Enquanto principado cliente do Sultanato Seljúcida de Rum no século XIII, na região da Bitínia, no noroeste da Anatólia (atual Turquia), o beilhique otomano era uma minoria num campo de disputas entre bizantinos, mongóis e outros beilhiques turcos, ainda que os intensos contatos culturais e comerciais com outras populações muçulmanas e a mediação das irmandades sufis, há mais de um século, contribuíram para um lento processo de islamização de sua população. O primeiro sultão e fundador do império, Osman, nascido no ano de 1238, tem seu nome derivado do árabe “Uthman”, nome do terceiro califa sunita. Apesar do caráter islâmico de seu governo, os “turcomanos” (como também eram conhecidos) buscaram ativamente as alianças mais teologicamente improváveis com os reinos cristãos europeus existentes, ora na forma de convenções militares, no intuito de obterem espólios de guerra na região; ora na forma de contratos matrimoniais, que reforçavam a legitimidade de um reino para com o outro, mesclando dinastias e pretensões.
Inicialmente, durante a época dos primeiros sultões, quando o Império Otomano precisou se provar para seus vizinhos como um parceiro à altura, casar-se com uma princesa (principalmente bizantina, búlgara ou sérvia) era uma forma de alcançar esse objetivo. Com o tempo, as terras das princesas foram sendo assimiladas pelo Império e, além de formalizar compromissos de proteção mútua, ter esposas cristãs (e mais de uma esposa) foi uma estratégia otomana tanto de favorecer o crescimento demográfico da população muçulmana quanto de acesso aos súditos de outros reinos. Consolidando-se como potência regional dominante, os casamentos dinásticos passaram a conviver com outra estratégia matrimonial, mais vinculada ao acesso que o sultão tinha às concubinas, capturadas no exterior (Venezianas, gregas, ucranianas, francesas, etc) e enviadas para seu harém. Nessa época, onde não houvesse contratos matrimoniais oficiais, uma mulher era considerada casada se a ela fosse dada uma propriedade para sustento próprio como seu dote e de seus descendentes. Posteriormente, era dado dinheiro – salários/estipêndios – baseados no quão importante eram para o Sultão. Exploremos, então, como essas duas modalidades históricas de casamento se apresentaram na história do sultanato otomano.
Filha do senhorio de Yarishar e prestes a se casar com rei de Bilecki, Olivera foi raptada no dia de seu casamento por Orhan I, filho do sultão Osman, no ano de 1299, devido ao envolvimento dos dois potentados cristãos anatólios com uma conspiração para assassinar Orhan. Como retaliação, além de tomar as terras dos dois reinos, Orhan fez de Olivera concubina sua e dando-a o nome de Nilüfer, tornando-a uma Hutan (título honorífico concedido às esposas dos sultões). Ainda hoje alvo de controvérsias historiográficas pela carga dramática da narrativa, lembrando as tramas lendárias da Guerra de Tróia e do Rapto das Sabinas, fato é que Nilüfer teria sido a primeira mulher estrangeira não-turca ou muçulmana a se casar na dinastia otomana. Segundo os relatos do viajante norte-africano Ibn Battuta, ela chegou a administrar Iznik (Niceia) durante o ano de 1331, a cidade cristã mais importante da região e considerada tão santa quanto Jerusalém, enquanto seu esposo partia em viagens itinerantes, de castelo em castelo, cuidando da integridade territorial de seus domínios. Para o viajante, tratava-se de uma mulher admirável e que era reconhecida pela sua comunidade como uma liderança. Alçou ao estatuto lendário quando se tornou Valide Sultana, ou seja, mãe do sultão Murad I e, em homenagem a ela, rios, orfanatos e até pequenas mesquitas receberam seu nome.
