Israel já controla tudo: o mito da Solução de Dois Estados

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Desde muito antes do 7 de outubro e da escalada da violência na Faixa de Gaza pela IDF, a solução dos “dois Estados” vem sendo por vezes proposta novamente como uma alternativa viável para a consolidação da paz entre Israel e Palestina. Apesar de muitos de seus proponentes serem, de fato, bem intencionados e preocupados com a violência na região, essa proposta costuma ignorar um ponto muito importante: o território já se encontra sob o domínio de um único Estado, ou seja, Israel.

Este Estado único opera sob um regime de soberania exclusiva judaica (“israelenses” não-judeus são excluídos pela lei do Estado-nação de 2018) que se estende por todo o território, controlando a vida dos palestinos em seus aspectos mais fundamentais, ao mesmo tempo em que lhes nega os direitos e benefícios inerentes à cidadania. A política que se desenrola diariamente não é a negociação para a criação de um novo estado, mas sim a administração contínua e o reforço deste sistema absurdamente desigual, onde palestinos possuem todos os aspectos de suas vidas controlados pelo estado israelense – desde documentação até racionamento de recursos essenciais –, como se fossem cidadãos daquele país, enquanto os direitos mais básicos lhes são negados. Por isso mesmo que o próprio Desmond Tutu, que combateu o Apartheid, descreveu Israel como pior que a África do Sul.

A narrativa internacional, especialmente entre os formuladores de políticas no Ocidente, continua a promover a “solução de dois estados” como o caminho para a paz. Contudo, essa ideia está cada vez mais divorciada da realidade. A expansão contínua dos assentamentos ilegais, a fragmentação do território palestino e o controle absoluto exercido por Israel em todas as esferas demonstram que o paradigma da partição é uma fantasia. A verdadeira situação no local é a de uma coexistência forçada sob uma única estrutura de governança, na qual Israel detém o poder supremo e os palestinos são tratados como cidadãos de terceira-classe, na melhor das hipóteses.

Map of the Israeli-occupied West Bank showing the approximate locations of 22 new settlements announced by Israeli ministers (29 May 2025)

Em amarelo: área palestina urbanizada
Em roxo: assentamentos israelenses existentes
Ícones de casa: novos assentamentos israelenses
Mapa da BBC, informações de Peace Now, maio de 2025

O controle israelense manifesta-se primeiramente na gestão dos recursos mais essenciais. Os palestinos na Cisjordânia são forçados a comprar água da empresa nacional de água de Israel, a Mekorot, que se apropria de mais de 80% das fontes hídricas da região (os de Gaza, nem isso). Isso resulta em uma disparidade gritante, onde assentamentos israelenses vizinhos desfrutam de água ilimitada para piscinas e gramados, enquanto vilarejos palestinos enfrentam racionamentos severos para suprir suas necessidades básicas como higiene, alimentação etc. Da mesma forma, o acesso a combustíveis e energia é mediado por Israel, que impede os palestinos de explorarem suas próprias reservas de gás natural na costa de Gaza, perpetuando uma dependência energética que serve como ferramenta de controle político e econômico, com “apagões punitivos” usados como arma. Para recorrermos a um exemplo absurdo, mas que ilustra bem a situação: é como se o Brasil impedisse qualquer um de seus vizinhos sul-americanos, digamos o Uruguai, de explorarem seus próprios recursos naturais, se tornando na prática mais um estado brasileiro ao invés de um Estado soberano. É o que ocorre em Gaza, visto que simplesmente não há soberania dos palestinos sobre seu próprio território.

Parched: Israel's policy of water deprivation in the West Bank | B'Tselem

36% dos palestinos de na Cisjordânia têm água corrente todos os dias. Em Israel e nos assentamentos, o número é de quase 100%. B’tselem, 2023.

Indo além, economicamente a ausência de uma moeda palestina soberana e o uso obrigatório do shekel israelense colocam a política monetária firmemente nas mãos de Israel, expondo a economia palestina a choques e políticas sobre as quais não se tem controle. Além disso, todo o comércio, tanto de importação quanto de exportação, é canalizado através do sistema alfandegário israelense. Isso concede às autoridades israelenses o poder de vetar a entrada de qualquer produto, desde livros e equipamentos médicos até matérias-primas para a indústria, efetivamente estrangulando o desenvolvimento econômico palestino e mantendo-o em um estado de subordinação.

