A distorção do passado Mogol na Índia

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Texto original de Richard M. Eaton, publicado no Engelsberg Ideas. Traduzido por Vinícius Tanure.

“Como acontece em todas as autocracias”, escreveu David Remnick em abril passado, “este governo exige uma visão mística de um passado imaginado”. Apesar de Remnick estar falando dos Estados Unidos de Trump, algo do tipo poderia ser dito sobre a Índia de hoje. Fundamentado pelos ideais hindutva (extrema-direita hindu), o partido BJP, que governa o país, imagina uma “era dourada” abruptamente interrompida quando muçulmanos invadiram e ocuparam um reino sagrado, inaugurando uma longa e sombria “era sombria” de violência e tirania anti-hindu. Em 2014, o primeiro-ministro da Índia declarou que o país viveu 1200 anos de “escravidão” (ghulami), referindo-se aos dez séculos de governo islâmico e dois séculos de Raj Britânico. Mas enquanto os britânicos, nesta visão, tiveram a decência de se retirar do país, os muçulmanos não deixaram a terra que eles supostamente violaram e saquearam. Para dizer o mínimo, a História da Índia se transformou num campo minado político.

Entre o início dos século XVI e meados do século XVIII, perto do final desses 12 séculos de alegada “escravidão”, a maior parte do Sul da Ásia foi dominada pelo Império Mogol, um sistema político deslumbrante que, governado por uma dinastia de muçulmanos, foi durante algum tempo, o Estado mais rico e poderoso do mundo. Embora tenha entrado em declínio no século anterior à sua liquidação pela Rainha Vitória em 1858, a Índia contemporânea seria irreconhecível sem a marca que os mogóis deixaram, e continuam a deixar, em sua sociedade e cultura. Foram eles que, pela primeira vez, unificaram politicamente a maior parte do Sul da Ásia. Em todo 15 de agosto, desde 1947, o Dia da Independência da Índia, o primeiro-ministro do país reconhece, sem querer, o legado político dos mogóis, ao proferir um discurso à nação a partir das muralhas do mais poderoso símbolo do poder mogol – o grandioso Forte Vermelho de Déli, construído em 1648. Boa parte da infraestrutura administrativa e legal da Índia Moderna foi herdada das práticas e procedimentos mogóis. A base da moeda corrente indiana, a rúpia, foi padronizada pelos mogóis. O vestido indiano, sua arquitetura, línguas, arte e discursão estão permeados de práticas e sensibilidades mogóis. É difícil imaginar a música indiana sem o sitar, a tabla ou o sarod. Quase todo restaurante indiano, seja na Índia ou fora dela, terá seus frangos tandoori, kebab, biryani ou shahi paneer. É difícil proferir uma frase sequer em alguma língua do norte da Índia sem utilizar palavras de origem persa, a língua oficial dos mogóis. O meio de entretenimento mais popular da Índia – o Cinema Bollywood – está saturado com diálogos e músicas em urdu, uma língua que, tendo suas raízes na língua vernácula da corte mogol, se difundiu por toda a região graças à sua associação com o patrocínio imperial e ao prestígio da principal capital da dinastia, Déli.

Sim, apesar de tudo isso, e não obstante o discurso nacional do primeiro-ministro no Forte Vermelho de Déli, o governo da Índia está empenhado em uma campanha determinada para apagar os mogóis da consciência pública, na medidad do possível. Nos últimos anos, o ensino da história mogol foi severamente restringido, ou mesmo abolido em todas as escolas que seguem o currículo nacional. O estudo sobre os mogóis foi completamente eliminado na sétima série (para alunos com cerca de 12 anos), um pouco dele aparece na oitava serie, nada nas séries da nona à décima primeira, e uma versão reduzida sobrevive na décima segunda série. Em 2017, um folheto turístico do governo omitiu qualquer menão ao Taj Mahal, o ápice da arquitetura mogol e um dos tesouros mais gloriosos do mundo, concluído em 1653. Advogados em Agra, onde está o monumento, chegaram a entrar com uma petição na justiça para que ele fosse declarado um templo hindu.

