Com a ascensão do Império Otomano como a principal potência islâmica do início do período moderno, e especialmente após a conquista do Sultanato Mameluco do Egito em 1517 por Selim I, o sultão otomano assumiu o título de Califa, posicionando-se como o protetor de todos os muçulmanos. Com o título de califa, veio o peso da responsabilidade de liderar e proteger as comunidades muçulmanas ameaçadas em todo o mundo, respondendo a apelos de ajuda contra a crescente expansão das potências europeias, como Portugal e Espanha. Como o Califa é o líder de toda a Ummah (comunidade islâmica), naturalmente que muçulmanos oprimidos pelo mundo se voltariam para a sua liderança e autoridade em busca de ajuda, afinal de contas: quem mais poderoso no mundo islâmico do que o próprio Comandante dos Fiéis (Emir al-Muminin)?
No início do século XVI, a rápida expansão do Império Português no Oceano Índico representou uma ameaça direta às rotas comerciais tradicionais e à soberania das entidades políticas muçulmanas costeiras. A marinha portuguesa estabeleceu uma série de fortalezas e feitorias, procurando monopolizar o lucrativo comércio de especiarias e exercer o seu poder militar desde a África Oriental até ao Sudeste Asiático. Como no Brasil normalmente estudamos alguma coisa a respeito desse período, visto estar diretamente relacionado com o nosso “descobrimento” e fundação, é provável que o leitor já esteja familiarizado com certos temas. Contudo, se para nós esse período marcou o início de nossa nação, essa agressiva presença naval perturbou economias dos reinos muçulmanos, que viram a sua autonomia e as suas ligações com o resto do mundo islâmico ameaçadas, em especial após as viagens de Vasco da Gama.
Um dos primeiros e mais significativos apelos por auxílio veio do Sultanato de Guzerate, na Índia, chamado pelos portugueses de Reino de Cambaia. Confrontado com a agressão portuguesa, que culminou na construção de uma fortaleza em Diu em 1535, o sultão local procurou a ajuda do poderoso Império Otomano, nessa época governado por ninguém mais ninguém menos que Solimão, o Magnífico. Em resposta, Istambul viu uma oportunidade estratégica para conter o avanço português e reafirmar a sua influência no Oceano Índico. A Sublime Porta – nome dado para se referir ao governo central do Império Otomano em Istambul – organizou então uma expedição naval considerável para apoiar os seus correligionários em Guzerate, dando início a um período de hostilidades abertas contra os portugueses na região.
Representação portuguesa do Sultão de Guzerate. Wikimedia Commons.
A expedição otomana a Diu em 1538 foi liderada por Hadim Solimão Paxá, o governante do Egito. A frota, construída em Suez, era uma das maiores que os otomanos já tinham enviado para o Oceano Índico. Embora o cerco a Diu não tenha tido sucesso em expulsar os portugueses, a expedição demonstrou o alcance e a capacidade do poder otomano, visto que após levantar o cerco e voltar para o Egito, Solimão Paxá conquistou Áden e grande parte do Iêmen, assegurando o controle otomano sobre o Mar Vermelho e fortalecendo a fronteira sul do império contra a incursão portuguesa.
Mais ao leste, no Sudeste Asiático, o Sultanato de Aceh (ou Achém), na ilha de Sumatra (Indonésia), emergiu como um bastião da resistência muçulmana contra os portugueses, que tinham capturado Malaca em 1511. Perante a ameaça constante, o sultão de Aceh procurou estabelecer uma aliança formal com o Império Otomano. A relação, que já existia informalmente, foi aprofundada por meio de uma embaixada enviada a Constantinopla na década de 1560, solicitando apoio militar direto para combater o inimigo comum e expandir a influência de Aceh na região.
Banda Aceh em 1665 com o palácio do sultão ao fundo. Wikimedia Commons.
O apelo do sultão Alauddin Riayat Syah al-Kahhar a Solimão, o Magnífico, inaugurou as relações formais entre os otomanos e Aceh. Após a morte de Solimão, o seu filho, Selim II, deu continuidade à política de apoio e ordenou o envio de navios e mais assistência militar ao sultanato indonésio. Natuarlmente que além de um ato de solidariedade religiosa, essa medida possuía um caráter pragmático e estratégico, visando desafiar o domínio português nas rotas comerciais do Oceano Índico e estabelecer um aliado otomano numa região vital para o comércio global.
