Cruzadas contemporâneas: os massacres de radicais cristãos contra muçulmanos

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O tema da intolerância religiosa, em especial a perseguição contra outras religiões, se tornou na sociedade moderna um verdadeiro sinônimo para “Islã” e “muçulmanos”. Após décadas de propaganda, seletividade da mídia mainstream e pregações de missionários, se consolidou no imaginário popular a figura de cristãos mortos e perseguidos pela sua fé, em especial por algozes muçulmanos que odeiam o cristianismo e buscam converter os cristãos pela força. Essa narrativa costuma vir acompanhada de frases que evocam uma “batalha espiritual” entre os dois lados, sendo o cristão o seguidor da fé verdadeira que será perseguido pelas forças demoníacas, conforme palavras do próprio Cristo (João 15:20), enquanto o muçulmano é o seguidor de alguma espécie de seita que naturalmente inocula o ódio em seus seguidores pelos que acreditam em Jesus (ignorando convenientemente o fato de que muçulmanos também creem em Jesus e na Virgem Maria).

O tema de boa parte das hagiografias – e evidentemente dos martirológios –, é justamente de cristãos sendo perseguidos por conta de sua fé pelos mais variados grupos: pagãos, judeus, hereges, muçulmanos, ateus (normalmente comunistas) e assim sucessivamente. Juntamente com a “promessa” de perseguição contida no Novo Testamento, vem o desfecho glorioso: o sangue dos mártires é a semente de novos cristãos, frase clássica que marcou o período sob o jugo de Roma e é utilizada até hoje.

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Martírio de Eulógio de Córdova. Catedral de Córdova.

Com esse texto, evidentemente não queremos dizer que cristãos nunca sofreram perseguições ou que não sofrem nos dias de hoje em determinados locais do mundo, menos ainda tentar justificar crimes cometidos contra esses grupos. Isso seria negar a realidade além de negar a própria história, bem como todo e qualquer senso de humanidade. O ponto é mais simples: em diversos momentos, grupos cristãos figuram como os perseguidores e não como as vítimas, inclusive contra minorias muçulmanas. Qualquer tentativa em transformar algum desses grupos religiosos em vítimas ou vilões oficiais da história é falaciosa. A realidade é mais complexa do que “esse grupo é sempre oprimido” e “esse grupo é sempre o opressor”.

De perseguidos a perseguidores

Essa transformação de perseguido a perseguidor é o tema central do estudo de Michael Gaddis, There Is No Crime for Those Who Have Christ. Gaddis argumenta que, com a ascensão do cristianismo ao poder durante a época romana, a ideologia do martírio foi reconfigurada para justificar a violência, não apenas para suportá-la. O mesmo zelo divino que antes sustentava os mártires em face da tortura agora sancionava a violência contra os inimigos da fé. O título de sua obra, retirado das palavras de um abade egípcio do século V, ilustra essa nova e perigosa mentalidade: a crença de que “a santidade individual pode justificar e até santificar uma ação que em outras circunstâncias seria considerada criminosa, que o zelo por Deus supera o respeito pela lei e pela ordem mundanas”.

Gaddis demonstra como essa mentalidade forjada na perseguição se tornou uma ferramenta para legitimar a violência. Ele explica:

As motivações dos fanáticos religiosos da Antiguidade tardia não podem ser compreendidas à parte de uma visão de mundo moldada pelo martírio e pela perseguição. Essa mentalidade de oposição, fundamentada na experiência inicial do cristianismo como um culto marginalizado e frequentemente perseguido, derivava legitimidade, autoridade e autenticidade do sofrimento real ou percebido de seus modelos espirituais. (GADDIS, 2005, p. 6)

Essa mentalidade cria uma dicotomia entre a violência “extremista” (praticada por zelotas em nome da pureza da fé) e a violência “centrista” (praticada pelo Estado em nome da ordem e da unidade). Gaddis descreve essa dinâmica: enquanto os extremistas empregavam a violência para expor e, por fim, destruir inimigos conhecidos, os centristas a usavam para amenizar disputas e trazer os rebeldes de volta ao grupo por meio de uma combinação de persuasão e coerção disciplinar.

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A Última Oração dos Mártires Cristãos, de Jean-Léon Gérôme (1883).

Essa análise é crucial para entender como um grupo que se via como vítima pôde, ao ganhar poder, adotar a mesma lógica de seus antigos opressores, apenas redefinindo os termos de “justiça” e “ordem”.

