Neste último fim de semana, o Rio de Janeiro foi palco de um episódio emblemático das tensões ideológicas e contradições que cercam o sionismo contemporâneo. Um atentado a bomba foi frustrado pela polícia antes do show da cantora Lady Gaga — artista conhecida por seu apoio tímido, porém significativo, ao Estado de Israel — e o responsável seria um militante sionista evangélico, conservador, que portava até uma bandeira de Israel como wallpaper em seu celular.
Segundo informações da polícia, o réu capturado na operação “Fake Monster” planejava “combater o satanismo” do show da diva pop explodindo uma bomba durante o show. A ação conjunta entre diversas instituições e tinha como alvo um grupo – do qual o sujeito fazia parte – que propagava discursos de ódio e planejava ataques, especialmente contra crianças, adolescentes e o público LGBTQ+.
Lady Gaga com a bandeira LGBTQIA+ durante show em Copacabana para 2,1 milhões de pessoas (Kevin Mazur/WireImage/Getty Images).
O episódio, que poderia ter resultado em uma tragédia, chama atenção não apenas pela bizarrice do fato, mas pela bizarrice de que ambos (a artista e o réu) detém um país em comum como exemplo de suas visões de mundo. De um lado, uma artista com forte apelo junto ao público LGBT+ e uma imagem atrelada a pautas progressistas; do outro, um militante religioso de extrema-direita, igualmente sionista. Ambos, paradoxalmente, orbitando a mesma ideologia — o sionismo — que, como toda boa serpente, consegue se camuflar e se esgueirar por diversos ambientes.
O Sionismo, nascido como um movimento secular de judeus europeus interessados no estabelecimento de um estado nacional judaico nos moldes românticos e iluministas da “Europa das Nações” pós-revoluções francesas (aqui inclui-se tanto a primeira, iniciada em 1789, quanto as ocorridas no século seguinte, notadamente em 1848) através de um processo obviamente colonial, como ocorria já em países como a Argélia e a Indonésia.
Assim, o Sionismo tem em si uma origem tão quimérica quanto sua atualidade hodierna: seu fundador, Theodor Herzl, era ateu, e em seu primórdio, sua caracterização do movimento consistia principalmente de nacionalistas seculares. Com o passar das décadas, o movimento passou a contar com alas ideológicas diferentes, que acabaram por se condensar em três alas principais: os trabalhistas, de esquerda, seculares (na maioria das vezes ateístas e socialistas), os revisionistas, de direita, por vezes seculares e por vezes religiosos (muitas vezes alinhados ao Fascismo) e, enfim, os religiosos, na imensa maioria dos casos, de um alinhamento político de direita.
Foi desse modo que, logo após o início da agressão sionista contra os palestinos e a declaração do estabelecimento do “Estado de Israel”, os sionistas – à época liderados pelo trabalhista ateu David Ben-Gurion – conseguiram o apoio tanto dos EUA e do Reino Unido quanto da União Soviética de Joseph Stalin, que lhes enviou milhões de dólares em ajuda financeira, maquinário pesado para os kibutzim (formados à semelhança dos kolkhozes soviéticos) e lhes facilitou a venda de armas usadas da Tchecoslováquia (muitas das quais eram espólio de guerra capturado da Alemanha Nazista).
Com o tempo o Ma’pai (partido sionista trabalhista, de inspiração socialista que flertava com a URSS) perdeu o protagonismo e, no final dos anos 60, deu lugar na dança das cadeiras do Knesset israelense aos partidos descendentes das alas revisionistas e religiosas do Sionismo, notadamente o Likud, formado a partir do refugo de criminosos de guerra pertencentes aos grupos terroristas revisionistas Irgun, Lehi e Palmach. O Likud viria, posteriormente, a quase que virtualmente monopolizar a política israelense.
Apesar desse teatro de máscaras e alternância no poder entre diferentes espectros políticos, todas essas alas e partidos sempre se uniram por um bem comum: o de fazer o mal. A condução da política israelense, seja do Ma’pai ou do Likud, sempre deixaram claro seu caráter colonialista e genocida desde seu início.
Todavia, “nem só de massacres viverá o colono” poderia dizer uma passagem da Bíblia Sionista (se houvesse uma): com o fim da Guerra Fria e a mudança dos paradigmas e valores sociais e religiosos do Ocidente, o discurso sionista para legitimar-se se reinventa.
