Quando falamos da influência da figura e do legado do Profeta Muhammad no Ocidente, quase sempre as narrativas são monocórdias e dadas: um fanático religioso que expandiu sua fé através da espada, e ainda sendo eufemistas. Mesmo que a pesquisa a fontes originais islâmicas demonstre totalmente o contrário, ou pelo menos um afastamento histórico permite olhar as idiossincrasias sob os contextos da época, não se pode negar que é muito difícil superar essa imagem estereotipada . O ruído chega primeiro que a notícia. Porém o Islã faz parte das grandes tradições abraâmicas, o que significa, grosso modo, que adora o mesmo Deus dos cristãos e judeus. E em se tratando da sociedade Cristã, os muçulmanos creem em Jesus, o que os aproxima ainda mais. E não é que nunca existiram pontos de encontro, diversos historiadores e intelectuais tiveram a coragem de encarar a realidade do Islã e dos muçulmanos, isto é, suas fontes primárias e descobrir o óbvio: são religiões que em seu cerne carregam uma mensagem comum. Um deles foi o historiador Godfrey Higgins.
Godfrey Higgins (1772-1833) foi um antiquário, maçom e escritor inglês que se dedicou ao estudo comparativo das religiões e mitologias antigas, desenvolvendo teorias controversas sobre as origens comuns das tradições espirituais mundiais. Formado em direito e membro do parlamento por um breve período, Higgins abandonou a carreira política para se dedicar integralmente à pesquisa histórica e arqueológica, produzindo obras como “Apocalypsis” (1827) e “Anacalypsis” (1836, publicada postumamente), nas quais argumentava que todas as religiões derivavam de uma fonte primordial comum. Inicialmente formado em direito e eleito para o parlamento, Higgins gradualmente se afastou da carreira política tradicional para se dedicar a estudos antiquários e reformas sociais. Sua investigação sobre as religiões comparadas o levou a questionar as narrativas estabelecidas sobre o cristianismo e outras tradições religiosas, desenvolvendo uma abordagem cada vez mais sincrética e universalista. Embora o campo das religiões comparadas fosse recente dentro da historiografia ocidental até então e carecesse de alguns critérios mais objetivos, a pesquisa de Higgins, ainda assim apontou para possibilidade de diálogo e interseções interessantes. Muito embora, mais tarde isso descambasse para a ideia de que os cultos monoteístas fossem todos derivações de divindades solares.
Retrato em miniatura de Higgins.
A coragem epistêmica de Higgins em abordar fontes primárias, portanto, fez com que ele desenvolvesse uma leitura bastante positiva e honesta do Islã e do Profeta. “An Apology for the Life and Character of the Celebrated Prophet of Arabia, Called Mohamed, or The Illustrious”, publicada em 1829. Esta obra representou uma defesa corajosa do Profeta Muhammad em uma época de profundo preconceito anti-islâmico na sociedade inglesa. Higgins mostrou visões corajosas e simpáticas em relação ao Profeta Muhammad e ao Islã, argumentando contra as representações demonizadas prevalentes no Ocidente cristão de sua época. Uma das frases que representa esse olhar: “Os cristãos podem, para cegar a si mesmos, ridicularizar o quanto quiserem a ideia de que Maomé era uma pessoa prometida. Mas isso não muda o fato de que ele é considerado assim por 50 milhões de pessoas.”
Boa parte da argumentação levantada por Higgins se sustenta em um pilar: O Islã não é uma religião da Espada, nem seu Profeta um ser movido por ambições mundanas, tal qual era retratado desde a época das cruzadas. Para isso, Higgins recorreu a fontes muito simples, o Alcorão e os Hadith. Um dos aspectos mais levantados pelo historiador é a simplicidade e clareza do texto e da mensagem corânica. Enquanto na tradição cristã as coisas vão para o terreno da Ética subjetiva e da metafísica, no Islã, existe uma medida exata a partir da qual um muçulmano deve fazer caridade. Enquanto no cristianismo há múltiplos conceitos à respeito de Deus e da Pessoa de Jesus, a shahada não deixa dúvidas quanto ao que é ser muçulmano. E mesmo no que se refere à vida e obra de Jesus, o próprio autor vê na imagem que os muçulmanos têm de Jesus algo mais próximo daquilo que se professava no I século da Igreja do que naquilo que o cristianismo havia se transformado.
“Quando os numerosos, extensos e quase ininteligíveis credos da religião cristã são contemplados, um filósofo pode talvez ser tentado a suspirar de pesar pela simplicidade bela, clara, inteligível e sem adornos da profissão de fé maometana: Eu acredito em um Deus, e Maomé o apóstolo ou mensageiro de Deus, Em outra forma: Deus é Deus, e Maomé é seu profeta; ou, acredito em Deus e nas doutrinas a respeito dele ensinadas pelo pregador Mohamed. Mas a religião maometana é destituída de sacerdócio ou sacrifício; e o espírito independente do fanatismo olha com desprezo para os ministros e os escravos da superstição. Quão feliz teria sido para a Europa se a religião de Jesus, de maneira semelhante, tivesse proibido o uso de sacerdotes ou sacerdócios!”