Embora essas medidas radicais não tenham conseguido ganhar força, o governo nacional tem feito esforços mais sutis para dissociar o monumento dos mogóis e identificá-lo com a sensibilidade hindu. Por exemplo, as autoridades eliminaram o ‘a’ inicial do nome de um de seus jardins, de modo que, o que era Aram Bagh, “O Jardim da Tranquilidade”, agora é Ram Bagh “o Jardim de Ram”, popular divindade hindu. Esta é a mesma divindade à qual o atual governo indiano recentemente dedicou um extravagante templo no complexo da Babri Masjid, a mesquita construída pelo fundador dos mogóis em 1528 no leste da Índia, que acabou sendo demolida, tijolo por tijolo, por uma multidão de ativistas hindus.

Tudo isso suscita duas questões: como uma rica cultura mogol de forte influência pérsia conseguiu criar raízes tão profundas na Índia contemporânea? E por que, nos últimos anos, a memória dessa cultura tem sido ameaçada?

Desde o início do século XIII, uma série de dinastias, conhecidas coletivamente como Sultanato de Déli, dominava a planície do norte indiano. A última dessas casas dinastias, os Lodis, de etnia afegã, foi desalojada pro uma das figuras mais marcantes do início da história moderna, Zahir al-Din Babur (1483-1530). Em 1526, Babur liderou um exército composto principalmente por vassalos turcos nascidos livres, partindo de sua base em Cabul, atravessando o Passo de Khyber e chegando à vasta planície indo-gangética, lançando assim o que se tornaria o Império Mogol.

Assim como ocorreu com os sultões de Déli, o sucesso da nova entidade política residia no controle do acesso às antigas rotas comerciais que ligavam Déli e Lahore a Cabul, Balkh e aos mercados da Ásia Central, como Samarcanda e Bukhara. Por séculos, algodão e outros bens indianos foram levados ao norte através desta rota, enquanto cavalos – mais de cem mil por ano, na época de Babur – iam em direção ao sul, para os mercados do Sul da Ásia. Os cavalos de guerra, juntamente aos elefantes de guerra nativos, constituíram a base do poder dos estados indianos por muito tempo. Mas os cavalos maiores e mais fortes, preferidos pelos governantes indianos, tinha que ser continuamente importados do exterior, especialmente das vastas pradarias da Ásia Central, onde rebanhos nativos vagavam livremente.

Tendo estabelecido um reino incipiente centrado em Déli, Agra e Lahore, Babur legou aos seus descendentes uma duradoura ligação com o mundo cosmopolita da Ásia Central timúrida, uma sensibilidade estética refinada, um amor pelo mundo natural refletido em suas memórias, o Baburnama, e uma paixão por jardins. Visando recriar os locais paradisíacos de sua terra natal centro-asiática na Índia, Babur construiu jardins em todo o reino, uma prática que seus descendentes manteriam, culminando no Taj Mahal.

Visto que morrera apenas quatro anos após a chegada na Índia, o novo reino de Babur apenas manteve muitas das instituições dos derrotados Lodis, como a atribuição de terras aos seus assessores mais confiáveis, por meio das quais eles coletavam impostos e mantinham um número específico de cavaleiros para uso do Estado. Foi o filho de Babur, Humayun (r. 1530-40, 1555-56) que deu os primeiros passos para aprofundar as raízes da legitimidade mogol em solo indiano, quando se casou com a filha de um proprietário de terras muçulmano indiano, ao invés de uma turca centro-asiática, uma prática que ele encorajou seus nobres a seguir. Mais importante ainda, enquanto estava sentado em um pavilhão elevado (jharokha) que se projetava das paredes externas de seu palácio, ele saudava o sol nascente da manhã e mostrava seu rosto ao público, da mesma forma que o sol se mostrava a ele. Essa era a continuidade de uma antiga prática dos rajás indianos que sutilmente combinavam a imagem de um monarca sentado com o ícone de uma divindade brâmane, diante da qual se prestava reverência respeitosa por meio do contato visual mútuo (darshan).