De movimento europeu de colonização, levando a “civilização ao oriente bárbaro”, como já dizia o sionista revisionista Ze’ev Jabotinský, ele passou por sua adolescência socialista e, finalmente, passou a se apresentar como um projeto nativista, defensor de uma terra “ancestralmente judaica”, como irrefutavelmente evidenciado na Bíblia – mesmo que seus fundadores, em sua maioria, fossem ateus (como o próprio Theodor Herzl), e mesmo que sua gênese seja a expulsão da população nativa através da força bruta, incluindo massacres, como o infame ocorrido em Deir Yassin.
Assim, na contemporaneidade, Israel se vende para a direita evangélica conservadora — especialmente nos Estados Unidos e América Latina — por meio de uma narrativa profundamente teológica, escatológica e simbólica, distinta daquela usada para públicos liberais. Essa abordagem se ancora na interpretação bíblica literal do Antigo Testamento e em crenças milenaristas relacionadas ao Fim dos Tempos
Israel investe fortemente na aliança com pastores evangélicos influentes, como o norte-americano John Hagee (líder da Christians United for Israel), que promovem “Noites de Honra a Israel” em igrejas, arrecadam fundos e organizam viagens religiosas à Terra Santa. O governo israelense reconhece abertamente esse apoio como estratégico. Em 2018, por exemplo, quando os EUA transferiram sua embaixada para Jerusalém, líderes evangélicos estavam entre os convidados de honra na cerimônia.
Essa narrativa também constrói Israel como o “muro de contenção” contra o terrorismo islâmico (ironicamente, mas não supreendentemente, financiado pelos EUA muitas vezes) e o suposto avanço de uma “barbárie” anticristã. Ao pintar os palestinos (e árabes no geral) como inimigos da “Civilização Judaico-Cristã”, reforça-se um dualismo moral simples: Israel representa a civilização, o Ocidente e Deus; os palestinos representam o caos, o Oriente e o mal. Isso ressoa fortemente com a mentalidade de guerra espiritual da direita cristã.
Ao mesmo tempo, a Hasbará, a máquina de propaganda israelense, tenta fazer um jogo duplo e mau-caráter, pintando-se, também, como um paraíso liberal: um país repleto de paradas do orgulho LGBT, onde o uso recreativo de drogas é comum e público, onde o aborto é legal etc. – coisas que são, ironicamente, totalmente opostas aos valores da direita cristã do Ocidente.
Um exemplo dessa outra face da Entidade Sionista é a iniciativa “Brand Israel”, criada pelo governo israelense, buscou reformular a imagem do país como moderno, ocidental e amigável à comunidade LGBTQ+, dissociando-o de seus crimes diários e flagrante opressão de apartheid contra a população indígena palestina. Um dos primeiros marcos da campanha foi o uso da atriz Gal Gadot, em 2007, em um pôster militar voltado ao público jovem ocidental.
Com investimentos que saltaram de 14 para mais de 80 milhões de dólares, a campanha ganhou força nas redes sociais e em eventos internacionais, como a conferência LGBTQIAP+ de 2009 em Tel Aviv, ajudando a mascarar as violações contra os palestinos e sustentar uma narrativa que opõe uma Israel supostamente civilizada como contraponto a uma Palestina retrógrada que, por algum motivo misterioso, desejaria a morte de pessoas LGBT.
Essa plasticidade ideológica é o que permite que figuras tão díspares como Lady Gaga — ícone liberal, feminista e gay-friendly — e um militante evangélico radical, homofóbico, possam se ver ambos como “defensores de Israel”. Em 2014, durante um dos momentos mais brutais da ofensiva israelense sobre Gaza — que resultou na morte de mais de 500 crianças palestinas — Lady Gaga publicou declarações de apoio a Israel, em pleno curso do massacre. Sua fala foi amplamente divulgada pela imprensa israelense e utilizada como peça de propaganda.
Enquanto bombas caiam sobre hospitais, escolas e bairros inteiros, a srta. Gaga, que talvez estivesse um pouco gagá, escolhia a omissão sobre as vítimas e a afirmação do “direito de defesa” de um exército cujos membros guardam fotos de carnificinas e decapitações em suas carteiras como souvenires.
Isso foi durante a Operação Margem Protetora, quando mais de 2.000 palestinos foram mortos, incluindo pelo menos 500 crianças; a artista se pronunciou em apoio ao Estado de Israel. Em entrevista ao canal israelense Channel 2, ela declarou:
“Estou rezando por Israel. Estou rezando por paz.”
