Irã e os Judeus: A história que o Ocidente finge esquecer

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Conforme esperado, líderes ocidentais manifestaram seu apoio e solidariedade a Israel no mais recente conflito entre o país com o Irã, muito embora Israel tenha iniciado o ataque e flagrantemente desrespeitado uma negociação em curso. A hipocrisia israelense – que iniciou os ataques e logo em seguida se fez de vítima – e o duplipensar ocidental não são novidades, mas foi interessante a resposta dada à Alemanha pelo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores iraniano, Esmaeil Baqaei, publicada no X.

Antes de citarmos a resposta, é necessário uma breve contextualização: é frequente a narrativa no Ocidente, em especial em determinados círculos mais à direita, de que os muçulmanos (e em especial o Irã, nesse contexto) odeiam os judeus e que caso Israel não existisse, os judeus seriam exterminados do Oriente Médio devido ao ódio virulento que os muçulmanos nutrem por eles. Além de um completo absurdo teológico incompatível com as crenças islâmicas mais basilares – visto que judeus fazem parte do Povo do Livro e que um governante muçulmano é obrigado até mesmo a protegê-los e deixá-los em paz em suas crenças (sendo esse o significado de “dhimmi”) –, é também uma negação da própria história. 

Apesar das narrativas reducionistas e por vezes até mesmo revisionistas de figuras da comunidade judaico-sionista a respeito da relação entre muçulmanos e judeus ao longo dos séculos, como vemos nas obras da controversa Bat Ye’or, as interações entre essas duas fés irmãs nem sempre foram de conflito; na verdade, a regra parece apontar para o exato oposto: convivência mútua pacífica na maior parte do tempo. Desnecessário dizer que com isso não falamos em “paraíso”, em especial aos moldes seculares e liberais, conforme o espantalho utilizado pelos detratores quando nos referimos a períodos de tolerância dentro da história islâmica, principalmente quando abordamos o domínio islâmico na Península Ibérica.

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Um judeu e um muçulmano jogando xadrez em Al-Andalus, século XIII. El Libro de los Juegos, encomendado por Afonso X de Castela, século XIII.

O ponto aqui é muito mais simples: a guerra que está se desenrolando enquanto escrevemos esse artigo não é motivada por um ódio religioso aos judeus (que sequer faz sentido, já que foi Israel quem iniciou os ataques). Não somente, mas o termo “xiita” sequer deve ser tomado como sinônimo de extremista, supostamente sendo essa a vertente radicalizada dentro do Islã e que “odeia” os judeus [1]. Esse confronto não é, portanto, uma guerra do Islã contra o Judaísmo.

Voltemos à resposta do porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Irã, Esmaeil Baqaei, à Alemanha. Ele relembrou um fato histórico frequentemente esquecido no Ocidente: o papel do Irã como refúgio para judeus que fugiam do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Esta afirmação, embora inserida em um contexto de disputa militar moderna, é melhor compreendida quando analisamos a longa história da comunidade judaica na Pérsia.

Tweet de Esmaeil Baqaei.

A presença judaica na Pérsia é uma das mais antigas diásporas do mundo, remontando ao exílio babilônico em 586 a.C. Ao longo de mais de 2.500 anos, os judeus vivenciaram diferentes realidades sob sucessivos impérios. Com a conquista árabe e a chegada do Islã já no século VII, a situação dos judeus, assim como a de outras minorias monoteístas, foi formalizada sob o estatuto de dhimmi. Embora este estatuto implicasse em direitos civis limitados dentro da estrutura hierárquica do Estado e o pagamento de um imposto especial (jizya), ele garantia a proteção do Estado, a liberdade de culto e a autonomia para gerir seus assuntos comunitários internos.

