Flávio Josefo, nascido Yosef ben Matityahu, foi uma figura complexa e fundamental para a compreensão da Judeia do primeiro século e das Guerras Judaico-Romanas. Como historiador e líder militar, sua vida e obra são fontes primárias para esse período turbulento. Sua origem em uma família sacerdotal de Jerusalém, com ascendência real hasmoneana pelo lado materno, conferiu-lhe um status inicial e uma perspectiva interna sobre os acontecimentos que viriam a definir sua vida e seus escritos.
Inicialmente, Josefo desempenhou um papel ativo na resistência judaica contra o Império Romano, atuando como general das forças judaicas na Galileia. No entanto, sua trajetória militar tomaria um giro de 180º com sua rendição ao exército romano para Vespasiano, na época comandante militar e posteriormente Imperador de Roma. Após a ascensão de Vespasiano ao trono imperial, Josefo foi libertado e adotou o nome de família do imperador, “Flavius”, como era costume na época entre os escravos libertos.
“Flávio Josefo”, John Sartain, 1880
A importância de Josefo reside primordialmente em seus escritos, que se tornaram pilares para o estudo da história judaica e do contexto do cristianismo primitivo, sendo muito utilizado hoje em dia nas pesquisas relacionadas aos Manuscritos do Mar Morto, por exemplo. Suas obras mais notáveis são “A Guerra Judaica” e “Antiguidades Judaicas”. Esses textos oferecem narrativas detalhadas de eventos cruciais, como a destruição do Segundo Templo em Jerusalém, e fornecem um panorama da história e dos costumes judaicos para um público greco-romano.
Os escritos de Josefo, juntamente com o Novo Testamento, estão entre as principais fontes para a história judaica do primeiro século. Ivan Esperança Rocha (2004) destaca: “Os escritos de Flávio Josefo constituem juntamente com os textos do Novo Testamento as principais fontes sobre a história judaica do primeiro século”. Rocha (2004) aponta ainda que a obra “A Guerra Judaica”, por exemplo, descreve o poder romano sobre os judeus de uma forma que ecoa a justificação de Políbio para a hegemonia romana sobre os gregos dois séculos antes, demonstrando sua tentativa de contextualizar os eventos para uma audiência mais ampla.
No que tange à sua concepção de “Palestina”, Josefo, influenciado pela literatura clássica e pela administração romana, utilizava o termo de forma consistente. Nur Masalha (2018), em “Palestine: A Four Thousand Year History”, aponta que tanto ele (Josefo) quanto Filo de Alexandria usavam o termo Palestina e não “Israel”. Essa utilização não era casual, mas refletia a terminologia geográfica corrente em seu tempo, especialmente entre autores helenizados.
A “Palestina” de Josefo não se limitava à Filístia costeira, mas abrangia um território mais vasto. Masalha (2018) esclarece que tanto Josefo quanto Filo entendiam e usavam o termo Palestina à “grande Palestina”, que se estendia do Líbano hodierno ao Egito e não apenas à Filístia, a região costeira da Palestina, ou à antiga “terra dos filisteus”, de Gaza a Tantur. Zachary J. Foster (2017, p. 1), em sua dissertação “The Invention of Palestine” [1], observa que, “nós nos identificamos com a Palestina, primeiro, porque ela tem um nome”, ressaltando a importância da nomeação para a identidade de um lugar, algo que Josefo praticava ao usar o termo.
Os escritos de Foster (2017) podem ser utilizados para complementar a visão de Mashalla (2018) a respeito das origens e usos do nome Palestina, argumentando que identidades como “palestino” não são modernas ou pré-modernas, nem datam da Antiguidade ou do antigo Oriente Próximo, mas que provavelmente existem há dezenas de milhares de anos, sugerindo uma longa evolução do conceito de identidade ligada ao local.
Josefo via-se inegavelmente como um habitante dessa Palestina, sua terra natal. Nascido em Jerusalém, que na época era parte da província romana da Judeia, sua identidade estava intrinsecamente ligada àquela terra. Mesmo após sua romanização, suas obras são dedicadas a narrar a história de seu povo e de sua terra.