Seu silêncio sobre as vítimas civis palestinas e reafirmação do vitimismo doentio e patético da ocupação sionista e utilizado como ferramenta de propaganda por autoridades israelenses: então embaixador de Israel na ONU à época, Ron Prosor, chegou a compartilhar a fala de Gaga em meio aos bombardeios como exemplo de “apoio da comunidade internacional”.
Lady Gaga visitou Israel duas vezes, uma em 2009 e outra em 2014, demonstrando seu apoio por meio de apresentações e declarações públicas. Falando sobre sua apresentação em 13 de setembro de 2014, em Tel Aviv, ela disse:
“Tel Aviv foi magnífico. A visão do mundo sobre Israel simplesmente não corresponde à realidade. É um lugar lindo, as pessoas estão de bom humor.”
Durante o show, ela disse à plateia:
“Vocês são fortes, vocês são corajosos, vocês são confiantes, e eu amo vocês pra [censurado], Israel.”
Imaginem Édith Piaf indo até a Alemanha Nazista nos anos 40 e dizendo que “a opinião do mundo sobre a Alemanha não corresponde à realidade”, e dizendo à plateia, repleta de membros do Partido Nazista e da Hitlerjugend que “ama eles pra [censurado]”. Não parece algo muito legal, não é?
Esse tipo de analogia só não é mais certeira graças a esse jogo duplo que a Hasbará faz, e possibilita que o estado já condenado diversas vezes pela ONU por crimes contra a humanidade e de cometer apartheid se blinde a críticas, independente do espectro.
Esse apoio jamais foi cobrado de forma crítica pela grande mídia ocidental, que costuma tratar artistas como Gaga com reverência acrítica. No Brasil, seu show foi amplamente celebrado, e o atentado frustrado coberto com foco quase exclusivo na segurança nos alvos — mas quase nenhum veículo se referiu ao episódio como o que ele é: terrorismo de direita.
A bandeira do “Estado de Israel” no celular do terrorista cristão detido: um símbolo onde convergem os opostos.
O que o episódio do Rio revela é um ponto de ruptura interno: o sionismo, ao tentar ser tudo para todos — liberal para uns, fundamentalista para outros — começa a colapsar sob o peso de suas contradições, ao se tornar ao mesmo tempo um farol para liberais cosmopolitas e fanáticos religiosos, demonstrando sua fragilidade conceitual e sua flexibilidade serpentina.
A estratégia é clara: o sionismo não precisa de coerência, apenas de adesão, ainda que momentânea – o que é facilmente verificável na própria mentalidade sionista, que preza quase que exclusivamente pelo aqui, agora, não importando se suas narrativas são coesas, se seus argumentos são sólidos: tal qual o objetivo do comerciante é vender, vender, vender, o objetivo do ideólogo sionista é convencer, convencer, convencer; pouco importa se a lógica morrer no meio do caminho.
Assim, a mesma ideologia que mobiliza artistas progressistas, supostos defensores das minorias e da já saturada “contracultura”, também alimenta extremistas religiosos e ideológicos, reacionários sedentos que se opõe a estes mesmos artistas e, nesse caso, ambos se encontraram em rota de colisão.
A bomba não explodiu no show da diva pop, mas bombas ainda mais mortíferas que um mero dispositivo caseiro, continuam a detonar diariamente em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano, na Síria e no Iêmen – com a cumplicidade de artistas como Lady Gaga e o apoio e admiração de extremistas como aquele que tentou mandar pelos ares o seu show.
Post do think tank israelense “Stand with Us”.
Bibliografia:
- CAPUANO, Amanda (2025) Plano de ataque a bomba em show da Lady Gaga visava matar crianças e LGBTs.
- PINHEIRO, Mirelle (2025) Fanáticos queriam “purificar” show de Lady Gaga com bombas e morte de criança. Metrópoles.
- O mistério da bandeira de Israel com preso em ação policial que impediu atentado em show de Lady Gaga (2025). Diário do Centro do Mundo.
- AZEVEDO, Júlia. “PinkWashing: quando a propaganda LGBT deixa de ser colorida”. 2019. Acesso em: 2023.
- SHAI, Nachman. “Hearts and Minds: Israel and the Battle for Public Opinion”. SUNY Press. 2018.
- PAPPÉ, Ilan. “The naked face of Israel – Ilan Pappé on Rebranding Zionism”.
- BERMAN, Lazar (2014) Lady Gaga: World is wrong about Israel. The Times of Israel.
- Does Lady Gaga Support Israel? (2025) Shopisrael.com