A magreza extrema, os pés trôpegos, palidez, ossos salientes: o que é morrer de fome? O que ocorre, clinicamente, ao organismo no lento processo de lutar contra a falta de nutrientes? Em primeiro lugar, o corpo entra em um modo de economia de energia, diminuindo as funções metabólicas, os batimentos cardíacos, enquanto vai consumindo as reservas de carboidratos. Em seguida, o corpo passa a consumir os lipídios e demais fontes de gordura, inclusive nos órgãos internos. E ao fim, o corpo, num último recurso por se manter vivo, passa a consumir as proteínas, isto é, massa muscular etc. Essa paisagem macabra ajuda a entender que, das mortes evitáveis, a fome é uma das que inflige ao corpo uma agonia lenta e duradoura. Carolina Maria de Jesus dizia que “a fome é amarela”. No entanto, como foi possível perceber esses fenômenos em humanos? A resposta para essa pergunta está no Gueto de Varsóvia, em meio ao Holocausto Nazista, quando um grupo de cientistas judeus, em um estudo idealizado por Israel Milejkowski, aproveitou o horror para, mesmo assim, contribuir para o conhecimento humano. Ou seja, eles aproveitaram a própria prisão para fazer ciência.
Israel Milejkowski, 1993.
O Gueto de Varsóvia foi o maior gueto criado pelos nazistas para confinar os judeus da Polônia. Criado em 1940 e murado em um espaço de pouco mais de 3,4km², lá foram confinadas cerca de 400 mil pessoas forçadas a viver sem saneamento, acesso a bens básicos, violência extrema etc. Durante 18 meses, milhares de judeus poloneses, bem como alguns ciganos de cidades menores e do interior, foram trazidos para o gueto, enquanto doenças (especialmente tifo) e fome mantinham o número de habitantes praticamente inalterado. Os cartões de racionamento permitiam que os moradores do gueto consumissem apenas 300 calorias por dia, uma pequena fração necessária para manter a saúde. Uma ordem oficial datada de 19 de abril de 1941 afirma que “o abastecimento básico do Distrito Residencial Judaico deve ser inferior ao mínimo necessário para preservar a vida, independentemente das consequências”. A consequência disso foi que cerca de 100 mil pessoas morreram por doenças ligadas à fome.
Foto documentando a pesquisa clínica sobre a fome realizada por um grupo de médicos judeus no gueto de Varsóvia, 1942.
Nesse contexto, o estudo do Dr. Milejkowski surge para aproveitar o estado de penúria a qual a população do gueto foi submetida e fornecer às futuras gerações dados precisos sobre os efeitos da carestia no organismo. Para isso, foi montada uma comissão interdisciplinar que atuaria nos dois únicos hospitais dentro do Gueto, o de Crysta, para adultos, e o de Bauman-Berson, infantil. A metodologia consistia em analisar os casos clínicos iniciais de adultos ou crianças com sintomas iniciais da “Maladie de famine”, ou, Doença da Fome. O diagnóstico era feito se o paciente consumisse menos de 800 calorias por dia e não apresentasse evidências óbvias de qualquer outra doença. Em crianças, o número de calorias consumidas era muito menor, com a quantidade exata dependendo da idade da criança. O segundo estudo consistiu em uma pesquisa cuidadosa do metabolismo e da dinâmica circulatória em pacientes que sofriam apenas da doença da fome, sem nenhuma outra doença concomitante.
À esquerda: homem mostra criança faminta em Gaza, 2024.
À direita: homem mostrando o cadáver de uma criança faminta no gueto de Varsóvia, 1942.
Os resultados foram uma verdadeira anatomia da inanição. De 1º de janeiro de 1940 a 22 de julho de 1942, foram realizadas 3.658 autópsias. Destas, 492 foram casos de inanição “pura”, comprovada pela ausência de qualquer doença agravante. Observações repetidas foram feitas, verificadas e reavaliadas, e os resultados foram resumidos em gráficos e tabelas em uma escala nunca antes utilizada em um estudo dessa natureza. Os cientistas puderam mapear o processo de luta do organismo na luta por se manter vivo, desde a diminuição da atividade metabólica até a degradação muscular. A segunda etapa do estudo mostrou também que o retorno da inanição não ocorre de maneira uniforme no corpo. Ainda que o organismo agora dispusesse de material para se recompor, o tempo prolongado de fome fez com que algumas funções precisassem de mais tempo para se recuperar, sendo a circulatória a mais sensível. Muitos dos que voltavam a ter contato com alimentos acabavam morrendo de insuficiência cardíaca, devido ao repentino aumento de gorduras e proteínas para “queimar”.