Os mogóis se indianizaram ainda mais durante o longo reinado do filho de Humayun, Akbar (r. 1556-1605). Enquanto os sultões de Déli apresentaram dificuldades para lidar com os clãs guerreiros rajaputes que dominavam a política do Norte da Índia, Akbar adotou a política oposta, absorvendo-os em seu império como reis subordinados. Quase todos os reis rajapute aceitaram este acordo, pois, desta forma, poderiam manter autoridade sobre suas terras ancestrais e também receber posições de alto escalão na nova elite governante criada por Akbar, os mansabdars imperiais. Sua nova posição também os permitia atuar em todo o cenário político indiano, em vez de permanecerem como notáveis provinciais. Além disso, eles receberam liberdade religiosa, incluindo o direito de construir e patrocinar templos hindus. Com o tempo, surgiu um espírito guerreiro comum tanto aos mogóis quanto aos rajaputes, que se sobrepôs às identidades religiosas, permitindo que estes últimos entendessem os guerreiros muçulmanos como companheiros rajaputes e até mesmo equiparassem o próprio Akbar à divindade Rama. De sua parte, Akbar e seus sucessores, como senhores soberanos dos rajaputes, adquiriram pagamentos regulares de tributos de casas dinásticas subordinadas, o serviço da melhor cavalaria do norte da Índia, o acesso ao mar através das rotas comerciais do Rajastão que conduziam aos lucrativos mercados de Gujarat e a incorporação de princesas rajaputes ao harém imperial.

Este último ponto se revelou especialmente importante. À medida que mais estados rajaputes se submetiam à soberania mogol, a corte imperial se expandiu em u mmundo vasto, multiétnico e centrado nas mulheres, no qual o elemento rajapute foi ganhando influência de forma constante sobre outras etnias. Além disso, visto que as mulheres rajaputes poderiam se tornar esposas do imperador, do tempo de Akbar em diante, um filho do imperador com uma rajapute era elegível ao trono. Como resultado, o filho de Akbar, Jahangir (r. 1605-1623) era meio rajapute, já que sua mãe era uma princesa rajapute. Jahangir, por sua vez, se casou com sete filhas de lideranças rajaputes, uma das quais foi mãe de seu sucessor imperial, Shah Jahan, tornando este último três quartos rajapute.

Inevitavelmente, as mães rajaputes no harém imperial transmitiam sua cultura aos seus filhos, que eram criados no mundo do harém. Isso possibilitou a penetração profunda das sensibilidades e valores indianos na cultura imperial mogol, refletida na arte, na arquitetura, na língua e culinária imperiais. Ao mesmo tempo, a absorção da cavalaria rajapute no sistema imperial permitiu que práticas militares nativas se difundissem em toda cultura militar do império.

Além disso, como todos os imperadores verdadeiramente indianos, os mogóis se envolveram com as tradições literárias sânscritas e acolheram estudiosos brâmanes e jainistas em suas cortes. Dos anos 1580 em diante, Akbar patrocinou traduções persas de grandes épicos sânscritos, como Mahabharata e Ramayana, adaptando efetivamente o pensamento indiano às noções mogóis de política. Enquanto o Mahabharata sânscrito enfatizava a ordem cósmica e social (dharma), sua tradução persa enfatizava as virtudes próprias do rei. Da mesma forma, o Ramayana sânscrito foi sutilmente remodelado como uma meditação sobre a soberania mogol, enquanto o herói da epopeia, Rama, foi associado ao próprio Akbar, como se o imperador fosse um avatar de Vishnu.

Começando com Akbar, os mogois também promoveram fusões culturais nos domínios da medicina e da astronomia. Por volta de meados do século XVII, a tradição médica greco-árabe mogol foi completamente indianizada, à medida que estudiosos indo-persas se envolviam com obras indianas (ayurvédicas) sobre farmacologia e o uso de plantas nativas da Índia.

