Memoricídio: a destruição dos Livros Mouros e Códices Maias pela Inquisição

Facebook
Twitter
WhatsApp

No decorrer da história, não foram poucas as vezes em que bibliotecas inteiras foram queimadas. A título de exemplo, podemos mencionar casos memoráveis como a queima de livros ordenada pelo primeiro imperador chinês, Qin Shi Huang Di, bem como a famosa biblioteca de Alexandria [1] e posteriormente os livros do Califado Abássida durante a invasão mongol. Dentre esses e vários outros incidentes, há ainda a queima dos códices Maias e a destruição dos livros deixados pelos muçulmanos em Granada.

A conquista de Granada em 1492 representou para a Espanha da época o evento de maior magnitude, superando em importância contemporânea a própria viagem de Colombo, em especial para as “minorias” religiosas que ali viviam, em especial os muçulmanos. Este marco não foi apenas a conclusão de séculos de “Reconquista” – termo esse problemático na historiografia mais recente –, mas também a consolidação de uma Espanha unificada sob uma identidade cristã militante. A queda do último reduto muçulmano na Península Ibérica estabeleceu um clima de fervor religioso e intolerância que definiria as ações da coroa nos anos seguintes, tanto em seu próprio território quanto nos que viria a conquistar nas Américas. Este momento histórico, portanto, é a chave para compreender a lógica por trás da destruição cultural que se seguiria.

A rendição de Granada. O último rei de Granada, Abu Abdullah Muhammad XII, entrega Granada, o último reduto muçulmano na Andaluzia, ao rei católico Fernando II de Aragão.

O que se perdeu em Granada não foi apenas um reino, mas o epicentro de uma civilização. A cultura nacérida era um farol de conhecimento andaluz ainda restante, com avanços notáveis em medicina, matemática, filosofia e artes. Seus manuscritos eram tesouros estéticos, com encadernações de prata, ouro e pérolas e uma caligrafia primorosa. Obras de história, literatura, poesia e ciência compunham um acervo intelectual vastíssimo, testemunho de uma sociedade letrada e prolífica. A destruição deste legado significou, portanto, um ataque direto não apenas a uma fé, mas a todo um universo de sabedoria acumulada, assim como outras queimas de livros ao longo da história, vindo desde a idade antiga no extremo oriente até o Terceiro Reich.

O principal arquiteto desta tragédia cultural foi o Cardeal Francisco Jiménez de Cisneros. Após a conquista, os Reis Católicos haviam assinado as Capitulações de Granada, que garantiam liberdade religiosa e a preservação dos costumes aos muçulmanos. No entanto, em 1499, Cisneros recebeu a missão de “agilizar” a evangelização. Impaciente e radical, ele desconsiderou os acordos e impôs uma política de conversão forçada, vendo na destruição dos livros um passo simbólico e essencial para erradicar a “perversa y mala secta” do Islã e eliminar qualquer vestígio de sua influência espiritual e intelectual. Estamos falando aqui de pelo menos 4 ou 5 mil volumes em coleções particulares, segundo o relato de Juan de Vallejo, amigo e biógrafo do cardeal Cisneros.

Retrato do Cardeal Cisneros no Auditório San Bernardo da Universidade Complutense de Madrid.

O ato de destruição ocorreu na praça de Bib-Rambla, em Granada, entre 1499 e 1500, culminando com a ordem real oficial em 1501. Cerca de cinco mil volumes foram reunidos e lançados a uma imensa fogueira pública. A cena, descrita por contemporâneos, era a de um espetáculo de aniquilação cultural, onde o conhecimento acumulado em séculos era reduzido a cinzas. Foram queimados não apenas exemplares do Alcorão, mas toda a produção intelectual relacionada à “secta mahometana”, incluindo obras de história, poesia e ciência, num esforço deliberado para apagar a memória de um povo.

Esta mentalidade de intolerância e o ímpeto de apagamento cultural não se limitaram à Península Ibérica; foram exportados para as Américas como um componente central do projeto colonial espanhol. A Conquista foi, em essência, uma continuação da “Reconquista” em um novo território, movida pela mesma lógica de dominação militar e imposição religiosa. A Inquisição e suas práticas, como os Autos de Fé e a tortura, foram transplantadas para o Novo Mundo como ferramentas para subjugar as populações nativas e erradicar suas “idolatrias”, vistas como manifestações demoníacas que precisavam ser extirpadas pela força (BRIGNOLE, 2021).

