Recentemente, entrou no vocabulário popular dos jovens de algumas das chamadas ‘bolhas’ da internet a expressão em inglês cope, um termo depreciativo para dar desculpas ou negar a realidade para proteger o próprio ego ou o conforto mental. Originalmente significando algo como lidar, nesse emprego de internet, cope também pode ser um substantivo para uma ilusão ou autoengano usado para lidar com uma situação difícil, como uma ilusão autoimposta, um mecanismo de compensação. Há uma história usada para ilustrar tal sentido: uma raposa, após falhar miseravelmente em conseguir pegar um cacho de uvas, diz para si mesmo: “Mas eu nem queria essas uvas mesmo.”
É exatamente isso que vemos no artigo do sr. Marcos L. Süsskind. Após a magistral rasteira dada no criminoso de guerra procurado Benjamin Netanyahu pelo presidente dos EUA, Donald Trump, na forma do plano de paz recentemente aceito pelo Hamas – uma estrondosa derrota para os carniceiros de Tel Aviv, os asseclas e propagandistas da Hasbará estão tentando fazer a famosa “contenção de danos” e entrando em cope para passar a impressão de que tudo corre bem.
A forma como o sr. Süsskind escolhe fazer isso é particularmente curiosa: ele acusa os participantes da Flotilha Sumud, recentemente sequestrados em águas internacionais por Israel, de levarem “quantidades insignificantes de alimentos, nenhum medicamento, porém um número não desprezível de preservativos”, e engajarem-se no “famoso trinômio SDS – Sol, Droga, Sexo”; “quase todos no grupo brasileiro são membros do PSOL e do PT.”, acrescenta, como se houvesse alguma relação entre uma coisa e outra. Além disso, dá informações infundadas sobre o lançamento de celulares ao mar e tantas outras coisas.
As alegações de que as embarcações transportavam “quantidades insignificantes de alimentos” e “nenhum medicamento” carecem de qualquer comprovação documental ou jornalística. Todas as flotilhas humanitárias que se dirigem a Gaza operam com transparência, divulgando listas de carga e acompanhadas por organizações internacionais. A tentativa de retratar o grupo como parte de um “cruzeiro de verão” movido por hedonismo e autopromoção política é um expediente retórico que desvia o foco da questão central — o bloqueio humanitário imposto a Gaza e a repressão de ações solidárias, como a sofrida pela Sumud.
Além disso, o texto abusa de especulações, como a afirmação de que os ativistas teriam “atirado celulares ao mar”, sem apresentar fontes verificáveis ou explicações lógicas, e de distorções sobre a abertura da fronteira de Rafah, que segue sob severo controle militar israelense e egípcio. A matéria encerra-se com insinuações e chavões sobre “patrocinadores desconhecidos” e “mentiras contra Israel”.
Na realidade, não foram encontradas camisinhas algumas (ainda mais em “quantidade não desprezível”), e o autor baseia-se meramente em achismos e na tentativa desesperada de se ganhar alguma moral com o leitor através de acusações cômicas. Não há reportagens de veículos independentes, nem mesmo veículos israelenses oficiais, sobre falta disso ou daquilo, abundância de preservativos. Muito pelo contrário:
O site da Freedom Flotilla Coalition divulgou que 9 barcos foram apreendidos com mais de 15 toneladas de remédios, equipamentos respiratórios e suprimentos nutricionais, destinados a hospitais de Gaza. A Reuters reportou que uma ONG italiana declarou que 250 toneladas de ajuda — incluindo alimentos, suprimentos médicos e material educacional — foram bloqueadas por Israel antes de poderem ser enviados a Gaza e uma reportagem da Al Jazeera afirma que na interceptação da flotilha Sumud, estavam a bordo “importantes quantidades de carga humanitária, incluindo alimentos, suprimentos médicos e outros itens essenciais para a Gaza faminta”.
Sobre os celulares lançados ao mar, alguns membros podem ter feito isso como uma medida de segurança, para evitar roubo de valores de suas contas bancárias e o arqueamento de redes de espionagem criminosa por parte da inteligência israelense, que se utiliza de softwares avançados como o Pegasus, para espionagem. Pegasus é um spyware criado pela empresa israelense NSO Group capaz de se instalar secretamente em smartphones Android e iOS, sem que o usuário perceba. Ele permite espionagem completa: acesso a mensagens, localização, câmera, microfone, senhas, fotos etc. Múltiplos governos — como Índia (caso WhatsApp) e Espanha (CatalanGate) — têm usado o software para monitorar ilegalmente seus cidadãos, além de denúncias internas em Israel de uso policial e militar irregulares contra civis israelenses e palestinos.