Em uma análise crítica, apoiada por acadêmicos como Philip Jenkins, podemos encontrar na atualidade uma realidade que ecoa certos acontecimentos da Antiguidade e Idade Média. Enquanto a obra de Gaddis foca em como a ideologia do martírio foi reconfigurada para justificar a violência, a obra de Jenkins, Laying Down the Sword, demonstra como os próprios textos sagrados da Bíblia foram instrumentalizados para o mesmo fim, assim como os terroristas fazem em nome do Islã e em suas descontextualizações do Alcorão.

O paralelo é claro: ambos os autores desconstroem a narrativa simplista de um cristianismo inerentemente pacífico, mostrando como seus praticantes, em diferentes épocas, encontraram justificativas teológicas para a violência. Gaddis mostra a transformação da memória da perseguição em uma arma; Jenkins mostra a transformação dos textos de conquista em um manual para a ação. Ambos os mecanismos servem para santificar a violência, colocando-a acima da lei e da moralidade secular. Assim como vemos em certos justificadores da Inquisição: mais vale salvar a alma na vida eterna do que a vida efêmera deste mundo. 

Jenkins não nega a perseguição a cristãos, mas força uma confrontação com os “textos de terror” da própria Bíblia – e não do Alcorão –  que historicamente serviram de justificativa para a violência perpetrada por cristãos. Jenkins argumenta que, em termos de potencial para justificar a violência, alegar uma certa superioridade da Bíblia seria, no mínimo, equivocado e simplista:

Mas, em termos de ordenar violência e derramamento de sangue, qualquer afirmação simplista sobre a superioridade da Bíblia em relação ao Alcorão seria completamente equivocada: é fácil ver o cisco no olho do outro e não perceber a trave no seu. De fato, a Bíblia tem suas próprias passagens sangrentas e violentas, que têm incomodado leitores fiéis há séculos e atraído atenção ainda mais intensa durante os debates recentes sobre a relação entre religião e violência. (JENKINS, 2011, p. 11)

A perspectiva de Jenkins demonstra que diversos grupos extremistas que se identificam como cristãos continuam a perpetrar massacres, especialmente onde o cristianismo é demograficamente dominante e se funde com ideologias nacionalistas. A análise de eventos como o Genocídio da Bósnia, a limpeza étnica na República Centro-Africana e o Massacre de Sabra e Chatila no Líbano, temas deste artigo, expõem padrões de violência extrema que desafiam a visão monolítica do cristianismo como unicamente uma vítima.

Para Jenkins, a Bíblia está repleta do que a teóloga Phyllis Trible chamou de “textos de terror”. 

Um dos exemplos mais contundentes e citado por Jenkins vem do livro de Deuteronômio (7:1-2), que instrui os israelitas sobre como tratar os povos de Canaã. A ordem divina é inequívoca: “(…) e quando o Senhor, o seu Deus, as tiver dado a vocês, e vocês as tiverem derrotado, então vocês as destruirão totalmente. Não façam com elas tratado algum e não tenham piedade delas.”

Josué lutando contra os amalequitas. Ilustração do Phillip Medhurst Collection.

Historicamente, Jenkins demonstra que essa estrutura bíblica foi usada para justificar a violência em larga escala, especialmente durante a Reforma e o período colonial:

Assim como os islâmicos, os cristãos colocavam suas crenças em prática, baseando suas ações explicitamente nas escrituras. A violência resultante atingiu seu auge na Europa durante as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, quando cada facção rotulava seus oponentes (cristãos) como amalequitas dignos apenas de matança. (JENKINS, 2011, p. 16)

Não obstante, a imagem enraizada do cristão pacífico, vítima constante dos desarranjos da história, bem como do muçulmano agressivo, impedem que figuras importantes na sociedade reconheçam a violência religiosamente motivada perpetrada por outros grupos religiosos que não os muçulmanos. Conforme excelente texto de Abdal Hakim Murad (Timothy Winter) a respeito do Genocídio Bósnio, um dos aspectos mais perturbadores da guerra ocorrida entre 1992 e 1995 foi a recusa generalizada de políticos, religiosos e jornalistas ocidentais em reconhecer o papel que a religião desempenhava no conflito.

Abdal Hakim desabafa e afirma ainda que “a realidade, que frequentemente se tratava de extremismo cristão militante, nunca foi, que eu saiba, discutida com franqueza.” Ele acrescenta ainda que “a guerra foi, disseram-nos, uma disputa entre “facções étnicas”; e o fato de seus protagonistas estarem divididos principalmente pela religião e compartilharem uma raça e uma língua foi considerado insignificante.”