Similarmente, do final do século XVI em diante, os dicionários perso-sânscritros permitiam que os eruditos sânscritos absorverem ideias árabe-persas que foram derivadas das antigas noções gregas de uniformidade natural e leis do movimento. Esse conhecimento, junto às tábuas astronômicas patrocinadas por Shah Jahan, que permitiam a previsão dos movimentos planetários, disseminou-se então entre a classe dominante mogol-rajapute em geral.

O indício mais revelador da aceitação pública dos mogóis como autenticamente indianos é que, tanto no século XVIII, quanto no XIX, quando o império enfrentou ameaças existenciais externas, as forças nativas se uniram em torno do imperador mogol como o único soberano legítimo do país. Em 1739, o comandante militar persa Nadir Shaw invadiu a Índia, derrotou um exército mogol numericamente superior ao seu, saqueou Déli e retornou ao Irã com um enorme saque, incluindo o Trono do Pavão, carregado de simbolismo. Naquele momento, os maratas, que resistiram ferozmente à imposição da hegemonia mogol na península indiana, perceberam que os mogóis representavam o símbolo último da soberania indiana e que deveria ser preservada a todo custo. O ministro-chefe dos maratas, Baji Rao (1700-1740) chegou a propor que todos os principais atores políticos do norte da Índia formassem uma confederação para apoiar e defender a enfraquecida dinastia mogol dos invasores estrangeiros.

Em meados do século XIX, a Companhia Britânia das Índias Ocidentais adquiriram o controle de fato de grande parte do subcontinente, enquanto o governante mogol, Bahadur II (r. 1837-1857) havia sido reduzido a um prisioneiro virtual no Forte Vermelho de Déli, um imperador apenas em nome. Em 1857, entretanto, eclodiu uma rebelião quando um destacamento descontente das próprias tropas indianas da Companhia massacrou seus oficiais ingleses no quartel de Meerut, no norte da Índia. Buscando apoio para o que esperavam que se tornasse uma rebelião em toda a Índia, os amotinados galoparam então para Déli e se reuniram entusiasticamente em torno de um Bahadur II bastante complexo. Apesar de sua própria condição deplorável e da de seu império, para os rebeldes, esse frágil remanescente da casa de Babur ainda representava o soberano legítimo da Índia.

Durante os últimos anos do Império Mogol, abrangendo os dois incidentes mencionados acima, um imperador era especialmente reverenciado na memória pública – ‘Alamgir (r. 1658-1707), amplamente conhecido por seu nome principesco, Aurangzeb. Após a sua morte, grandes multidões reverentes acompanharam o cortejo fúnebre de seu caixão pro 120 quilômetros ao longo do planalto do Decão até Khuldabad, um cemitério no atual estado de Maharashtra. Ali, o corpo do imperador foi colocado, a seu próprio pedido, em um humilde túmulo a céu aberto, bem diferente dos imponentes monumentos construídos para glorificar a memória de seus predecessores dinásticos (com exceção de Babur). Aquele túmulo simples logo se tornou objeto de intensa devoção popular. Durante anos, multidões se aglomeraram em seu túmulo implorando a intercessão de ‘Alamgir junto ao mundo invisível, pois acreditava-se que seu carisma santo permanecia ligado ao seu túmulo, assim como em vida o havia acompanhado. Durante sua vida, o imperador ficou popularmente conhecido como ‘Alamgir Zinda-Pir ou ‘Alamgir, o Santo Vivo, alguém cujos poderes invisíveis eram mágicos.

O status de ‘Alamgir como uma espécie de monarca santo continuou a crescer após a sua morte em 1707. Já em 1709, Bhimsen Saksena, um ex-oficial do império, elogiou ‘Alamgir por seu caráter piedoso e sua capacidade de mobilizar poderes sobrenaturais em prol do império. Em 1730, outro nobre aposentado, Ishwar Das Nagar, creditou ‘Alamgir pela paz, segurança e justiça excepcionais que caracterizaram seu longo reinado. O relato de Nagar seguiu uma série de obras históricas que elogiavam o imperador como um administrador dedicado, até mesmo heroico, e seu reinado de meio século como uma “era de ouro” na eficiência governamental.