O conceito de dhimmi no mundo islâmico clássico, embora discriminatório pelos padrões contemporâneos, era fundamentalmente um pacto de proteção. O historiador Bernard Lewis argumenta que, ao contrário da cristandade, onde os judeus eram frequentemente a única minoria não-cristã e, portanto, um alvo fácil, no mundo islâmico eles eram uma entre várias comunidades (cristãos, zoroastristas, hindus, budistas etc.). Segundo Lewis (2015, p. 8):

Se, por tolerância, queremos dizer a ausência de discriminação, há uma resposta; se a ausência de perseguição, outra. A discriminação sempre estava lá, permanente e de fato necessária, inerente ao sistema e institucionalizada no direito e na prática. A perseguição, ou seja, repressão violenta e ativa, era rara e atípica. Judeus e cristãos sob o domínio muçulmano não eram normalmente chamados a sofrer martírio por sua fé. Eles não eram frequentemente obrigados a fazer a escolha, que confrontava muçulmanos e judeus na Espanha reconquistada, entre exílio, apostasia e morte.

Essa longa convivência resultou em uma profunda simbiose cultural, que Lewis chama de “tradição judaico-islâmica”. Judeus e muçulmanos compartilhavam não apenas espaços geográficos, mas também referências culturais, filosóficas e linguísticas. Intelectuais judeus escreveram extensivamente em árabe, engajaram-se com a filosofia islâmica e participaram ativamente da vida econômica e, por vezes, política dos impérios muçulmanos. Essa foi a “regra geral” da vida judaica nos territórios islâmicos ao longo do século. Voltemos então ao Irã, mas agora num contexto moderno.

Segundo Lior B. Sternfeld (2018), no século XX, durante a dinastia Pahlavi, os judeus iranianos experimentaram um período de notável integração e ascensão social, com judeus se destacando em profissões liberais, no comércio, na indústria e na academia. Os judeus não apenas se beneficiaram desse período, mas também se tornaram parte integrante do “projeto de modernização” iraniano, participando ativamente da vida pública e política do país.

Em 1979, ano da Revolução Islâmica, David Sitton nos conta que dois dos dezoito membros da Academia Real de Ciências, 80 dos 4.000 professores universitários e 600 dos 10.000 médicos no Irã eram judeus. Cerca de metade das crianças judias em idade escolar frequentavam escolas hebraicas ou recebiam aulas em hebraico.

O exemplo mais notável da ação iraniana em favor dos judeus é a figura de Abdol Hossein Sardari, muçulmano e diplomata do Irã em Paris durante a ocupação nazista. Em um ato de extraordinária coragem e engenhosidade, Sardari emitiu milhares de passaportes iranianos para salvar judeus, não apenas os de origem persa. Ele argumentou perante as autoridades alemãs que os judeus iranianos (a quem ele se referia como Jugutis) eram persas que praticavam a fé de Moisés, mas não pertenciam à “raça judaica” conforme a ideologia nazista, conseguindo assim isentá-los das leis antissemitas e da deportação para os campos de extermínio.

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Abdol Hossein Sardari (1914-1981)

Além da ação heroica de Sardari, o próprio Irã tornou-se um refúgio crucial durante a Segunda Guerra Mundial. Após a invasão anglo-soviética em 1941, o país se tornou uma rota para centenas de milhares de refugiados, incluindo um número significativo de judeus poloneses e de outras nacionalidades que escapavam tanto dos nazistas quanto dos soviéticos. Muitas dessas famílias judias foram acolhidas pela comunidade judaica iraniana local e pelo povo iraniano em geral, reforçando a imagem do Irã como um porto seguro para os judeus.

A Revolução Islâmica de 1979 marcou uma virada fundamental na política iraniana como um todo. A aliança do Xá com os Estados Unidos e Israel transformou o Estado judeu em um símbolo do imperialismo ocidental aos olhos dos revolucionários. Apesar da retórica hostil contra o sionismo, o próprio Aiatolá Khomeini e o novo regime fizeram uma distinção entre o judaísmo como religião e o sionismo como entidade política, embora possamos encontrar discursos do período que confundem as duas coisas, acidental ou propositadamente. A hostilidade, portanto, não era dirigida aos judeus iranianos como comunidade de fé, mas ao Estado de Israel como um adversário geopolítico. 

