O flerte histórico dos Reis Ingleses com o Islã

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Nos últimos anos, teorias da conspiração e rumores online – apenas para variar – têm especulado sobre uma suposta conversão secreta do Rei Charles III ao Islã, frequentemente baseadas em seu conhecido interesse e respeito pela filosofia e arte islâmicas, possivelmente por influências do pensamento perenialista desde sempre muito forte na Inglaterra. Embora careçam de qualquer prova, essas alegações modernas são apenas o capítulo mais recente em uma longa e surpreendente história de mais de mil anos de intercâmbio, influência e fascínio mútuo entre a monarquia britânica e o mundo muçulmano. A verdade histórica é muito mais complexa e reveladora do que a ficção (ou a conspiração), demonstrando que a presença e a influência islâmicas na Inglaterra não são um fenômeno contemporâneo, mas sim uma corrente profunda e antiga que moldou o país de formas inesperadas, inclusive desde antes das colônias britânicas em terras islâmicas.

O rei Charles III, então príncipe, fazendo um discurso durante uma visita ao Complexo da Mesquita Mohammedi Park em Northolt, Inglaterra, em 19 de março de 1996. 

As primeiras evidências de uma interação significativa datam da Alta Idade Média. Um dos exemplos mais notáveis é a decisão do rei anglo-saxão Ofa da Mércia, no século VIII, de cunhar moedas de ouro que imitavam os dinares do Califado Abássida. Essas moedas incluíam inscrições pseudo-cúficas (imitações do idioma árabe, algo como um gibberish), uma estratégia para conferir-lhes maior valor e prestígio no comércio internacional, implicando falsamente uma origem na poderosa Bagdá do califa Al-Mansur. Na mesma época, crônicas muçulmanas de 754 registram o testemunho de um oficial sobre peregrinos bretões, como o santo Willibald, que viajavam por terras islâmicas, observando-os não como inimigos, mas como homens de fé.

Nesta moeda em particular, as palavras “OFFA REX”, ou Rei Offa em latim, estão cunhadas em um lado, enquanto o outro traz a inscrição “não há divindade senão Allah” em árabe.

A influência islâmica estendeu-se profundamente ao campo intelectual. A vasta erudição muçulmana em filosofia e ciência era amplamente conhecida e estudada na Inglaterra através de traduções latinas. Geoffrey Chaucer, nos seus Contos da Cantuária (1392), cita com reverência sábios muçulmanos como Avicena e Averróis. Essas mesmas fontes inspiraram o trabalho de pioneiros como o padre e cientista inglês Roger Bacon. No século XIII, Bacon, um dos primeiros defensores do método científico na Europa, teve seus estudos revolucionários sobre óptica diretamente influenciados pela monumental obra de Ibn al-Haytham (1021), conhecido no Ocidente como Alhazen.

Durante a era das Cruzadas, a relação entre a monarquia inglesa e os líderes muçulmanos atingiu níveis de complexidade surpreendentes. Enquanto Ricardo Coração de Leão combatia Saladino na Terra Santa, seu pai, o rei Henrique II, exasperado com o arcebispo Thomas Becket, chegou a ameaçar uma conversão ao Islã se o Vaticano não o depusesse. Décadas mais tarde, seu irmão, o rei João I, foi ainda mais longe: enviou uma missão diplomática ao califa almóada Muhammad al-Nasir, cujo império controlava partes da Península Ibérica e do Magrebe, propondo converter-se ao Islã e tornar-se um vassalo muçulmano em troca de ajuda militar para resolver os problemas de seu reino. Essa disposição pode ter sido inspirada pelo avô materno de ambos, Guilherme IX da Aquitânia, que mantinha uma amizade pessoal com Imad al-Dawla, o emir de Saragoça.

