discurso bélico de choque de civilizações.
A História não é mais que um relato sobre o passado construído de maneira oportunista, uma elaboração narrativa que dá sentido e continuidade a identidades contemporâneas. É difícil construir a história sob o amparo da objetividade; assim sendo, construir um relato de nosso passado não é uma questão trivial: ela determina se as identidades atuais são excludentes e polarizadoras, ou, ao contrário, se baseiam na tolerância e no respeito que um passado e um presente compartilhados implicam.