Esses eventos demonstram que a violência religiosa não é monopólio de nenhuma fé. Como veremos nos casos abaixo, em cada um deles uma identidade cristã militante, seja ela Ortodoxa Sérvia, falangista libanesa ou anti-balaka, foi mobilizada para justificar a desumanização e a erradicação de comunidades muçulmanas. Os métodos empregados — desde execuções em massa e violação genocida a conversões forçadas e destruição de locais de culto — não foram atos aleatórios de guerra, mas sim componentes de uma campanha sistemática para eliminar a presença muçulmana, tanto física como culturalmente.

O Genocídio Bósnio: uma Cruzada Ortodoxa

O Genocídio da Bósnia (1992-1995) é talvez o exemplo mais flagrante e bem documentado de um massacre em massa perpetrado por forças cristãs na Europa contemporânea. Contrariando a narrativa ocidental que o classificou como um conflito “étnico”, foi uma guerra intensamente religiosa. As forças sérvias da Bósnia (VRS), apoiadas pela Igreja Ortodoxa Sérvia, executaram uma campanha sistemática de limpeza étnica contra os bosníacos (muçulmanos bósnios). A ideologia subjacente era explicitamente religiosa, retratando os bosníacos não como um grupo étnico distinto, mas como “traidores” da Ortodoxia que deveriam ser eliminados ou “trazidos de volta” à “fé verdadeira”.

Captura de tela de um vídeo mostrando um padre ortodoxo sérvio abençoando os soldados paramilitares em 25 de junho de 1995, poucos dias antes de os soldados serem transferidos para a área de Srebrenica

As pessoas mortas foram escolhidas com base na sua identidade religiosa; aqueles que realizaram os assassinatos agiram com a bênção e o apoio dos líderes da igreja cristã; a violência foi baseada numa mitologia religiosa que caracterizava as pessoas visadas como “traidores da raça” e o seu extermínio como um ato sagrado, conforme aponta Murad.

Tropas sérvias da Bósnia nas ruas de Srebrenica em julho de 1995.

O massacre de Srebrenica, em julho de 1995, foi o clímax desta campanha, onde mais de 8.000 homens e rapazes muçulmanos foram executados sistematicamente por unidades do VRS. Este ato, classificado como genocídio pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPIJ), não foi um evento isolado. Fez parte de uma política mais ampla que incluiu a violação em massa de dezenas de milhares de mulheres muçulmanas como arma de guerra, a destruição de mais de metade das mesquitas e monumentos culturais islâmicos do país e a criação de campos de concentração. O objetivo era claro: apagar seis séculos de presença islâmica na Bósnia.

O envolvimento clerical foi direto e inequívoco. Os bispos ortodoxos sérvios sentavam-se na primeira fila do “parlamento” sérvio-bósnio, abençoavam as tropas e negavam a existência dos campos de concentração, mesmo perante evidências esmagadoras. A retórica antimuçulmana era constante, com figuras como o bispo Atanasije defendendo a demolição de mesquitas. O exército do VRS atraiu até combatentes cristãos ortodoxos estrangeiros da Rússia e da Grécia, que lutaram motivados por um senso de solidariedade religiosa e nacionalista. Essa fusão entre a fé, o nacionalismo e a violência transformou a guerra em uma cruzada moderna.

Uma vala comum exumada em Potocari, Bósnia e Herzegovina, onde ocorreram os principais eventos do Massacre de Srebrenica em julho de 1995. Julho de 2007.

República Centro-Africana: a erradicação da identidade muçulmana

Na República Centro-Africana (RCA), a violência contra os muçulmanos que eclodiu em 2013 representa um caso contemporâneo de limpeza étnica em massa, levada a cabo pelas milícias anti-balaka. Embora essas milícias sejam frequentemente descritas como grupos de “autodefesa” que surgiram em resposta aos abusos da coalizão rebelde Séléka , suas ações rapidamente evoluíram para uma campanha coordenada de erradicação da população muçulmana do país. As milícias anti-balaka são compostas majoritariamente por cristãos e animistas, e sua ideologia é alimentada por um discurso que equipara a identidade muçulmana a uma presença “estrangeira” e ilegítima. 

Um grupo de milicianos anti-balaka posa para uma fotografia nos arredores de Bangui

Embora possua um número significativo de animistas em seus quadros e não raramente sofram oposição de lideranças cristãs, os anti-balaka ainda são compostos por vários cristãos rebeldes em suas fileiras.

De acordo com o Human Rights Watch, as milícias estavam cada vez mais organizadas e usavam uma linguagem que sugeria que sua intenção era eliminar os residentes muçulmanos da República Centro-Africana. Os anti-balaka culpam a população muçulmana pela ascensão do grupo rebelde Seleka, com muçulmanos em suas fileiras, que assumiu o poder em março de 2013 e cometeu abusos horríveis contra a população majoritariamente cristã do país nos últimos 11 meses.

