Análise de Nir Hasson, publicado no Haaretz. Tradução de Vinícius Tanure.
Às 16h30 do último sábado, o Ministério da Saúde de Gaza divulgou uma atualização sombria: 18 pessoas morreram de fome nas últimas 24 horas. Até ali, um total de 86 pessoas foram registradas como mortas por causa da fome durante a guerra que já dura 21 meses. Em outras palavras, mais de 20% de todas as mortes ligadas à fome em Gaza aconteceram num único dia.
Isso marcou o início de uma nova onda mortal de fome que não parece diminuir. Nos nove dias seguintes, outras 61 pessoas morreram de fome – 14 delas somente nas últimas 24 horas.
Para qualquer um que acompanha a situação de Gaza de perto, o aumento de mortes relacionadas à fome não foi uma surpresa. Algumas semanais depois de a guerra começar, especialistas internacionais, organizações de ajuda humanitária e governos estrangeiros começaram a emitir avisos cada vez mais urgentes a Israel sobre o risco de fome.
Israel, no entanto, adotou políticas que iam contra estes avisos. A fome que agora se desenrola em Gaza era prevista.
“Trabalhei com isso por quatro décadas, e não há, desde a Segunda Guerra Mundial, caso de fome tão cuidadosamente planejada e controlada quanto esta. Cada estágio foi previsível”, disse o especialista em fome mundial Alex de Waal.
Quando a guerra começou, em outubro de 2023, a saúde geral da população de Gaza era relativamente estável. Enquanto alguns enfrentavam insegurança alimentar por causa da pobreza e do bloqueio imposto por Israel, a maioria da população gozava de boa saúde. Gaza tinha agricultura, uma indústria pesqueira e milhões de galinhas, ovelhas e cabras. Milhares de caminhões vindos de Israel e do Egito entravam no enclave.
Hoje, de acordo com dados da ONU, restam apenas um único porcento das galinhas poedeiras de Gaza, além de 6% de seu gado. Os peixes capturados na costa de Gaza agora representam menos de 7% dos níveis anteriores à guerra. O golpe mais devastador veio através da interrupção de distribuição interna de alimentos em Gaza sob ordens do exército israelense.
Em dezembro de 2023, quando a guerra só tinha 100 dias, a ONU avisou que um quarto da população de Gaza já tinha dificuldade de ter acesso a comida e água potável. Em fevereiro de 2024, a UNICEF reportou que 90% das crianças de Gaza não tinham o que comer.
Palestinos fazem fila para uma refeição gratuita em Rafah, Faixa de Gaza, em dezembro de 2023. Crédito: Fatima Shbair / AP
À medida que as casas eram destruídas, as famílias eram obrigadas a viver em tendas sem eletricidade, gás de cozinha e refrigeração. O colapso dos sistemas de água, esgoto e saneamento levou à disseminação de doenças. Crianças e adultos começaram a adoecer devido a uma combinação de higiene precária e desnutrição. A UNICEF estimou que 70% das crianças estavam sofrendo com diarreia.
Avisos emitidos por agências internacionais continuaram a ser enviados durante a primavera e o verão. Em maio de 2024, a captura israelense de Rafah e a destruição de sua fronteira com o Egito acabou por cortar um importante corredor humanitário.
No mesmo mês, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) e o Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia abordaram a questão da fome em Gaza. O TPI citou a fome como primeira acusação em seus mandados de prisão contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o então ministro da Defesa, Yoav Gallant. A CIJ, respondendo a uma petição da África do Sul, ordenou que Israel permitisse a entrada irrestrita de comida e ajuda humanitária. Israel ignorou as decisões dos dois tribunais.
No discurso israelense, a ideia de fazer Gaza passar fome ser uma tática legítima de guerra ganhou espaço. Um grupo ativista chamado Tzav 9 bloqueou, repetidas vezes, a passagem de comboios humanitários na presença da polícia. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse em agosto de 2024 que “talvez seja moral fazer dois milhões de gazenses passar fome”. Um grupo de generais aposentados propôs um plano para usar a fome para forçar a fuga dos moradores do norte de Gaza. O que antes era impensável tornou-se política.
No começo de 2025, durante um cessar-fogo, a ajuda humanitária voltou a circular. Dezenas de clínicas começaram a medir a circunferência do braço de crianças – um indicador importante para avaliar a desnutrição aguda. Uma medida inferior a 12,5cm em uma criança com menos de três anos indica severos sinais de desnutrição. Em fevereiro, 2% das crianças com menos de cinco anos atendiam a este critério.
Mas em 2 de março, durante o cessar-fogo, o governo israelense mudou abruptamente de rumo. “O primeiro-ministro Netanyahu decidiu nesta manhã que toda a entrada de bens e suprimentos em Gaza será suspensa” anunciou o governo. O cerco durou 78 dias, durante os quais os suprimentos alimentares de Gaza ficaram totalmente esgotados.