A ajuda otomana a Aceh não se limitou ao envio de tropas, mas incluiu também a transferência de tecnologia e conhecimento militar, algo que distinguia os otomanos como uma das principais potências globais da época. Os otomanos enviaram armeiros, engenheiros e artilharia, e ensinaram os habitantes de Aceh a forjar os seus próprios canhões de bronze. Este apoio foi fundamental para modernizar o exército de Aceh e transformá-lo numa potência militar formidável no Sudeste Asiático, capaz de desafiar os portugueses durante décadas.
Como resultado direto da assistência otomana, o Sultanato de Aceh fortaleceu-se significativamente no final do século XVI e início do século XVII. O sultanato passou a possuir um arsenal impressionante, incluindo centenas de canhões e outras armas de fogo, como mosquetes e arcabuzes, a tecnologia militar mais recente na época. Este poderio militar permitiu a Aceh não só defender o seu território, mas também expandir a sua influência, controlando uma parte significativa do comércio de especiarias e tornando-se um grande adversário comercial e militar dos portugueses na região.
No outro extremo do mundo islâmico, na Península Ibérica, a situação era diferente e o sucesso cristão se solidificava. Os mouriscos, descendentes de muçulmanos forçados a converter-se ao cristianismo, revoltaram-se no Reino de Granada entre 1568 e 1570. Conhecida como a Rebelião das Alpujarras, este conflito foi o culminar de décadas de opressão cultural e religiosa. Perante um inimigo muito superior – simplesmente a Coroa de Castela –, os líderes mouriscos procuraram desesperadamente o apoio do mundo islâmico, olhando para o Império Otomano e os seus estados-vassalos no Norte de África como a sua única esperança.
Desde o início da revolta, os mouriscos enviaram pedidos de ajuda aos seus irmãos de fé do outro lado do Mediterrâneo. O governador otomano de Argel (capital da Argélia), a principal base naval na região, recebeu apelos urgentes por soldados e armas. Embora a resposta não tenha sido uma expedição em grande escala, como as enviadas para o Oceano Índico, o auxílio foi prestado desde o início, ainda que de forma limitada e com dificuldades logísticas, dada a proximidade e a vigilância da Coroa espanhola.
Líder da Rebelião das Alpujarras, Muhammad ibn Umayyah (Aben Humeya), nascido Fernando de Válor y Córdoba.
O apoio aos mouriscos materializou-se principalmente através de um fluxo contínuo, embora reduzido, de voluntários e soldados profissionais. Estes combatentes, descritos nas crônicas espanholas como “turcos e norte-africanos”, eram uma mistura de aventureiros, mercenários e homens motivados pela fé, que atravessavam o mar para se juntar à rebelião, conforme aponta Ángel Galan Sánchez (1993), da Universidade de Málaga.
O Beylerbey (Bei dos Beis, que significa “comandante dos comandantes”) de Argel na época, Uluj Alí, uma figura lendária e muito interessante da marinha otomana, recebeu diretamente os pedidos de ajuda. Nascido Giovanni Dionigi Galeni numa vila da Calábria, na Itália, foi capturado por corsários da Berbéria e passou anos como escravo de galé. Segundo contam, converteu-se ao Islã para poder se vingar de uma humilhação que sofrera certa vez e, a partir daí, o seu valor e astúcia levaram-no a uma ascensão meteórica nas linhas otomanas, passando de corsário a governador de Argel e, mais tarde, a Kapudan Paxá, o grande almirante de toda a frota otomana.
Calcografia italiana de Uluj Alí, 1837.
A resposta de Uluj Alí foi, no entanto, cautelosa. Deu prioridade à segurança de Argel em detrimento de uma intervenção direta e arriscada nos assuntos internos em território espanhol, justificando a sua moderação com base na necessidade de proteger os seus próprios domínios. No entanto, teve de ceder à pressão da comunidade mourisca em Argel e acabou por autorizar a partida de voluntários, embora com uma condição importante: proibiu a atividade mercenária, insistindo que o apoio deveria ser por fé, e não por lucro.