Combatentes da Seleka invadem um bairro em Bangui.

A violência foi brutal e sistemática. Relatórios da Human Rights Watch e da Anistia Internacional documentaram ataques coordenados a bairros muçulmanos, massacres de civis e a destruição de quase todas as 436 mesquitas do país. A retórica dos líderes anti-balaka era explicitamente genocida, com declarações como: “Não precisamos de árabes neste país – eles têm de sair e voltar para os seus países pois mataram muitos de nossas famílias… Não queremos muçulmanos na República Centro-Africana”. Essa campanha forçou a fuga de quase toda a população muçulmana de Bangui e deixou cidades inteiras “limpas” de muçulmanos.

Para os poucos muçulmanos que permaneceram em áreas controladas pelos anti-balaka, a sobrevivência veio com um custo terrível: a anulação de sua identidade religiosa. Um relatório da Anistia Internacional intitulado “Identidade Apagada” detalhou como muitos muçulmanos foram forçados a se converter ao cristianismo sob ameaça de morte. Aqueles que não se converteram foram proibidos de rezar publicamente, de usar vestuário tradicional muçulmano ou de reconstruir suas mesquitas. Em essência, sua presença só era tolerada se sua identidade muçulmana se tornasse invisível.

Mesquita de Bangui é saqueada após êxodo da comunidade muçulmana.

As raízes dessa violência são profundas, ligadas à construção colonial do “outro” muçulmano e reforçadas por ideologias pós-coloniais. O pentecostalismo, em particular, forneceu uma “filosofia de libertação” que, apresentada como patriotismo, deu poder ao discurso antimuçulmano. Os anti-balaka são frequentemente vistos por segmentos da população como “patriotas” que defendem uma ordem social idealizada, o que legitima sua violência e perpetua a marginalização e o terror contra as comunidades muçulmanas.

Sabra e Chatila: o massacre Falangista

O Massacre de Sabra e Chatila, em setembro de 1982, no Líbano, foi um dos episódios mais chocantes da Guerra Civil Libanesa. Foi perpetrado pela milícia das Forças Libanesas, uma organização paramilitar de extrema-direita predominantemente cristã maronita, associada ao Partido Kataeb (Falange). Embora os perpetradores diretos fossem cristãos libaneses, o massacre ocorreu com o apoio, coordenação e a cumplicidade das Forças de Defesa de Israel (IDF), que tinham invadido o Líbano e cercado os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila em Beirute.

O contexto foi a recente retirada da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) de Beirute, sob garantias internacionais (incluindo dos EUA) de que os civis palestinos nos campos seriam protegidos. Após o assassinato do presidente-eleito libanês, Bashir Gemayel, líder das Forças Libanesas, as IDF permitiram que a milícia falangista entrasse nos campos ostensivamente para procurar combatentes da OLP rendidos. O que se seguiu foi um massacre de três dias, no qual entre 1.300 e 3.500 civis, na sua maioria muçulmanos palestinos, mas também libaneses, foram sistematicamente assassinados por não ter a OLP para protege-los, já que haviam aceitado a paz americana-israelense.

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Consequências do massacre nos campos de refugiados de Sabra e Chatila.

Acredita-se que os assassinatos tenham ocorrido sob o comando do político libanês Elie Hobeika, cuja família e noiva foram assassinadas por militantes palestinos e milícias libanesas de esquerda durante o massacre de Damour em 1976, que por sua vez foi uma resposta ao massacre de palestinos e xiitas libaneses em Karantina (1976), nas mãos de milícias cristãs.

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Uma casa destruída após o massacre de Damour em 20 de janeiro de 1976.

As IDF desempenharam um papel crucial na perpetração do morticínio em massa. Não só permitiram a entrada da milícia, como também selaram as saídas dos campos para impedir que os civis escapassem. Durante a noite, as forças israelenses dispararam foguetes de iluminação sobre os campos, facilitando a continuação do massacre. Relatórios sobre as atrocidades chegaram ao comando israelense enquanto o massacre estava em curso, mas nenhuma ação foi tomada para impedi-lo. A Comissão Kahan, um inquérito israelense, concluiu mais tarde que Israel tinha “responsabilidade indireta” pelo massacre, forçando a renúncia do então Ministro da Defesa, Ariel Sharon.