Dois meses depois, a última padaria comunitária fechou. Duas semanas depois, a taxa de desnutrição aguda entre crianças tinha subido para 4%. Israel continuou a restringir ajuda humanitária. Ao fim de março, quase quatro semanas depois do estabelecimento do bloqueio, a Suprema Corte de Israel rejeitou uma petição de grupos defensores dos direitos humanos que exigia que a política fosse anulada.
No final de abril, o Programa Alimentar Mundial da ONU anunciou que seus armazéns em Gaza estavam vazios. No começo de maio, o governo israelense revelou um plano alternativo: contratar empresas privadas estadunidenses para distribuir pacotes de alimentos secos diretamente às famílias. O objetivo declarado era de alimentar os civis sem ajudar o Hamas, apesar de não haver evidências de que o Hamas tivesse desviado a ajuda alimentar da ONU. Uma investigação do New York Times revelou, mais tarde, que oficiais superiores das IDF admitiram que a narrativa de que o Hamas estava roubado ajuda humanitária foi inventada.
Mias uma vez, especialistas em ajuda humanitária emitiram alertas. Desta vez, sobre o plano de Israel de terceirizar a distribuição de alimentos para a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), financiada pelos EUA. Em 8 de maio, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (ENUCAH) enviou um memorando ao Conselho de Segurança da ONU destacando os riscos associados ao plano.
O memorando levantou preocupações de que o plano limitaria drasticamente o número de locais de distribuição de alimentos, tornando muito mais difícil para grandes segmentos da população acessar ajuda. Ele alertou que os gazenses deslocados seriam forçados a carregar pacotes de 20kg com comida por longas distâncias – um fardo irracional para mulheres, idosos e feridos. O memorando também alertava que soldados israelenses poderiam abrir fogo contra a multidão. Uma semana depois do alerta da ENUCAH, 4.7% das crianças de Gaza estavam sofrendo com desnutrição aguda.
Palestinos se reúnem em um ponto de distribuição de ajuda criado pela Fundação Humanitária de Gaza (GHF), uma organização privada. Crédito: AFP/EYAD BABA
Apesar dos avisos, Israel abriu os centros de distribuição operados pela GHF. Dezenas de milhares de gazenses famintos avançaram em direção aos centros. Sem medidas de controle de multidões, o exército respondeu atirando.
Centenas foram mortos a caminho ou próximos de postos de distribuição. A quantidade de alimentos entregue era inadequada e distribuída de forma desigual, dada principalmente a homens jovens que foram capazes de acessar os postos fisicamente. Todos os alertas se tornaram realidade. A fome se aprofundou.
Em meados de junho, 6% das crianças de Gaza estavam sofrendo de desnutrição aguda. Mesmo assim, o governo israelense continuou a obstruir a passagem de ajuda humanitária. A autoridade alfandegária israelense requisitou que as ONGs se registrassem antes de transferir mercadorias vindas da Jordânia ou da Cisjordânia.
Ajuda humanitária e suprimentos alimentares foram lançados de avião na Faixa de Gaza, no domingo. Crédito: Abdel Kareem Hana/AP
O ministro dos Assuntos da Diáspora, Amichai Chikli, que foi encarregado de emitir vistos a organizações humanitárias, adicionou camadas adicionais de obstáculos burocráticos. O ministro do Exterior, Gideon Sa’ar anunciou que ele revogaria o visto de Jonathan Whittall, o chefe das operações da ENUCAH em Gaza e um dos principais coordenadores de entregas das ajudas humanitárias.
O maior desafio não era simplesmente levar comida para Gaza, mas distribuir ela lá dentro. Toda movimentação interna requeria aprovação prévia das IDF – concedida apenas com parcimônia. Entre 11 e 17 de junho, a ONU requisitou 100 pedidos de movimentação. Apenas 23 foram concluídas. O resto foi negado, cancelado pela IDF ou retirado devido a problemas logísticos decorrentes do colapso social de Gaza.
As agências humanitárias estão cada vez mais incapazes de entregar comida aos centros populacionais. O desespero levou a um saque generalizado de comboios com ajuda humanitária. O exército continuou a emitir ordens de evacuação, forçando o encerramento de centros de nutrição infantil, seja por estarem localizados em zonas de evacuação, seja por terem ficado sem alimentos e medicamentos.
Em 9 de junho, 11 dias antes da atual onda de mortes por fome começar, uma menina chamada Salam chegou numa clínica da UNRWA. A circunferência de seu braço era de apenas 8.3cm, quase 4cm abaixo do limite da desnutrição. Ela morreu no mesmo dia.
Seis dias depois, a taxa de desnutrição aguda entre as crianças de Gaza chegou a 8.8%. E então, elas começaram a morrer.