Segundo Moreen et al. (2010) na entrada sobre o Irã/Pérsia no Encyclopedia of Jews in the Islamic World Online, com a Revolução Islâmica de 1979: “A liberdade de culto judaica não foi substancialmente restrita; os feriados religiosos judeus são cobertos na mídia, e os funcionários do governo ocasionalmente participaram de cerimônias. Numerosas sinagogas permanecem abertas (principalmente em Teerã) e, dada a atmosfera religiosa no país e a necessidade da comunidade de se reorganizar, elas são bem atendidas.”

Judeus iranianos participam de um culto de Shabat na Sinagoga Pol-e-Choubi em Teerã em 23 de abril. O Irã tem a maior população judaica no Oriente Médio fora de Israel.

Apesar disso, muitos judeus emigraram após a Revolução. No entanto, uma comunidade substancial permaneceu e hoje o Irã abriga a maior população judaica do Oriente Médio fora de Israel. Esses judeus continuam a praticar sua fé, mantêm suas sinagogas e instituições comunitárias, e possuem representação garantida no parlamento iraniano.

Muito embora existam falas inflamadas a respeito dos judeus no contexto da Revolução e até mesmo uma confusão entre os termos “judaísmo” e “sionismo”, em especial devido às proximidades de Israel com os EUA e seus confrontos geopolíticos na região, não faltam figuras políticas e religiosas influentes no país que defendem o diálogo aberto com a comunidade judaica, ao exemplo de Mohammad Mojtahed Shabestari, considerado uma figura mais “secular” mas de grande importância.

O conflito contemporâneo com Israel é um fenômeno do século XX, nascido de alianças geopolíticas, da revolução e do anticolonialismo, e não a inevitável manifestação de um “ódio islâmico aos judeus” que, historicamente, se mostra mais como um mito do que como uma realidade. Embora esse mito já tenha sido instrumentalizado até mesmo pelo lado iraniano, há também vozes importantes que condenaram a sua instrumentalização em determinados momentos da história iraniana recente, alegando especialmente o passado de convivência entre judeus e muçulmanos no próprio Irã. 

Essas narrativas religiosas antagônicas, seja pelos apoiadores de Israel (sionistas, evangélicos e afins) ou pelos seus opositores indignados com os atos bárbaros praticados em Gaza e em outras regiões do Oriente Médio, no fim só criam uma barreira intransponível de ódio que vai contra o testemunho histórico dessas duas comunidades, radicalizando ainda mais uma série de conflitos que não possui data para acabar e que já dizimou milhares de vidas inocentes. Isso não quer dizer, obviamente, que não devemos ser vocais e exaurir a força de nossos pulmões na condenação dos atos israelenses e estadunidenses, mas sim que não devemos tratar como um “conflito religioso” de duas religiões que não conseguem conviver entre si, pois os fatos históricos apontam para o exato oposto disso.

Notas

[1] Esse adendo é importante, visto que a pecha de xiita como sinônimo de extremista, radical e afins, inclusive se tornando um jargão popular (ex: “não seja tão xiita!”), é algo que parece existir tão somente no Brasil. Conforme a mídia noticia que o Irã é um país xiita, no subconsciente de boa parte da população vem a ideia de que xiismo é sinônimo de extremismo e intolerância justamente por conta de expressões que utilizam o termo com essa conotação.

Referências

AMANAT, A. Iran: A Modern History. [s.l.] Yale University Press, 2021.

IZADI, A. Foreign Ministry spokesperson slams German officials’ remarks. Disponível em: <https://en.irna.ir/news/85863253/Foreign-Ministry-spokesperson-slams-German-officials-remarks>. Acesso em: 17 jun. 2025.

LEWIS, B. The Jews of Islam. Princeton, NJ, USA: Princeton University Press, 2015.

STERNFELD, L. B. Between Iran and Zion: Jewish histories of twentieth-century Iran. Palo Alto, CA, USA: Stanford University Press, 2018.

UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. Abdol Hossein Sardari (1895–1981). Disponível em: <https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/abdol-hossein-sardari-1895-1981>. Acesso em: 17 jun. 2025.

VERA B. MOREEN, DAVID YEROUSHALMI, DAVID MENASHRI. Iran/Persia. Encyclopedia of Jews in the Islamic World Online, 2010.

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