Desde 1967, Israel controla o registro populacional palestino, tendo autoridade exclusiva sobre a emissão de carteiras de identidade e passaportes. Este controle sobre o status legal dos palestinos é uma ferramenta de engenharia demográfica. Ele determina onde uma pessoa pode viver, com quem pode se casar e se pode viajar, chegando a separar famílias. Sem o registro no sistema israelense, um indivíduo palestino é legalmente inexistente, provando que a própria existência civil é uma concessão do poder ocupante.

Dando continuidade, a liberdade de ir e vir, um direito humano fundamental, é severamente restringida. O território palestino é pulverizado por uma rede de postos de controle (checkpoints) fixos e móveis, barreiras de concreto, estradas exclusivas para colonos (literalmente um apartheid, conforme visto na África do Sul no século passado e nos EUA durante o período Jim Crow) e portões que sufocam a vida cotidiana e a economia. Qualquer viagem para fora da Palestina, seja para a vizinha Jordânia ou para outro país, requer permissão israelense. Na prática, não há entrada ou saída do território que não passe por uma fronteira controlada por Israel, consolidando a imagem de uma única entidade soberana que gere todas as fronteiras externas. Vimos agora essa chocante realidade no caso dos ativistas do Flotilla que tentaram levar recursos para Gaza: interceptados e sequestrados por Israel, já que é esse o Estado que controla a entrada e saída de todos os suprimentos. Imaginem, por exemplo, que tudo o que entra e sai do Paraguai precisa de autorização brasileira, mesmo com o país fazendo fronteira com a Bolívia e Argentina. É precisamente esse o caso.

Mulheres palestinas cruzam o posto de controle de Qalandiya, nos arredores da cidade de Ramallah, na Cisjordânia, em 15 de abril de 2022.
O sistema legal que se aplica aos palestinos na Cisjordânia exemplifica a natureza segregatória deste Estado único. Os palestinos estão sujeitos à lei militar israelense, com uma taxa de condenação em tribunais militares que se aproxima de 100% (conforme Hareetz e B’tselem), enquanto os colonos judeus que vivem ilegalmente no mesmo território estão sob a jurisdição da lei civil israelense, desfrutando de plenos direitos. Essa dualidade jurídica, onde a etnia e a nacionalidade determinam os direitos de uma pessoa e o sistema judicial ao qual ela responde, é uma característica central do crime de apartheid, conforme definido pelo direito internacional e denunciado pela Humans Right Watch em artigo de 2021, dois anos antes do 7 de outubro, retratando uma realidade que já perdurava há décadas.

Essa teia de controle não é acidental, mas sim um sistema deliberado e interconectado, uma verdadeira matriz de controle, por assim dizer. Ela integra o poder militar com a burocracia civil, o planejamento urbano, a legislação e a vigilância tecnológica para gerenciar e controlar cada aspecto da vida palestina. O objetivo não é apenas a “segurança”, conforme alegam, mas a perpetuação do controle territorial e demográfico, tornando a vida dos palestinos tão difícil que a resistência se torna fútil e a fuga uma opção atraente. Acontece que os palestinos não irão fugir, por isso precisam ser dizimados ou expulsos, e é exatamente o que vemos todos os dias. Em artigo no B’tselem (2021), um trecho chama atenção:

Mais importante ainda, a distinção ofusca o fato de que toda a área entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão está organizada sob um único princípio: promover e consolidar a supremacia de um grupo – os judeus – sobre outro – os palestinos. Tudo isso leva à conclusão de que não se trata de dois regimes paralelos que simplesmente defendem o mesmo princípio. Há um regime que governa toda a área e as pessoas que nela vivem, com base em um único princípio organizacional.

Portanto, o objetivo final deste sistema de Estado único é a manutenção de uma supremacia demográfica e política judaica em todo o território. As políticas de negação de alvarás de construção para palestinos na Área C (60% da Cisjordânia), a demolição de casas e a contínua expansão de assentamentos – ilegais, diga-se de passagem – são todas peças de uma mesma estratégia: garantir o máximo de terra com o mínimo de palestinos. É um projeto para solidificar o controle judaico-israelense sobre todo o espaço, em detrimento das aspirações e direitos nacionais palestinos.

Uma menina palestina caminha até sua casa demolida em Khirbet al-Halawah, na zona militar 918, que inclui várias vilas, ao sul de Hebron, em 2 de fevereiro de 2016.