O surgimento de imagens retratando o imperador em atividades administrativas, militares ou de devoção religiosa contribuíram ainda mais para o culto de ‘Alamgir. Refletindo a extensão do culto a ‘Alamgir, muitas dessas pinturas posteriores a 1707 foram produzidas não na corte imperial, mas nas cortes hindus do norte da Índia, incluindo as dos antigos inimigos dos mogóis. Nenhum outro imperador mogol foi tão venerado, e por um período tão longo, quanto ‘Alamgir.

Com o tempo, os indianos começaram a ver o período mogol – especialmente o reinado de ‘Alamgir – de forma cada vez mais negativa. À medida que a Companhia das Índias Orientais conquistava o controle do Sul da Ásia ao final do século XVIII, os administradores britânicos, por serem estrangeiros e não poderes usar uma justificativa nativista para sustentar seu domínio, citavam a eficiência, a justiça, a paz e a estabilidade que haviam trazido para sua colônia indiana. Visto que os mogóis vieram imediatamente antes do advento do governo da Companhia, esses governantes foram necessariamente vistos como déspotas ineficientes e injustos em uma terra devastada pela guerra e instabilidade. O entendimento colonial dos muçulmanos e hindus como homogêneos e comunidades mutuamente antagônicas também facilitou o alinhamento das políticas coloniais com a antiga estratégia romana de dividir para conquistar. Mais precisamente, a visão colonial dos mogóis como “maometanos” estrangeiros que oprimiram uma população majoritariamente não-muçulmana reforçou a noção de um “eu” hindu, nativo, e um “outro” muçulmano, não-nativo – construções que dariam frutos amargos.

Apesar de surgir no seio do regime colonial, essas ideias foram gradualmente se disseminando no domínio público à medida que o século XIX avançada e os indianos se envolviam cada vez mais nas instituições educacionais e administrativas do Raj Britânico. Foi somente na década de 1880, com os primeiros sinais do sentimento nacionalista indiano, que esses tropos coloniais se tornaram amplamente politizados. À medida que a possibilidade de uma nação independente se enraizava, os nacionalistas indianos começaram a olhar para seu próprio passado em busca de modelos que pudessem inspirar e mobilizar as massas em apoio à sua causa. A escrita da história logo se tornaria um empreendimento político, degenerado, em última instância, em uma peça moralista em preto e branco que fazia clara distinção entre heróis e vilãos. Em resumo, o passado pré-colonial da Índia se tornou uma tela na qual muitos – embora não todos – nacionalistas hindus projetaram os tropos do “eu” hindu e do “outro” muçulmano.

Entre 1912 e 1924, um dos historiadores mais estimados da Índia, Jadunath Sarkar, publicou uma série de cinco volumes chamada “História de Aurangzeb”, o nome principesco de ‘Alamgir, que logo se tornaria o mais controverso – e mais odiado – governante da dinastia mogol. O estudo de Sarkar era tão detalhado, tão minuciosamente pesquisado e tão confiável que, no século seguinte à sua publicação, nenhum outro historiador sequer tentou realizar um levantamento completo sobre o reinado de ‘Alamgir.

É importante destacar que Sarkar escreveu tendo como pano de fundo a Primeira Guerra Mundial e um movimento nacionalista que estava atingindo seu auge naquele momento. Em 1905, Lord Curzon, o vice-rei da Índia, particionou a província natal de Sarkar, Bengala, pela metade. Uma medida cínica de dividir para conquistar que “premiou” os muçulmanos bengalis com sua própria província de maioria muçulmana no leste de Bengala. No ano seguinte, surgiu a Liga Muçulmana de Toda a Índia, um partido político comprometido com a defesa dos interesses dos muçulmanos da Índia. Enquanto isso, a partição de Bengala provocou um protesto furioso dos bengalis hindus, levando a um boicote generalizado em toda a Índia de produtos britânicos. No fim das contas, o governo cedeu às demandas hindus e, em 1911, anulou a partição, o que intensificou o medo e a ansiedade da minoria muçulmana da Índia.