A sua cautela revelou-se justificada, pois um plano para um ataque coordenado dos revoltosos contra a praça espanhola de Orã foi descoberto, o que teria tornado uma intervenção otomana direta extremamente perigosa. Mais tarde, com o intensificar da guerra na primavera de 1570, as pressões em Argel surtiram efeito e Uluj Alí enviou um auxílio mais concreto: 8 galeras e 400 arcabuzeiros, que na realidade eram prisioneiros libertados com a promessa de combater nas Alpujarras. A sua participação no conflito foi tão notável que a Coroa espanhola tentou neutralizá-lo: um compatriota seu, a soldo do rei Filipe II, o contatou e ofereceu dinheiro e o título de marquês na sua Calábria natal caso desertasse.
Em casos como esse, a prestação de auxílio a territórios tão distantes enfrentava enormes desafios logísticos e políticos. As frotas destinadas ao Oceano Índico, por exemplo, tinham de ser construídas em Suez e as suas missões podiam ser interrompidas por questões mais prementes para o império. Um exemplo claro foi uma das primeiras frotas destinadas a Aceh, composta por 15 galeras, que teve de ser desviada para reprimir uma revolta no Iêmen. Os recursos, embora vastos, eram limitados e as prioridades imperiais podiam sobrepor-se aos pedidos de ajuda de aliados distantes, primando por questões mais próximas e consequentemente mais urgentes que poderiam comprometer a estabilidade de todo o Império.
Apesar de nem sempre atingirem os seus objetivos finais, como a expulsão definitiva dos portugueses do Oceano Índico, as intervenções otomanas tiveram um impacto significativo: sustentaram a resistência muçulmana local e impediram que as potências europeias alcançassem o domínio total da região. Além disso, o Império Otomano consolidou o seu controle sobre o Mar Vermelho e o Iêmen, anexou portos na África Oriental e assegurou as suas fronteiras, mantendo um nível significativo de comércio com o Império Mogol da Índia e outras potências asiáticas.
Em última análise, a política otomana de auxílio aos muçulmanos em todo o mundo foi, para além de um “dever religioso”, um ponto central e de grande relevância estratégica para o próprio Império Otomano e para os territórios muçulmanos nos diferentes continentes. Para as comunidades que recebiam este apoio, como os mouriscos, a simples esperança de socorro do “Islã irredento” – para tomarmos emprestado o termo de Sánchez (1993) – era um poderoso fator de sensibilização. Esta esperança, alimentada por vitórias parciais e pelo desenvolvimento de revoltas contra potências estrangeiras, dava um novo fôlego à luta e permitia-lhes reorganizar as suas forças, demonstrando que o poder do Califa, fosse ele material ou simbólico, ressoava nos cantos mais remotos do mundo islâmico.
Apesar de nem sempre ser vitorioso na suas tentativas de defender a comunidade muçulmana pelo globo, o Comandante dos Fiéis, tanto no período otomano quanto em outras épocas, foi um farol e um bastião para o mundo islâmico na proteção da Ummah, que sob o manto do califa pôde ter assegurada pelo menos a resistência contra governos opressivos e tirânicos. Hoje, mais de cem anos após a queda dos Otomanos, vemos o resultado desse vácuo de poder e liderança e a opressão generalizada nos territórios outrora contidos no turbante do Califa.
Referências
HAMILTON CURREY, E. Sea-wolves of the Mediterranean: The grand period of the Moslem corsairs. Pinnacle Press, 2017.
ÖZBARAN, S. The Portuguese and the Turks in the Persian gulf. Em: Studies in Ottoman Naval History and Maritime Geography. Gorgias Press, 2011. p. 83–112.
SÁNCHEZ, A.G. Turcos y Moriscos en la Rebelión de las Alpujarras: Algunas Notas Sobre la Guerra de Granada de 1568-1570. Em: La organización militar en los siglos XV y XVI: actas de las II Jornadas Nacionales de Historia Militar. Catedra General Castanos, 1993, p. 129-136.
TARLING, N. The Cambridge history of southeast Asia set. Cambridge University Press, 1999.