Contudo, para além dos clichês, o que impressiona é a ênfase quase inédita do autor para com o suposto comportamento réprobo e degenerado dos integrantes. O estilo de escrita remete a algo muito pouco informativo, carente de ideias, e transmite algo mais emocional – quase como uma projeção. Para Lacan, o sujeito é estruturado pela falta e pelo desejo do Outro; logo, o que chamamos de “projeção” é, muitas vezes, a manifestação da relação do sujeito com o seu próprio desejo recalcado, mediado pelo olhar do Outro. Quando o sujeito acusa alguém de algo (“ele é degenerado”), ele fala de um significante que retorna do inconsciente — algo que ele próprio deseja ou teme, mas que só reconhece na forma invertida. Assim, o que Freud chamaria de projeção, Lacan vê como uma metáfora inconsciente que desloca o desejo próprio para o campo do Outro (no caso, da Flotilha e seus integrantes).
A isso, se soma a Narrativa de Schrödinger dos sionistas sobre a Flotilha: uma hora são “a flotilha da selfie”, querendo apenas atenção, na outra, são enviados do Hamas com potencial terrorista e bélico e, algumas linhas depois, tornam-se drogados hippies que acham que poucos quilômetros perto de Gaza é Woodstock, local para drogas, sexo e raves (isso te lembra algo?). Isso demonstra o desespero e a inconsistência das várias narrativas que os sionistas empregam. “O que colar, colou”.
Parece-nos, no entanto, que dificilmente algo irá colar; e o que sobra, afinal, ao propagandista Marcos Süsskind é deblaterar-se em poucas linhas emocionais, projetando seus próprios desejos reprimidos de SDS e esbórnia nas centenas de participantes da Flotilha, que, a despeito de serem seres humanos como qualquer outro – com necessidades físicas – cometeram o horrendo crime de procurar ajudar, na medida do possível, um povo faminto e massacrado. O que recebem em troca? O que cada um pode dar. No caso do sr. Süsskind: dezesseis linhas, desespero e várias frustrações em coro com várias narrativas – uma mais tragicômica que a outra.
Referências
FREEDOM FLOTILLA COALITION. All Freedom Flotilla Coalition and Thousand Madleens Volunteers Freed from Israel’s Unlawful Detention. Freedom Flotilla Coalition, 12 out. 2025. Disponível em: https://freedomflotilla.org/2025/10/12/fffc-tmtg-volunteers-freed/?
REUTERS. Pro-Gaza flotilla charity says Israel blocking aid to be sent via Jordan. Reuters, 9 out. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/world/middle-east/pro-gaza-flotilla-charity-says-israel-blocking-aid-be-sent-via-jordan-2025-10-09/?
AL JAZEERA. Israel intercepts last Gaza Sumud flotilla vessel: What we know so far. Al Jazeera, 1 out. 2025. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2025/10/1/israel-intercepts-gaza-sumud-flotilla-vessels-what-we-know-so-far?
AMNESTY INTERNATIONAL. Pegasus Project: Apple iPhones compromised by NSO spyware. 28 jul. 2021. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2021/07/pegasus-project-apple-iphones-compromised-by-nso-spyware/
BREWSTER, Thomas. Everything we know about NSO Group, the professional spies who hacked iPhones with a single text. Forbes, 25 ago. 2016. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/thomasbrewster/2016/08/25/everything-we-know-about-nso-group-the-professional-spies-who-hacked-iphones-with-a-single-text/
CITIZEN LAB. CatalanGate: Extensive mercenary spyware operation against Catalans using Pegasus & Candiru. 12 abr. 2022. Disponível em: https://citizenlab.ca/2022/04/catalangate-extensive-mercenary-spyware-operation-against-catalans-using-pegasus-candiru/.
THE INDIAN EXPRESS. WhatsApp-Pegasus ruling: US, India. Disponível em: https://indianexpress.com/article/business/whatsapp-pegasus-ruling-us-india-9737575/