Para citarmos mais uma vez o artigo do B’tselem, existem quatro métodos principais que o regime israelense utiliza para promover a supremacia judaico-israelense na região: (i) imigração exclusiva para judeus; (ii) tomar as terras para os judeus enquanto aglomeram palestinos em enclaves; (iii) restrição à liberdade de locomoção dos palestinos; (iv) negar direitos políticos aos palestinos.

Dois desses métodos são implementados de forma semelhante em toda a área: restringir a migração de não-judeus e tomar terras palestinas para construir comunidades exclusivamente judaicas, enquanto os palestinos são relegados a pequenos enclaves. Os outros dois são implementados principalmente nos territórios ocupados por Israel: restrições draconianas à liberdade de ir e vir dos palestinos não-cidadãos e a negação de seus direitos políticos. O controle sobre esses aspectos da vida está inteiramente em mãos israelenses: em toda a área, Israel tem poder exclusivo sobre o registro populacional, a alocação de terras, as listas eleitorais e o direito de viajar, tanto entrar ou sair de qualquer parte do território.

A evidência esmagadora da vida cotidiana e da estrutura de governança demonstra a existência de um Estado único sob controle israelense. O debate sobre uma solução de dois estados serve, em grande medida, para obscurecer essa realidade, desviando a atenção da luta central que se desenrola no terreno: uma luta por igualdade e justiça dentro da estrutura de um único estado já existente. A questão premente não é como dividir a terra, mas sim como transformar o regime atual, de soberania exclusiva e desigual, em um que garanta direitos e dignidade para todos os seus habitantes. O mero reconhecimento de um Estado palestino no papel de nada adianta se na prática a realidade é de opressão e apartheid.

Conforme foi muito bem apontado por Salem Barahmeh no vídeo “Why Recognizing Palestine is Dangerous” no canal Uncivilized [1]: por qual motivo as potências ocidentais – ainda coniventes e apoiadores de Israel – defendem a solução de dois Estados? Porque esse gesto simbólico é muito mais fácil do que responsabilizar Israel pelo genocídio em curso e por toda a política de apartheid que existe há décadas na região. Não se trataria, portanto, de reconhecimento de um Estado soberano palestino, mas sim de verdadeira resignação do direito a uma existência digna, sendo trocada por um papel timbrado da ONU com a assinatura dos líderes de grandes potências Ocidentais.

Referências

B’TSELEM. A regime of Jewish supremacy from the Jordan River to the Mediterranean Sea: This is apartheid. 2021. Disponível em: https://www.btselem.org/publications/fulltext/202101_this_is_apartheid. Acesso em: 17 jun. 2025.

HUMAN RIGHTS WATCH. A Threshold Crossed: Israeli Authorities and the Crimes of Apartheid and Persecution. [S. l.]: Human Rights Watch, 2021. Disponível em: https://www.hrw.org/report/2021/04/27/threshold-crossed/israeli-authorities-and-crimes-apartheid-and-persecution. Acesso em: 17 jun. 2025.

AYYASH, M. Palestinians and Israelis already live together. What’s missing is equality and justice. The Century Foundation, 2024. Disponível em: <https://tcf.org/content/commentary/palestinians-and-israelis-already-live-together-whats-missing-is-equality-and-justice/>. Acesso em: 9 jun. 2025.

LEVINSON, C. Nearly 100% of all military court cases in West Bank end in conviction, haaretz learns. Haaretz, 2011. Disponível em: https://www.haaretz.com/2011-11-29/ty-article/nearly-100-of-all-military-court-cases-in-west-bank-end-in-conviction-haaretz-learns/0000017f-e7c4-da9b-a1ff-efef7ad70000. Acesso em: 9 jun. 2025.

B’TSELEM. New report: A Palestinian charged in a military court is as good as convicted. 2015. Disponível em: <https://www.btselem.org/press_releases/20150622_presumed_guilty>. Acesso em: 9 jun. 2025.

VISUALIZING PALESTINE. The One State Reality. Disponível em: https://visualizingpalestine.org/visual/the-one-state-reality/. Acesso em: 9 jun. 2025.

UNCIVILIZED. Why Recognizing Palestine Is Dangerous. YouTube, 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v8Suyxaj26s. Acesso em: 17 jun. 2025.

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