Ao mesmo tempo, Higgins fazia uma contundente análise do mito de que o Islã só havia se expandido pelo caminho da espada:
“Não há nada tão comum quanto ouvir padres cristãos insultando a religião de Maomé por sua intolerância e intolerância. Que garantia e hipocrisia! Quem expulsou os mouriscos da Espanha porque eles não se converteram ao cristianismo? Quem foi que assassinou milhões de mexicanos e peruanos e os entregou como escravos porque não eram cristãos? Que contraste os maometanos exibiram na Grécia! Por muitos séculos, os cristãos tiveram permissão para viver na paixão pacífica de suas propriedades, sua religião, seus padres, bispos, patriarcas e igrejas.”
Higgins tampouco se omitiu de comparar as conquistas islâmicas e as conquistas cristãs do ponto de vista qualitativo:
“Em toda a história dos califas, não se pode encontrar nada tão infame quanto a inquisição, nem um único caso de um indivíduo queimado por sua opinião religiosa; nem, acredito eu, morto em tempos de paz por simplesmente não abraçar a religião do islamismo .Assim, este foi o impacto dos ensinamentos de Maomé aos muçulmanos: o Islã não é uma religião de força, pressão e compulsão, é uma fé ou crença de coração.”
Essa defesa do caráter ético do Islã não foi algo isolado à Higgins, e malgrado a maior parte dos textos ainda dispensasse ao oriente um aspecto de atraso e fanatismo, como Hegel e Marx, haviam outros intelectuais que liam o Islã com mais apreço, como foi o caso do poeta Goethe, autor de uma ode chamada Mahomet Gesang. Leon Tolstoi, autor de Anna Karenina e Guerra e Paz elogiava o caráter do Profeta. Michelet, importante historiador francês, não negava os avanços e as contribuições do Islã na civilização humana. E para além do século XIX, no qual esse texto se debruça e diante dos argumentos que Godfrey Higgins apresentou, diversos historiadores têm se debruçado sobre essa temática.
Dentre as maiores autoridades recentes podemos destacar o trabalho da britânica Karen Armstrong, autora não só de uma biografia do Profeta Muhammad, mas de diversos livros nos quais estuda profundamente os monoteísmos históricos:
“Longe de serem programados maniacamente para a guerra santa pela sua religião, os muçulmanos tinham pouco apetite pelo jihad e estavam preocupados com novas formas de espiritualidade. Em particular, alguns místicos sufis desenvolveram uma notável apreciação por outras tradições de fé.”
De igual modo a autora espanhola, María Rosa Menocal, concorda ao afirmar que: “Em princípio, todas as políticas islâmicas eram (e são) obrigadas por injunção corânica a não prejudicar os dhimmī, a tolerar os cristãos e judeus que viviam entre eles.” A poesia de Al-Andalus é recheada de poemas de amor entre cristãs e muçulmanos e vice-versa. Albert Hourani também destacava o espírito conciliatório dos califas de maneira não só a respeitar as leis corânicas, mas a de gerar estabilidade e prosperidade nos reinos. Um dos casos mais emblemáticos foi a fuga dos judeus expulsos pela inquisição para os reinos islâmicos, como o Império Otomano. O que não quer dizer que não existiram conflitos, mas apenas que em uma havia um preceito legal à tolerância. E que tendeu a ser seguido. Foi que Higgins e os demais historiadores perceberam.
Como se disse acima, a abordagem Higgiana tem lacunas, principalmente nos pressupostos teóricos, falta de análises quantitativas, e a falta de critérios claros oriundos das limitações da época. Essa limitação fez com que no final ele descambasse a um universalismo generalizante, que beirou o reducionismo. Isso, porém, não é o objeto deste texto. O principal trunfo de Higgins é olhar para o Islã e o Profeta a partir das fontes mais próximas que ele tinha – traduções do Alcorão e do Hadith. Isso lhe permitiu um olhar mais empático e menos midiatizado do objeto. E a grande questão sempre será essa: pode se enunciar qualquer discurso, mas a correspondência desse discurso com a realidade é o que vai determinar se ele é verdadeiro ou não. E no caso da História, esse debate passa pelas fontes.
Referências
ARMSTRONG, Karen. Campos de sangue: religião e a história da violência. Tradução de Alves Calado. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MENOCAL, Maria Rosa. O ornamento do mundo: como muçulmanos, judeus e cristãos criaram uma cultura de tolerância na Espanha medieval. Tradução de Hildegard Feist. Rio de Janeiro: Record, 2003.
ISLAMI GEMS. Islam is not a religion of force/compulsion: Historian Godfrey Higgins. Disponível em: https://islamigems.com/islam-is-not-a-religion-of-force-compulsion-historian-godfrey-higgins/.
MAQOLAT. Islam is not a religion of force and compulsion – Historian Godfrey Higgins. Disponível em: https://maqolat.com/index.php/i/article/view/72.