Os resultados desse estudo, no entanto, só puderam sair à luz graças ao contrabando feito para fora do Gueto, quando uma mulher que fazia a “ponte” entre os dois lados entregou o manuscrito ao professor Witold Orlowski, chefe do departamento de medicina do hospital universitário de fora do Gueto. O resultado foi publicado depois da guerra, em 1979, como um legado às gerações futuras e um aviso para que esses horrores jamais se repitam.
Gaza, 2012. O exército de Israel é acusado de limitar a quantidade de alimentos aos moradores da região. Para evitar uma crise humanitária, eles se usam dos estudos feitos pelo dr. Milejkowski e delimitam a quantidade a 2500 kcal diárias. Segundo o jornal The Guardian “Israel afirmou que o bloqueio era necessário para enfraquecer o Hamas. Mas os críticos afirmam que o bloqueio constitui uma punição coletiva contra a população de Gaza, de mais de 1,5 milhão de habitantes.” As sanções ao território palestino impediam a entrada de produtos essenciais e eram justificadas como um tentativa de enfraquecer o HAMAS.
Barras de chocolate apreendidas por Israel na fronteira de Nitzana com o Egito, que autoridades israelenses disseram estar sendo importadas para Gaza e cujos lucros com as vendas seriam destinados ao financiamento do Hamas, 16 de agosto de 2021. The Times of Israel.
Gaza, 2024. A OXFAM relata que cerca de 100 mil palestinos que vivem no norte da Faixa de Gaza estão vivendo com 245 cal por dia, menos de 12% das necessidades básicas de um ser humano. De acordo com Amitabh Behar, Diretor Executivo da Oxfam Internacional, afirmou: “Israel está fazendo escolhas deliberadas para matar civis de fome. Imagine como é, não apenas tentar sobreviver com 245 calorias dia após dia, mas também ter que ver seus filhos ou parentes idosos fazerem o mesmo. Tudo isso enquanto estão deslocados, com pouco ou nenhum acesso a água limpa ou banheiro, sabendo que a maior parte do suporte médico foi embora e sob a constante ameaça de drones e bombas. Israel está ignorando tanto a ordem da Corte Internacional de Justiça para impedir o genocídio quanto as resoluções do Conselho de Segurança da ONU.
O relatório do IPC diz que cerca de 17 mil mães e 71 mil crianças se encontram em estado de desnutrição aguda. Nesta terça-feira, o subsecretário-geral para Assistência Humanitária da ONU, Tom Fletcher, afirmou que 14 mil bebês podem morrer até o final da semana se os carregamentos de ajuda não chegarem aos civis em quantidade adequada. Enquanto isso, o exército de Israel ameaça uma flotilha com ajuda humanitária na qual está a ativista Greta Thunberg a chegar na faixa de Gaza e nega que haja fome. A acusação? Antissemitismo e chegada de armas ao HAMAS.
Um médico examina Jana Ayad, uma menina palestina desnutrida, enquanto ela recebe tratamento no hospital de campanha do Corpo Médico Internacional, em meio ao conflito entre Israel e o Hamas, em Deir Al-Balah, no sul da Faixa de Gaza, em 22 de junho de 2024.
80 anos nos separam do Holocausto. Suas memórias, porém, são uma cicatriz viva para todos nós. Ou não? Será que o Holocausto só foi a catástrofe que foi porque ocorreu em território Europeu? E quando vemos aqueles que deveriam usar da memória do Holocausto para não repetir seus erros, fazendo exatamente as mesmas coisas é de se perguntar: quanto vale a vida humana quando ela está na periferia do Globo. O Holocausto palestino é o holocausto da memória. Mas também da humanidade.
Referências
ASSOCIATED PRESS. Israel used ‘calorie count’ to limit Gaza food during blockade, critics claim. The Guardian, 17 out. 2012. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2012/oct/17/israeli-military-calorie-limit-gaza.
BARINI, Filipe. ‘Quando esse estoque acabar, não sei o que faremos’: sem ajuda externa, moradores de Gaza têm na fome uma trágica certeza. O Globo, 21 mai. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/05/21/quando-esse-estoque-acabar-nao-sei-o-que-faremos-sem-ajuda-externa-moradores-de-gaza-tem-na-fome-uma-tragica-certeza.ghtml.
OXFAM GB. People in northern Gaza forced to survive on 245 calories a day, less than a can of beans. Press release, Oxfam GB, 4 abr. 2024. Disponível em: https://www.oxfam.org.uk/media/press-releases/people-in-northern-gaza-forced-to-survive-on-245-calories-a-day-less-than-a-can-of-beans-oxfam/.
RUGENDORFF, Erwin W. The Hunger Disease Study in the Warsaw Ghetto. The Scope of Urology Newsletter, Issue 2 – Summer 2020, Linthicum, MD: William P. Didusch Center for Urologic History, 2020. Disponível em: https://urologichistory.museum/the-scope-of-urology-newsletter/issue-2-summer-2020/hunger-disease-study.