Foi nesse ambiente político altamente tenso que Sarkar trabalhou em sua biografia de ‘Alamgir. A cada novo volume de seu estudo, o imperador era retratado com cores mais escuras, assim como os muçulmanos em geral. No fim, Sarkar culpou ‘Alamgir por ter destruído escolas e templos hindus, privando os hindus da “luz da sabedoria” e dos “consolos da religião” e por expor os hindus a “constante humilhação pública e deficiências políticas”. Escrevendo em meio à crescente agitação por uma nação indiana independente, Sarkar afirmou que “nenhuma fusão entre as duas classes [hindus e muçulmanos] era possível”, acrescentando que, embora um muçulmano pudesse sentir que estava na Índia, não poderia sentir-se parte da Índia e que “‘Alamgir desfez deliberadamente os primórdios de uma política nacional e racional que Akbar havia iniciado”.

Talvez mais do que qualquer outro fator, a avaliação negativa de Sarkar sobre ‘Alamgir tenha moldado a forma como milhões de pessoas pensam sobre o lugar desse imperador na história da Índia. Desde a publicação da “História de Aurangzeb”, historiadores profissionais geralmente evitam escrever sobre o imperador, como se ele fosse politicamente radioativo. Isso, por sua vez, abriu espaço na cultura popular indiana para que demagogos demonizassem o imperador mogol. Para milhões, hoje, ‘Alamgir é o principal vilão numa galeria de figuras controversas de governantes indo-muçulmanos pré-modernos, um fanático intolerante que supostamente arruinou a harmonia comunitária estabelecida por Akbar e que colocou a Índia num rumo precipitado que, muitos acreditam, culminou em 1947, na criação de um estado muçulmano separado da Índia, o Paquistão. Na vasta blogosfera atual, onde tudo é permitido, nas postagens das redes sociais e nos cinemas, ele foi reduzido a um recorte de papelão, uma caricatura grotesca que serve como saco de pancadas histórico. Um exemplo recente é o filme Chhaava, um blockbuster bollywoodiano que foi lançado em 14 de fevereiro em 2025, que, desde então, ascendeu rapidamente ao estrelato. Dentre os filmes que estavam apenas em sua sexta semana desde o lançamento, já no final de março, ele havia arrecadado a segunda maior bilheteria da história do cinema indiano.

Vagamente baseado num romance marata de mesmo título, Chhaava pretende contar a história de um momento crucial na campanha de 25 anos de ‘Alamgir para conquistar os estados invictos do planalto do Decão. Entre eles, estavam dois sultanatos veneráveis, Bijapur e Golkonda, e o recém-formado reino Marata, fundado em 1674 por um chefe intrépido e arqui-inimigo dos mogóis, Shivaji (r. 1674-80). O filme retrata o reinado do filho mais velho e sucessor de Shivaji, Sambhaji (r. 1680-89), suas lutas contra os exércitos mogóis e, finalmente, sua captura, tortura e execução por ordem de ‘Alamgir em 1689.

O filme não é nada sutil. Com sua violência incessante, sangue e carnificina gratuitas, trama exagerada e visão de mundo em preto e branco, o filme transforma o confronto entre Sambhaji e ‘Alamgir em um espetáculo caricato, como uma luta entre o Homem-Aranha e o Doutor Destino da Marvel. Enquanto Sambhaji consegue aniquilar um exército mogol inteiro sozinho, ‘Alamgir é a personificação do mal, uma ameaça constante. Os exércitos mogóis demonstram uma brutalidade extrema contra os civis: indianos inocentes são enforcados em árvores, mulheres são agredidas sexualmente, uma pastora é queimada viva, e assim por diante.