A ideologia das Forças Libanesas era uma mistura de nacionalismo cristão, anticomunismo e fenicianismo [1], que via a presença palestina e muçulmana como uma ameaça existencial ao “Líbano cristão” e racialmente “fenício”. O massacre foi apresentado como uma vingança pelo assassinato de Gemayel, mas na realidade foi a expressão de uma longa campanha de violência sectária e supremacismo étnico. Os métodos utilizados foram de uma brutalidade extrema: violações, tortura, mutilações e execuções sumárias de homens, mulheres e crianças, com corpos sendo enterrados em valas comuns.

O paradoxo da coexistência entre mártires e algozes

Os massacres da Bósnia, da República Centro-Africana e de Sabra e Chatila, embora distintos em seus contextos históricos e geográficos, revelam um padrão convergente e perturbador. Em cada caso, grupos que se autodefinem como cristãos utilizaram sua fé como um pilar ideológico para justificar a limpeza étnica e o genocídio contra populações muçulmanas. A identidade religiosa tornou-se a principal linha divisória, superando fatores étnicos ou linguísticos e servindo como marcador para a desumanização do “outro”. Esses eventos não podem ser relegados a meras anomalias ou disputas “tribais”; são manifestações contemporâneas de extremismo religioso que operam dentro de uma matriz cristã.

Embora, naturalmente, possamos discutir se o cristianismo em sua gênese fomenta ou não esse tipo de ato (defendemos que não), a realidade é que assim como ocorreu no Islã e em outras fés, seus textos sagrados e sua religiosidade foram instrumentalizados por grupos radicalizados para cometer violências brutais contra outros membros da sociedade (como nos casos do Boko Haram, ISIS e al-Qaeda). Não há que se falar, portanto, em uma regra geral onde a violência é monopolizada por determinado secto religioso, menos ainda devemos ignorar os versos violentos da Bíblia que legitimam atitudes extremistas e fingirmos que somente o Alcorão possui trechos instrumentalizados para a violência, conforme vemos na obra de Philip Jenkins.

A tendência ocidental de minimizar ou ignorar a dimensão religiosa desses crimes, especialmente quando os perpetradores são cristãos (ou judeus), cria um ponto cego perigoso em nossa compreensão da violência global. Enquanto a violência cometida por grupos muçulmanos é imediatamente enquadrada como terrorismo religioso, a violência cristã é frequentemente suavizada sob rótulos de “nacionalismo” ou “conflito étnico”. Isso, evidentemente, quando atos de terrorismo cristão não são automaticamente tachados como caso de insanidade mental e inimputabilidade. 

Reconhecer que o extremismo violento pode emergir de qualquer tradição religiosa (ou não religiosa) não é um ato de relativismo moral, mas sim um pré-requisito para a honestidade intelectual. Para compreender plenamente a dinâmica da perseguição religiosa no século XXI, é imperativo abandonar as narrativas simplistas e examinar criticamente como a fé, quando fundida com o poder e a política, pode se tornar uma força genocida, independentemente do nome que invoca para justificar suas atrocidades. A realidade deve ser analisada como ela é, não com base em lentes pré-formatadas que servem a interesses geopolíticos maiores. Só assim se pode honrar verdadeiramente todas as vítimas da violência religiosa, muito mais que promessas de um pós-morte beatífico ou de ascensão da própria fé tendo o sangue como semente germinadora de fiéis.

Notas

[1] Se trata de uma forma de nacionalismo libanês que valoriza e apresenta a antiga Fenícia como o principal fundamento etnocultural do povo libanês e não na arabização trazida pelas migrações árabes para o Levante após as primeiras conquistas muçulmanas no século VII. Naturalmente, essa perspectiva se opõe ao pan-arabismo e ao pan-islamismo.

Referências

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AMNESTY INTERNATIONAL. Erased identity: Muslims in ethnically-cleansed areas of the Central African Republic. Disponível em: <https://www.amnesty.org/en/documents/afr19/2165/2015/en/>. Acesso em: 30 jun. 2025.

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FRANCIS, S. Violence against Muslims: Conquered, not fully colonized, in the making of the Muslim “other” in the Central African Republic. African studies review, v. 68, n. 1, p. 68–90, 2025.

GADDIS, Michael. There Is No Crime for Those Who Have Christ: Religious Violence in the Christian Roman Empire. University of California Press, 2005.

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HUMAN RIGHTS WATCH. Central African Republic: Muslims forced to flee. Disponível em: <https://www.hrw.org/news/2014/02/12/central-african-republic-muslims-forced-flee>. Acesso em: 30 jun. 2025.

JENKINS, Philip. Laying Down the Sword: Why We Can’t Ignore the Bible’s Violent Verses. HarperOne, 2011.

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