Mapa da Província Romana da Judeia (6–41 d.C.)
Em seus relatos, Josefo não se furta a descrever as condições de sua terra natal sob diferentes governantes. Por exemplo, Rocha cita que “…o próprio Flávio Josefo diz que a Palestina, antes próspera, foi transformada por Herodes num país de miseráveis e de injustiças (GJ 2, 86)”. Essa observação crítica, mesmo vinda de alguém que posteriormente se aliou a Roma, demonstra uma conexão profunda e uma preocupação com o destino da Palestina e de seu povo. Foster destaca a importância das narrativas e histórias para a identificação com um lugar e sua identificação logo no começo de sua tese, e Josefo, com seus escritos, certamente contribuiu para a história e identificação da Palestina.
Apesar de sua imensa contribuição historiográfica, a figura de Josefo é controversa, especialmente devido à sua “mudança de lado” durante a guerra. Seus relatos, embora detalhados, são frequentemente vistos como enviesados por sua lealdade posterior a Roma. Rocha aponta: “Flávio Josefo começa seu relato como general judeu em luta contra os romanos, mas pouco a pouco vai mudando de opinião a respeito dos conflitos e termina envidando todos os esforços para demonstrar a inutilidade de se gastar as forças internas tanto em guerras civis como na luta contra os romanos”. Essa mudança de perspectiva é crucial para a interpretação de suas obras, visto que alguns consideram Josefo como um “traidor” da causa judaica. Sob outra ótica, alguns poderiam argumentar até mesmo pela fidelidade e honestidade histórica de Josefo com os fatos que se apresentavam diante dele, bem como pela maior maturidade de suas ideias conforme o tempo.
Relevo no Arco de Tito representando os despojos do Templo transportados durante a procissão do triunfo de 71 d.C.
Em suma, Josefo concebia a “Palestina” em um sentido geográfico amplo, alinhado com o uso clássico e romano, e via-se como um filho dessa terra, descrevendo-a e narrando sua história com a perspectiva de quem a vivenciou intensamente. Como Masalha destaca, Josefo fez uma distinção clara entre a Síria e a Palestina (apesar do nome “Síria-Palestina” utilizado pelos romanos) e endossou o relato de Heródoto sobre a Palestina do século V a.C, reforçando sua compreensão de Palestina como uma entidade geográfica distinta e com existência autônoma – algo muito diferente da desinformação propagada por Golda Meir, ex primeira-ministra de Israel, bem como pela propaganda sionista moderna, isto é, de que “Palestina não existe” e “nunca existiu”.
Golda Meir
Como indaga Foster, se a Palestina não existe, por que nos identificamos com ela? Bem, primeiramente porque ela tem um nome. Entretanto, como o próprio autor enfatiza, não nos identificamos com todos os lugares que nomeamos, pois para isso nós precisamos ouvir histórias sobre o local se quisermos nos identificar com ele; histórias sobre fomes e guerras, conquistas e tribos, geografia, economia, arqueologia e assim por diante. O autor nos lembra ainda que foi através de nomes, histórias e mapas – como os que Josefo ajudou a perpetuar – que essa identidade se consolidou ao longo do tempo. Para finalizarmos, fica a seguinte provocação: onde está a identidade israelense?
Notas
[1] Foster fez uma participação no documentário “Israel Paralelo – A Farsa Revelada” produzido pelo História Islâmica. Recentemente publicamos o trecho de sua participação em nosso canal: https://www.youtube.com/watch?v=42CoD-pHzJE
Referências
FOSTER, Z. J. The Invention of Palestine. Nova Jersey: Princeton, 2017.
MASALHA, N. Palestine: A four thousand year history. Londres, England: Zed Books, 2018.
ROCHA, I. E. Dominadores e dominados na Palestina do século I. História (São Paulo), v. 23, n. 1–2, p. 239–258, 2004.