Na realidade, ninguém sabe se ‘Alamgir saqueou aldeias indianas ou sequer atacou civis (ao contrário dos próprios maratas, cujos ataques, somente em Bengala, causaram a morte de cerca de 400 mil civis na década de 1740). Por outro lado, fontes contemporâneas registraram a má gestão administrativa de Sambhaji, seu abandono por importantes oficiais maratas herdado do reino de seu pai, sua fraqueza pelo álcool e festas e como, em vez de resistir às forças mogóis enviadas para capturá-lo, se escondeu num buraco na casa de seu ministro, de onde foi arrastado por seus longos cabelos até ser levado para ‘Alamgir.

Precisão histórica não é o forte de Chhaava, nem é sua intenção. O mais importante são as suas consequência. Poucas semanas após seu lançamento, o filme provocou a ira pública contra ‘Alamgir e os mogóis. Em um dos cinemas onde o filme estava sendo exibido, um espectador vestido com trajes de guerreiro medieval entrou a cavalo; em outro, um espectador ficou tão frenético durante a longa cena da tortura de Sambhaji que saltou para o palco e começou a rasgar a tela.

Os políticos rapidamente entraram na disputa. No começo de março, um membro do partido que governa a Índia, o BJP, exigiu que o túmulo de ‘Alamgir fosse removido de Maharashtra, o coração do reino marata. Em 16 de março, outro membro do partido foi mais além, exigindo que o túmulo do imperador fosse demolido. No dia seguinte, um motim eclodiu em Nagpur, sede do Rashtriya Swayamsevak Sangh, organização paramilitar de extrema-direita e supremacista hindu da Índia. Tudo começou quando cerca de 100 ativistas, apoiadores da demolição do túmulo de ‘Alamgir, queimaram uma efígie do imperador. Em resposta, um grupo de muçulmanos da cidade realizaram um contraprotesto, culminando em violência, ferimentos, destruição de propriedade e várias prisões. A demanda fervorosa para demolir o local de descanso de ‘Alamgir, no entanto, é profundamente irônica. Em 1707, o filho de Sambhaji e eventual sucessor ao trono marata, Shahu, percorreu 120 quilômetros a pé para prestar suas piedosas homenagens ao túmulo de ‘Alamgir.

No fim, o furor sobre o túmulo de ‘Alamgir ilustra a tentação ao ajuste do passado histórico para que se conforme às prioridades políticas do presente. Demonstrando o apoio do governo indiano à versão da história apresentada por Chhaava, no final de março, o partido governista da Índia agendou uma exibição especial do filme no prédio do Parlamento em Nova Déli para o primeiro-ministro, ministros do gabinete e membros do parlamento.

Não é apenas o passado histórico que está sendo ajustado para ficar de acordo com a imaginação do presente. O território também está. Em 2015, o governo indiano renomeou a Avenida Aurangzeb de Nova Déli – nome dado quando os britânicos fundaram a cidade – em homenagem a um ex-presidente indiano. Oito anos depois, a cidade de Aurangabad, que o Príncipe Aurangzeb nomeou em sua própria homenagem enquanto governador do Decão em 1653, foi renomeada como Sambhaji Nagar, em homenagem ao homem que o imperador havia executado em 1689.

Essas medidas se alinham com a ampla agenda do governo de apagar dos mapas indianos nomes de lugares associados aos mogóis ou ao Islã, e substituí-los por nomes com conotações hindus, ou simplesmente sanscritizar nomes de lugares que contenham elementos lexicais árabes ou persas. Alguns exemplos são: Mustafabad para Saraswati Nagar (2016), Allahabad para Prayagraj (2018), Hoshangabad para Narmadapuram (2021), Ahmednagar para Ahilyanagar (2023) e Karimgunj para Sribhumi (2024). Muitas outras mudanças foram propostas, pelo menos 14 apenas no estado de Uttar Pradesh – mas nenhuma oficialmente autorizada.

Diz-se que o passado é um território estrangeiro. Em verdade, ninguém pode se aprofundar completamente na mentalidade das gerações passadas. Mas se a história não for cuidadosamente reconstruída através das evidências contemporâneas e do raciocínio lógico, e não for responsavelmente apresentada ao público, corremos o risco de viver para sempre com uma “visão mística de um passado imaginário”, com todos os seus perigos inerentes, como Remnick adverte;

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