Ivan Aguéli, nascido John Gustaf Agelii na Suécia em 1869, foi uma figura singular cuja trajetória de vida influenciou muitas das correntes intelectuais e espirituais do seu tempo. Artista pós-impressionista, anarquista convicto, místico sufi e devoto de Ibn Arabi, Aguéli transitou entre os mundos da vanguarda artística parisiense e da espiritualidade esotérica do Cairo, uma mistura para muitos tido como improvável ou até impossível. Foi nesse caldeirão de experiências que ele se tornou um dos primeiros intelectuais ocidentais a analisar criticamente o preconceito contra o Islã, sendo pioneiro ao cunhar o termo “islamofobia” em um artigo de 1904. Sua análise não se limitou a identificar o fenômeno, mas a dissecá-lo, propondo uma taxonomia que revela as múltiplas raízes do ódio e do medo direcionados aos muçulmanos, uma contribuição intelectual que permanece relevante mais de um século depois, embora exista certa tentativa dentro da própria comunidade muçulmana – como veremos mais abaixo – de se distanciar desse termo, propondo outro no lugar.
A vida de Aguéli foi uma busca incessante por uma síntese entre arte, política e espiritualidade. Sua conversão ao Islã, adotando o nome Sheikh Abdal Hadi al-Aqili, não foi um abandono de suas convicções anteriores, mas uma consequência natural do que ele já acreditava e defendia quando pronunciou a shahada (confissão de fé) pela primeira vez. Como anarquista, ele via nas estruturas hierárquicas, tanto estatais quanto clericais, uma forma de opressão. Como sufi, buscava uma verdade universal que transcendia as fronteiras culturais e religiosas, algo característico do Islã e de outras religiões universalistas. Foi essa perspectiva única, de quem observava a Europa tanto de dentro quanto de fora, que lhe permitiu fundar em 1904, junto ao jornalista italiano Enrico Insabato, a revista bilíngue Il Convito/Al-Nadi no Cairo. O propósito do periódico era promover uma visão favorável do Islã na Itália e da Itália como uma amiga do Islã, servindo de ponte entre os dois mundos.
Aguéli (em pé, à esquerda) e Insabato (em pé, ao centro) com outros no Cairo, por volta de 1904.
Foi nas páginas de Il Convito que Aguéli publicou uma série de artigos intitulada “Os Inimigos do Islã”, onde utilizou pela primeira vez a palavra italiana islamofobia. Sua intenção era nomear e categorizar um preconceito que, segundo ele, não era monolítico, mas sim muito diverso em suas expressões. Ele argumentava que, para combater esse fenômeno, era crucial entender suas diferentes origens e manifestações. Ao cunhar o termo, Aguéli não apenas deu um nome a uma forma de intolerância, mas iniciou uma análise sociológica pioneira, distinguindo o ódio ao Islã e aos muçulmanos de meras críticas religiosas, e vinculando-o a correntes políticas, culturais e raciais específicas da Europa naquele momento (SEDGWICK, 2021).
Edição onde o termo é usado pela primeira vez.
O primeiro tipo de islamofobia identificado por Aguéli é a clerical ou religiosa. Esta forma de preconceito, segundo ele, emana principalmente de clérigos católicos e protestantes que, por dogma, consideram os muçulmanos e todos os não-cristãos como “amaldiçoados neste mundo e no próximo”. Aguéli ridiculariza essa visão como sendo alimentada por ignorância e superstições absurdas, citando o exemplo de parisienses letrados que acreditavam que a água se enchia de vermes quando um muçulmano se lavava. Essa islamofobia clerical se baseia na intolerância dogmática e na disseminação de lendas e estereótipos para manter a superioridade de sua própria fé, tratando o Islã como uma ameaça teológica inerente e perene.
Tomás de Aquino foi um dos principais disseminadores de lendas e estereótipos acerca do Islã no Ocidente: para ele, a religião se basearia em promessas carnais e não possuiria sustentação em milagres.
