De Lacy Evans O’Leary (1872-1957) foi um orientalista e historiador britânico, cujas contribuições para o estudo do Islã, embora por vezes vistas como datadas, incluíram uma perspectiva notavelmente distinta das narrativas prevalecentes no Ocidente durante sua época e que infelizmente prevalecem até nossos dias no senso comum. Sua obra buscou desmistificar certas concepções errôneas a respeito da história e cultura árabes e islâmicas, desafiando estereótipos arraigados sobre a natureza e a expansão da religião muçulmana. O’Leary é frequentemente lembrado por sua assertividade em questionar a ideia monolítica de uma conversão forçada como principal motor da expansão islâmica.
De Lacy O’Leary como parte de uma fotografia de grupo da equipe do University College, tirada em 1909, pouco antes de ser transformada na Universidade de Bristol.
Nascido em Bristol, Inglaterra, O’Leary teve uma carreira acadêmica focada nas línguas semíticas, história eclesiástica e estudos orientais, ensinando Aramaico, Siríaco e Grego antigo. Lecionou na Universidade de Bristol entre 1908-1957 e dedicou grande parte de sua vida à pesquisa e escrita. Entre suas obras notáveis estão “Arabic Thought and Its Place in History” e “How Greek Science Passed to the Arabs”, que exploram as interconexões intelectuais entre civilizações. Contudo, é em “Islam at the Crossroads” que ele aborda mais diretamente as percepções ocidentais sobre o Islã e sua história e a que iremos abordar no post de hoje.
Em “Islam at the Crossroads” (1923), De Lacy O’Leary faz uma declaração contundente que se tornou célebre ao abordar a expansão inicial do Islã. Ele afirma: A história deixa claro, no entanto, que a lenda dos muçulmanos fanáticos que varrem o mundo e forçam o Islã pela espada sobre as raças conquistadas é um dos mitos mais fantasticamente absurdos que os historiadores já repetiram. Esta frase encapsula sua rejeição direta da narrativa popular, porém simplista e historicamente imprecisa, que dominava o imaginário ocidental e que, como dito, infelizmente ainda prevalece no senso comum.
A fala de O’Leary sugere que a rápida expansão do Império Árabe-Muçulmano e a subsequente islamização das populações conquistadas foram processos muito mais complexos do que uma simples imposição militar da fé. Esta visão ecoa análises posteriores e bem mais recentes, como a de Richard W. Bulliet, que utilizou métodos quantitativos para modelar a conversão como um processo social gradual, impulsionado por uma complexa interação de fatores ao longo de séculos e não primariamente pela coerção.
Extensão política islâmica sob Muhammad (marrom), sob Califado Rashidun (laranja) e Omíada (amarelo).
Ao desafiar o mito da “conversão pela espada”, O’Leary não nega a ocorrência de conquistas militares, que foram fundamentais para a expansão territorial do califado e nem mesmo episódios de conversão forçada, que ele afirma que “não pertencem ao início da história do Islã nem à dos árabes” e “estão ligados a reavivamentos religiosos muçulmanos posteriores e de ortodoxia duvidosa” (p. 8). Ele argumenta que a conversão foi, em grande parte, um processo gradual, voluntário e multifacetado. Hugh Kennedy corrobora esta distinção temporal, afirmando que no caso do Oriente Médio a “conquista e assentamento levaram apenas uma década; a conversão da maioria levou trezentos anos” (Kennedy, 2007, p. 6).
A perspectiva de O’Leary encontra um forte eco e uma fundamentação empírica detalhada na obra paradigmática de Sir Thomas Walker Arnold (1864-1930), outro proeminente orientalista britânico. Arnold, em seu livro “The Preaching of Islam: A History of the Propagation of the Muslim Faith”, publicado originalmente em 1896 (décadas antes do livro de O’Leary), dedicou-se a investigar precisamente os mecanismos não coercitivos da expansão da fé islâmica.
Arnold meticulosamente documentou como o Islã se espalhou enquanto fé e não apenas como os Estados muçulmanos se expandiram (a famosa distinção Islam x Islamicate muito utilizada no século passado por alguns estudiosos), como a pregação de missionários sufis, as atividades de comerciantes muçulmanos, a atração exercida pela simplicidade e racionalidade da doutrina islâmica e a integração social e cultural das comunidades muçulmanas em diversas sociedades. Ele analisou a expansão do Islã em regiões tão diversas quanto a Índia, Sudeste Asiático, África e até mesmo na Europa Oriental, demonstrando a prevalência de métodos persuasivos sobre os coercitivos e os diferentes contextos que levaram os povos autóctones a se converterem para a religião islâmica.
