Texto de Noureldein Ghanem, publicado no TRT Global em 23 de julho de 2025. Traduzido por Vinícius Tanure.
“E abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem”
Para muitos evangélicos estadunidenses, este versículo presente em Gênesis 12:3 é mais que escritura; é um mandato de política externa.
Citado no Capitólio e em púlpitos nos estados dominados pelos republicanos nos Estados Unidos, o versículo é usado para justificar o apoio inabalável dos EUA a Israel, apesar da separação entre Igreja e Estado, e para rotular qualquer desvio desta linha como uma traição espiritual.
O versículo, no entanto, recentemente utilizado pelo senador republicano Ted Cruz para justificar seu apoio a Israel numa entrevista com Tucker Carlson, não menciona Israel.
Na verdade, nunca mencionou.
Então, de onde é que a conexão com Israel vem? E por que este versículo, destituído de contexto geopolítico, se tornou central para a visão de mundo da direita cristã estadunidense?
Uma bíblia de estudo de 1909 mudou tudo
A ideia de que Gênesis 12:3 se refere a Israel pode ser rastreada até uma única fonte: a Bíblia de Estudo Scofield, publicada em 1909. As notas de rodapé do livro, não seu texto, sugeriram que o versículo se referia a Israel.
Os estudiosos da Bíblia disseram, na época, que se tratava de um exagero, e permanece sendo uma interpretação equivocada até hoje.
“A Bíblia (de Estudo) Scofield, com suas notas de rodapé e comentários, foi escrita antes de o Estado de Israel ser fundado, ou seja, ela não se refere ao Estado de Israel”, diz Jonathan Kuttab, cofundador do grupo de direitos humanos palestino al-Haq para o TRT World.
“Mas reflete o pensamento dos cristãos sionistas de que o Fim dos Tempos serão precedidos por uma reunião dos judeus na Palestina e por uma grande batalha (o Armagedon) na qual todos os judeus serão mortos, exceto por uma pequena minoria que se converterá ao Cristianismo.”
Kuttab acrescenta: “O sionismo cristão é anterior ao sionismo judeu, com o último sendo um movimento secular sem significância religiosa”.
Ele explica que o versículo se refere à “semente de Abraão”, que não é o Israel moderno, nem mesmo os descendentes biológicos de Abraão, mas “Jesus Cristo, através do qual todas as nações do mundo serão abençoadas”.
Ele não é o único que pensa dessa maneira.
O reverendo Dr. Donald Wagner, um clérigo presbiteriano e analista sobre Oriente Médio, diz que Gênesis 12:3 se refere a uma aliança com Abraão – não a um estado político criado em 1948.
“Gênesis 12:3 diz que Deus firmou uma Aliança com Abraão e é uma suposição que Israel esteja incluído, mas esse não é o caso. Há quatro usos para Israel na Bíblia, e nenhum deles implica ou significa um estado moderno”, diz Wagner para a TRT World.
“Numa aliança bíblica, Deus é o iniciador e há condições. Elas estão descritas ao longo dos cinco primeiros livros da Lei, incluindo a manutenção dos mandamentos, o primeiro dos quais é a de não possuir outros deuses que não o único Deus, Javé ou Elohim.”
Ele acrescenta: “Em vários textos, os filhos de Abraão são alertados de que caso violem a aliança (não matar, não roubar, não cometer idolatria), a terra pode ser perdida. E eles não perdem a terra.”
Gary Burge, estudioso do Novo Testamento, destacou que apenas alguns evangélicos estadunidenses acreditam que o versículo se refira a Israel, mas disse: “há muitas coisas erradas com este argumento”.
“Esta é uma promessa para o contexto imediato de Abraão com o Egito – e seus descendentes supostamente criarão uma nação religiosa centrada no templo. O Israel moderno não é nada disso”, disse Burge ao TRT World.
“Limitado entendimento de identidade”
Mesmo que os evangélicos queiram aplicar este versículo para os descendentes de Abraão, essa lógica tem seus próprios problemas.
A Torá faz uma distinção entre as bênçãos de Ismael (o pai dos árabes) e seu irmão, Isaque.
Nela, as bênçãos de Abraão se transmite apenas através de Isaque e Jacó (profeta que mais tarde seria conhecido como Israel), mas os profetas do Novo e Velho Testamentos rejeitam isso.
“Como algumas pessoas acham que as promessas e bênçãos seguem linhagens étnicas, seria preciso ser da etnia judaica para se beneficiar delas”, diz Burge.
“É um argumento étnico. No entanto, os profetas do Velho Testamento e especialmente do Novo Testamento, rejeitam este entendimento limitado de identidade”, acrescenta.
Muitos judeus em Israel, hoje, são de ascendência asquenaze. Dentre eles está o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, filho de pais judeus seculares.
Quem é Scofield e o que sua referência implica?
Então, quem foi Cyrus Scofield, o homem que ajudou a fundir profecia bíblica com o sionismo moderno?
Ele foi, de acordo com muitos relatos, uma figura muito problemática. Ele foi um veterano de guerra que teve problemas com consumo excessivo de álcool e que abandonou sua esposa e filhos. Um advogado que renunciou em desgraça após alegações de suborno. Um homem que foi preso por forjar a assinatura de sua própria irmã.
Apesar disso, foi sua Bíblia de estudo, cheia de comentários não verificados, que ajudaram a estabelecer a conexão entre Israel e o Gênesis na consciência dos evangélicos estadunidenses.
Jesse Wheeler, diretor executivo associado da Friends of Sabeel–North America: A Christian Voice for Palestine, chama isso de “profundamente problemático”.
“A questão tem menos a ver com a tradução e mais com a inclusão das notas/comentários de Scofield nas páginas das escrituras e sua elevação quase ao ponto do próprio texto sagrado”, disse Wheeler ao TRT World.
Cyrus Scofield por volta de 1920.
O reverendo Wagner concorda.
“Esta bíblia de estudo inclui um tipo de teologia cristã fundamentalista chamada de dispensacionalismo pré-milenarista”, diz. “Ela implica que Deus favorece o povo judeu e um Israel moderno que será local dos últimos acontecimentos proféticos, como o retorno de Jesus e a última batalha entre o mal, o demônio, e um Israel militarizado.”
“Esta é uma invenção humana e não é consistente com a vida e ensinamentos dos profetas hebreus ou de Jesus. Na verdade, Jesus rejeita o uso da Bíblia ou de ideias religiosas para prever o futuro, sobretudo uma interpretação militante dos últimos dias.”
Burge diz: “Pouquíssimos evangélicos o utilizam nos EUA. Mas era um projeto dispensacionalista que acreditava na exclusividade étnica dos judeus no programa de Deus, e essas coisas foram inseridas em suas notas de rodapé.”
Para Kuttab, a motivação para a interpretação errada do versículo não é teológica — é política.
“Aqueles que excluem não apenas os árabes, mas também os cristãos do rótulo de ‘filhos de Abraão’ o fazem por razões políticas que não têm nada a ver com teologia ou religião”, diz ele.