O segundo tipo é a islamofobia racial, que Aguéli associa diretamente ao que ele chama de “tipo alemão”. Esta manifestação do preconceito está intrinsecamente ligada à “teoria das raças inferiores”, uma ideologia pseudocientífica que postulava a superioridade da raça ariana, e dos alemães em particular. Neste enquadramento, o ódio aos muçulmanos não é primariamente religioso, mas sim racial. O Islã e seus seguidores são vistos como pertencentes a uma raça inferior, desprovida de direitos humanos, justificando assim a dominação e a sujeição. É uma forma de islamofobia que se disfarça de filosofia e lógica para estabelecer uma hierarquia racial que legitima a opressão. Nada mais é que pseudociência para justificar preconceito.
Propaganda do partido de extrema-direita alemão AfD diz: “Parem a islamização”. A propaganda islamofóbica costuma trazer imagens que evocam preconceitos internalizados e que geram sensação de estranheza a quem o vê.
O terceiro tipo de islamofobia é de natureza política e imperial, exemplificado pelo que Aguéli descreve como o “tipo russo”. Diferente das motivações dogmáticas ou raciais, esta forma é pragmática e expansionista. Consiste em uma estratégia de assimilação cultural forçada, onde se diz aos povos muçulmanos, como os turcos, para abandonarem o Alcorão, que “estraga a alma e o corpo”, e se tornarem russos. Em troca dessa aculturação, são-lhes prometidas vantagens materiais e aceitação. A islamofobia, aqui, é uma ferramenta do imperialismo, cujo objetivo não é necessariamente aniquilar o muçulmano, mas sim erradicar sua identidade islâmica para integrá-lo a um projeto político maior, despojando-o de sua cultura e religião. Segundo Mark Sedgwick (2021, p. 220):
É uma islamofobia bizantina e consiste simplesmente em dizer aos turcos: “Não acreditem no Alcorão”, é um livro que estraga a alma e o corpo. Sejam russos, isto é, sejam como nós; então vocês terão tudo o que desejam.
“Revelem-se! Sejam mulheres como as outras. Vocês não são bonitas?”, Argélia Francesa, cartaz anti-hijab de 1960.
A análise de Aguéli é notável por sua distinção crucial entre o Islã como sistema de crenças e os muçulmanos como indivíduos. Ele argumentava que os europeus frequentemente confundiam os dois, usando as falhas de alguns muçulmanos para condenar toda a religião. Ele também criticava os próprios “levantinos” — orientais europeizados — que, em sua visão, abandonavam sua herança cultural e se tornavam caricaturas, fornecendo aos islamofóbicos a munição de que precisavam. Críticas similares ainda são feitas hoje em dia, como se nada houvesse mudado.
Mais de um século depois, o intelectual muçulmano britânico, Timothy Winter (Abdal Hakim Murad) e talvez a maior referência de liderança islâmica no Ocidente, em sua obra Travelling Home, revisita o tema da islamofobia com uma nova lente, teológica e profundamente enraizada na tradição islâmica. Em vez de uma análise sociológica externa, Murad propõe um diagnóstico interno, cunhando o termo “Lahabismo” para descrever o ódio irracional e visceral contra o Islã. Ele argumenta que o termo “islamofobia” é uma “feia cunhagem árabe-grega” e sugere que a inimizade contra o Islã deve ser entendida através do arquétipo de Abu Lahab, o tio do Profeta Muhammad, um virulento opositor ao Islã e aos muçulmanos em seus anos iniciais.
O conceito de “Lahabismo” de Murad oferece uma profundidade psicológica e espiritual à compreensão da islamofobia, quase como uma “atualização” do termo cunhado por Aguéli há mais de 100 anos. Abu Lahab não odiava o Profeta por ser um estranho ou uma ameaça distante; ele o odiava precisamente por sua proximidade. Era seu sobrinho, cuja nova mensagem perturbava a ordem social e econômica de Meca. O ódio de Abu Lahab, portanto, não era medo (fobia), mas uma raiva visceral nascida da diferença e da recusa em aceitar uma nova verdade que emergia de seu próprio meio. Murad usa essa analogia para descrever o populismo nacionalista moderno na Europa, que vê os muçulmanos não como uma ameaça externa, mas como um elemento interno “diferente” que desafia sua identidade.