Os missionários sufis foram fundamentais no processo de divulgação do Islã.
Arnold enfatiza a natureza voluntária de muitas conversões, contrariando a ideia de uma fé imposta. Ele observa, por exemplo, sobre os esforços missionários: “A disseminação dessa fé em uma porção tão vasta do globo se deve a várias causas, sociais, políticas e religiosas: mas, entre elas, um dos fatores mais poderosos na produção desse resultado estupendo tem sido o trabalho incessante dos missionários muçulmanos, que, tendo o próprio Profeta como seu grande exemplo, têm se dedicado à conversão dos descrentes.”. Esta observação, entre muitas outras, ilustra a complexidade e a variedade das abordagens missionárias e dos fatores que levaram à conversão, longe da imagem simplista da espada. (Arnold, 1913, p. 3). A Indonésia, que é o maior país islâmico atualmente, sequer foi alvo de incursões militares islâmicas, sendo convertida lenta e gradualmente com a presença de mercadores muçulmanos. Já no caso da ilha de Java testemunhamos a presença dos lendários Wali Songo, os nove santos muçulmanos responsáveis pela conversão da Ilha ao Islã também por meios pacíficos.
Muçulmanos indonésios se reúnem em frente à mesquita al-Akbar em Surabaya, após participarem da oração matinal em comemoração ao Eid al-Fitr, em 22 de abril de 2023.
Assim, a afirmação incisiva de De Lacy O’Leary alinha-se com as conclusões de Arnold e é ainda reforçada por estudos mais modernos. Richard W. Bulliet, por exemplo, argumenta que a conversão não foi uma imposição imediata, mas um processo social complexo. Hugh Kennedy também diferencia a rápida conquista militar da lenta islamização, como vimos anteriormente. Robert G. Hoyland, por sua vez, analisando as políticas iniciais, observa que a coerção religiosa não era a norma, sublinhando a complexidade que O’Leary e Arnold já haviam apontado. Não somente, mas Hoyland (2014, p. 60) afirma ainda que a conversão não era necessária ou imediata, citando o relato do monge João de Fenek, que escrevendo na década de 680 nos informa que entre os exércitos muçulmanos havia “não poucos cristãos, alguns pertencentes aos hereges e outros a nós”.
Em suma, a visão de De Lacy O’Leary, particularmente sua rejeição ao mito da conversão forçada pela espada, reflete uma corrente de pensamento dentro dos estudos orientais que buscava maior fidelidade à história e dar menos atenção para polêmicas. Sua análise, embora breve em comparação com a de Arnold, foi contundente e influente. Ela se harmoniza com as evidências detalhadas e a argumentação robusta de Thomas Walker Arnold, cujo trabalho pioneiro demonstrou extensivamente o papel crucial da pregação, do comércio, da atração intrínseca da fé e das dinâmicas sociais graduais na disseminação pacífica e gradual do Islã pelo mundo, reforçando a ideia de que a expansão da fé islâmica foi um fenômeno muito mais complexo e menos dependente da coerção do que o mito popular sugere. Coletivamente, estes acadêmicos (junto com Bulliet, Hoyland e Kennedy) pintam um quadro da expansão do Islã como um processo multifacetado, onde a fé se disseminou mais pela persuasão, interação social e atração do que pela coerção generalizada
Bibliografia
ARNOLD, Thomas Walker. The Preaching of Islam: A History of the Propagation of the Muslim Faith. London Constable & Co, 1913 (segunda edição da obra).
BULLIET, Richard. W. Conversion to Islam in the Medieval Period: An Essay in Quantitative History. Harvard University Press, 1979.
HOYLAND, Robert G. In God’s Path: The Arab Conquests and the Creation of an Islamic Empire. Oxford University Press, 2015.
KENNEDY, HughThe Great Arab Conquests: How the Spread of Islam Changed the World We Live In. Da Capo Press, 2007.
O’LEARY, De Lacy. Islam at the Crossroads. Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., Ltd., 1923. Para a produção desse post, foi consultada a edição de 2017 editada pela Editora Routledge.