Ricardo Coração de Leão e Saladino na Batalha de Arsuf, por Gustave Doré

A influência islâmica pode ter penetrado até mesmo na fundação do sistema legal inglês. O historiador John Makdisi argumenta que a Common Law, consolidada por Henrique II, foi inspirada por princípios do direito islâmico medieval, possivelmente trazidos à Inglaterra pelos normandos de seu reino arabizado na Sicília. Outros acadêmicos, como Monica Gaudiosi e Gamal Moursi Badr, sugerem que conceitos jurídicos ingleses fundamentais, como o trust (fideicomisso) e a agency (agência), introduzidos na época das Cruzadas, foram adaptações das instituições islâmicas do Waqf  e da Hawala, encontradas no Oriente Médio. Essa influência pode ter se estendido à educação, com o pesquisador Paul Brand observando paralelos entre a fundação do Merton College, por Walter de Merton (que tinha laços com os Cavaleiros Templários), e as madrassas islâmicas.

A porosidade das fronteiras culturais e religiosas da época é personificada na história de Robert of St. Albans, um cavaleiro templário inglês do século XII. Em um ato que chocou a cristandade, Robert converteu-se ao Islã em 1185, abandonando sua ordem para se juntar à corte de Saladino. Lá, ele não apenas se tornou um conselheiro militar, mas também se casou com uma das sobrinhas do sultão, integrando-se completamente à elite muçulmana em um período de intenso conflito religioso.

Séculos mais tarde, a Inglaterra Tudor, após romper com a Europa Católica, buscou ativamente alianças com o mundo islâmico. A rainha Elizabeth I, cujo pai, Henrique VIII, apreciava usar trajes muçulmanos em festas, estabeleceu uma forte cooperação política e comercial com o sultão Murad III do Império Otomano. Uma aliança ainda mais ambiciosa foi forjada com o sultão Ahmad al-Mansur, do Império Saadiano de Marrocos. Juntos, planejaram uma invasão conjunta das possessões da União Ibérica nas Américas, unindo a marinha britânica e o exército marroquino contra o inimigo católico comum. É nesse contexto de intensa interação diplomática, comercial e militar que personagens muçulmanos, como Otelo, o Mouro, começam a surgir com destaque nas peças de Shakespeare.

Otelo e Desdêmona em Veneza, de Théodore Chassériau

A relação de proximidade e fascínio continuou na era vitoriana, personificada no relacionamento entre a Rainha Vitória e seu servo indiano, Abdul Karim. Trazido à corte para servir em seu Jubileu de Ouro, Karim rapidamente se tornou seu “Munshi” (professor), ensinando-lhe urdu e introduzindo-a à cultura e aos costumes indianos. A profunda afeição da rainha por ele, a quem ela considerava um amigo e confidente íntimo, causou escândalo na corte e na família real, que viam com desdém a ascensão de um indiano muçulmano a tal posição de influência. 

Rainha Vitória e Abdul Karim, 1897.

Na virada do século XX, o Império Britânico havia se tornado a maior “potência muçulmana” do mundo, não pela confissão religiosa de seu rei, mas pela quantidade de súditos muçulmanos. Em 1911, sua população muçulmana era de 94 milhões, superando significativamente os 58 milhões de cristãos. Na década de 1920, o império englobava cerca de metade da população muçulmana global, distribuída por 18 países de maioria islâmica. A lealdade desses súditos foi crucial. Mais de 400.000 soldados muçulmanos do Exército da Índia Britânica lutaram pela Grã-Bretanha na Primeira Guerra Mundial, com 62.060 mortos em combate. Na Segunda Guerra Mundial, meio milhão de soldados indianos, muitos deles muçulmanos, combateram os nazistas. Essa realidade foi reconhecida por David Lloyd George, primeiro-ministro do Reino Unido, que em 1922 declarou o papel central do Islã no império.

Este mapa foi extraído do livro “The Moslem World”, do missionário protestante americano Samuel Zwemer, Movimento de Estudantes Voluntários para Missões Estrangeiras, Editora da Igreja Metodista Unida, Sul, 1908.

Se hoje certos discursos tentam transformar o muçulmano em Londres como um “invasor alienígena” obstinado a destruir tudo o que é nativo do país, a história inglesa nos mostra uma realidade muito diferente e também mais complexa: há mais de mil anos os muçulmanos frequentam a corte dos reis ingleses, seja direta ou indiretamente, influenciando as decisões políticas e militares, prestando sua lealdade e até mesmo dando o seu sangue pela Coroa. 

Referências

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