Ao definir o “Lahabismo” como uma manifestação de kibr (arrogância) e superbia, Murad eleva a análise a um patamar espiritual. O ódio ao Islã e aos muçulmanos deixa de ser apenas um preconceito social para se tornar um vício da alma, uma doença espiritual. É uma forma de idolatria do eu e da tribo, uma recusa em reconhecer a validade de outras formas de ser e crer. Esta perspectiva teológica é crucial porque implica que a raiz do problema não está apenas em estruturas políticas ou econômicas, mas no coração humano. O “Lahabismo” é, em sua essência, uma falha moral e uma cegueira espiritual.
No contexto europeu pós-cristão, onde a identidade se tornou frágil e secularizada, a presença muçulmana serve como um espelho indesejado. Os muçulmanos, com sua fé visível e sua insistência em uma moralidade tradicional, tornam-se o “outro” interno contra o qual uma identidade europeia em crise tenta se definir. Eles não são odiados por serem “racialmente” inferiores, mas por representarem uma alteridade normativa e espiritual que desafia o consenso secular.
Se o diagnóstico é teológico, a cura também deve ser. Murad argumenta que a resposta muçulmana ao “Lahabismo” não pode ser meramente reativa ou política. A estratégia mais eficaz e espiritualmente autêntica é a encarnação do princípio corânico de “repelir [o mal] com aquilo que é mais belo”(Alcorão 41:34). Isso implica uma resposta que transcende a lógica da confrontação, focando na demonstração de virtudes proféticas como a paciência (sabr), a clemência (hilm) e a excelência moral e estética (ihsān). O antídoto para a feiura do ódio é a beleza da fé bem vivida.
Abdal Hakim também propõe outros antídotos, como a maior participação dos muçulmanos na comunidade para que assim sejam vistos como membros integrantes dela e não como forasteiros. É comum, infelizmente, tanto no Brasil e em especial na Europa e Estados Unidos, que muçulmanos se “enclausurem” em suas comunidades e participem pouco ou nada do meio social mais amplo, sendo vistos com grande suspeita e se tornando uma presa fácil para ataques preconceituosos, em especial de partidos políticos direitistas. O muçulmano quando na rua ainda é visto como exótico, muito embora não seja mais uma minoria numericamente insignificante.
Se Aguéli, no início do século XX, forneceu a primeira definição secular do fenômeno, identificando suas raízes políticas, raciais e clericais no contexto do imperialismo e do nacionalismo europeu, Abdal Hakim Murad, já no século XXI, oferece um diagnóstico teológico e psicológico, o “Lahabismo”, que explora a natureza íntima e irracional do ódio, vendo-o não como medo do desconhecido, mas como raiva do familiar que se tornou diferente. É necessário reconhecermos que, ao menos em certos casos, não estamos diante de uma fobia do desconhecido, mas de um ódio ativo e arrogância deliberada, uma recusa consciente em aceitar a diversidade interna e uma falha espiritual em reconhecer a validade de um caminho vizinho. É uma inimizade que, como a de Abu Lahab, nasce da proximidade e é alimentada pela soberba.
Referências
INTROVIGNE, Massimo. Ivan Aguéli: The Painter Who Invented the Word “Islamophobia”. Bitter Winter. Disponível em:<https://bitterwinter.org/ivan-agueli-the-painter-who-invented-the-word-islamophobia/>. Acesso em: 25 ago. 2025.
MURAD, Abdal Hakim. Travelling Home: Essays on Islam in Europe. Cambridge: The Quilliam Press, 2020.
SEDGWICK, Mark (Ed.). Anarchist, Artist, Sufi: The Politics, Painting, and Esotericism of Ivan Aguéli. London: Bloomsbury Academic, 2021.