Em Yucatán, esta política encontrou seu mais infame executor na figura do frade franciscano Diego de Landa. Assim como Cisneros em Granada, Landa via a cultura local como uma ameaça diabólica. Ele se convenceu da existência de uma rede clandestina de “apóstatas” maias que praticavam sua religião em segredo. Para ele, os códices maias — livros feitos de casca de árvore que continham o registro de sua história, astronomia, rituais e conhecimento — eram repositórios de superstições e “falsedades del demonio”, tornando-se o alvo principal de sua fúria purificadora.

O ápice da destruição ocorreu na noite de 12 de julho de 1562, durante o Auto de Fé de Maní. Neste evento, Diego de Landa ordenou uma imensa fogueira onde foram lançados não apenas inúmeros objetos sagrados e “ídolos”, mas também dezenas de códices maias. A perda foi irreparável; de centenas ou talvez milhares de livros que existiam, apenas quatro sobreviveram até os dias de hoje.

Em seu próprio relato, a Relación de las cosas de Yucatán, Diego de Landa justifica suas ações com uma clareza assustadora, revelando a mentalidade que o guiava. Para ele, os livros e os símbolos religiosos dos maias não continham nada que não fosse superstição e obra do demônio. Portanto, sua destruição era não apenas justificada, mas necessária para a salvação das almas indígenas. Esta confissão é o testemunho mais direto da intolerância religiosa que motivou um dos maiores atos de genocídio cultural da história.

Mural de Diego Rivera mostrando a História do México: Detalhe mostrando a queima de literatura maia pela igreja católica. Palácio Nacional da Cidade do México.

A conexão entre a queima de Granada e a de Maní é direta, não foi um mero acaso ou um acidente no percurso da história. É altamente provável que a ação de Cisneros tenha servido de inspiração para Diego de Landa. Ambos eram franciscanos, imbuídos do mesmo zelo missionário e da mesma convicção de que a conversão justificava a destruição do pensamento outrora dominante. Landa, tendo iniciado sua carreira eclesiástica em Toledo, no mesmo ambiente que Cisneros, possivelmente teria visto na queima dos livros muçulmanos um precedente heroico e um modelo a ser seguido para erradicar a idolatria maia, aplicando o mesmo método radical em um novo continente (EISENBERG, 2013).

É forçoso dizer que tanto a queima dos manuscritos em Granada quanto a dos códices em Maní nasceram do mesmo contexto histórico: um império em expansão que via na uniformidade religiosa a base de seu poder. Foram atos deliberados de “memoricídio”, destinados a apagar a história, a ciência e a espiritualidade dos povos conquistados para facilitar sua subjugação. Embora separados por meio século e um vasto oceano, esses eventos representam a mesma trágica política de aniquilação cultural, cujas consequências são sentidas até hoje.

Notas

[1] É curioso que até hoje existem argumentos que insistem que foram os muçulmanos que destruíram a biblioteca de Alexandria, mais especificamente na figura do califa Omar, porém não passa de um mito histórico.

Referências 

ÁLVAREZ, Jorge. Los Reyes Católicos ordenan quemar todos los libros musulmanes (1501). La Brújula Verde. Disponível em: <https://www.mexicodesconocido.com.mx/el-fraile-que-quemo-los-ultimos-codices-mayas.html>. Acesso em: 15 ago. 2025.

BRIGNOLE, Alejo. La destrucción hispánica de los Códices Mayas en 1562. Disponível em: <https://www.correodelalba.org/2021/10/13/la-destruccion-hispanica-de-los-codices-mayas-en-1562/>. Acesso em: 15 ago. 2025.

CHUCHIAK IV, John F. El regreso de los autos de fe: Fray Diego de Landa y la extirpación de idolatrías en Yucatán, 1573-1579. Península, Mérida, v. 1, n. 0, 2005. Disponível em: <https://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-57662005000100002>. Acesso em: 15 ago. 2025.

EISENBERG, Daniel. “Cisneros y la Quema de los Manuscritos Granadinos”. Journal of Hispanic Philology, v. 16, p. 107-124, 1992. Disponível em: <https://ballandalus.wordpress.com/2013/07/01/cisneros-y-la-quema-de-los-manuscritos-granadinos-by-daniel-eisenberg/>. Acesso em: 15 ago. 2025.

HUERTA, Josué. Fray Diego de Landa: el hombre que quemó los últimos códices mayas. México Desconocido. Disponível em: <https://www.mexicodesconocido.com.mx/el-fraile-que-quemo-los-ultimos-codices-mayas.html>. Acesso em: 15 ago. 2025.

ÚLTIMOS ARTIGOS PUBLICADOS