Orhan I também contraiu outro casamento, agora nos conformes dinásticos. Teodora Cantacuzeno, uma das três filhas do imperador bizantino João VI Cantacuzeno, foi prometida por seu pai ao sultão em janeiro de 1346, para consolidar a aliança que tinha com o emirado otomano em ascensão e para impedir que os otomanos dessem sua ajuda à imperatriz-regente, Ana de Saboia, durante uma guerra civil que estava em curso. Três anos mais tarde, o filho de Orhan, o príncipe Sulaiman, cruzou o Helesponto para tomar o preço da ajuda prometida, algumas fortalezas que facilitariam incursões otomanas na Europa. O casal bizantino-otomano teve um herdeiro, o príncipe Halil, suposto herdeiro dos dois tronos, e é dito que João VI ficou tão feliz com a união da princesa grega ao sultão, que comemorou na corte de Orhan por quatro dias. Halil viria a se casar com sua prima, outra princesa bizantina, Irene Palaiologina. Entretanto, os otomanos não eram a única casa real turca com a qual o imperador se aliou, pois este também era amigo pessoal do de Umur Ghazi, bey do beylik de Aydin, que resgatou o imperador em duas ocasiões em conflitos com outros rivais bizantinos e sérvios. Teodora permaneceu na corte otomana até a morte de Orhan em 1362, quando Murad I, o filho de Olivera, ascendeu ao trono. Depois disso, ela aparentemente retornou a Constantinopla, onde viveu com sua irmã, a Imperatriz Helena, no palácio
Murad I, por sua vez, casou-se com Kera Tamara. Ela nasceu provavelmente por volta de 1340 e é originária da dinastia búlgara medieval Sratsimir. Já em 1371, na capital do império búlgaro, Tarnovo, chegaram os embaixadores do sultão Murad para organizar suas relações com o novo imperador da Bulgária. O sultão, encantado pelos dotes físicos da pretendente e sabendo da sua viuvez, propôs que ela se tornasse sua esposa como garantia da paz entre os dois reinos. O rei Ivan Shishman, irmão de Kera, conseguiu se esquivar da vontade do sultão por sete anos, mas, em 1378, quando suas tentativas de deter os turcos falharam, Ivan relutantemente enviou Kera Tamara para o harém do sultão na capital otomana, Bursa. Importa ressaltar que ela manteve sua fé cristã, não sendo a conversão ao Islã um requisito (Alcorão 5:5).
Tempos depois, Murad I enfrentou uma coalizão político-militar de reinos cristãos eslavos na importante Batalha de Kosovo, em 1389, capitaneada pelo príncipe sérvio Lazar Hrebeljanović. Os otomanos, apesar de terem conseguido uma vitória sobre os principados sérvios, seus vassalos dai em diante, viram, pela primeira vez, um sultão morrer em campo de batalha. O príncipe Lazar, que também tombou em combate, tinha uma filha chamada Maria Olivera, da casa Lazarévic. Como medida preventiva e símbolo de paz entre os reinos, Maria foi enviada para o harém do filho de Murad, Bayezid I, quarto sultão na linha sucessória. Depois de se tornar Despina Hatun, ela aparentemente não se converteu à fé islâmica e tinha influência decisiva sobre o sultão, que priorizou a proteção tanto dos membros da sua família real quanto de seu povo, estabelecendo uma relação entre otomanos e a nobreza sérvia que duraria séculos. Murad I também veio a se casar com Maria Fadrique, regente do Senhorio de Salona, um dos últimos estados francos na Grécia remanescentes da Quarta Cruzada.
Em 1402, já no contexto da Batalha de Ancara contra Timur, Bayezid I é derrotado e capturado pelos exércitos do império Timúrida junto com seu sucessor direto, Mustafa. Essa situação, além de gerar comoção social, provocou um impasse na linha sucessória que durou 11 anos, conhecido como Interregno Otomano, e que se resolveu com a coroação de outro filho de Bayezid, Mehmed I. Sendo considerado “segundo fundador do império”, Mehmed estabilizou seus domínios junto à dinastia Candar, no norte da Anatólia, ao contrair laço matrimonial com a princesa dulkadir Emina Hatun. Já seu irmão e rival no interregno, Musa Çelebi, se casou com Arina, tia do famosíssimo Conde Drácula, Vlad Tepes, e depois batizada como Kumru Hatun, trouxe o reino da Valáquia para orbitar os interesses de Bursa.
Ainda sendo alvo do período do interregno da época de seu pai Mehmed I, Murad II teve de enfrentar seu tio Mustafa Çelebi, apoiado pelos bizantinos, e seu irmão mais novo Küçük Mustafa, apoiado pelo estados turcos independentes da Anatólia, para se manter na linha sucessória. Sobrepujando todos eles entre os anos 1420 e 1430, Murad volta-se para os bálcãs e derrota a aliança de reinos cristãos sob a batuta do reino húngaro na Segunda Batalha de Kosovo, de 1448. Nesse meio tempo, também desposa a filha do déspota sérvio Durad Brankovic, Mara. Assim como outras Hatun, Mara Despina permaneceu cristã e não há registro de conversão ao islamismo, concedendo inclusive privilégios aos cristãos ortodoxos gregos de Jerusalém e, posteriormente, à comunidade do Mosteiro de Athos, no nordeste da Grécia, via influencia politica otomana. Mesmo após a morte de seu marido em 1451, Mara continuará a exercer importante papel enquanto agente da diplomacia otomana na região dos bálcãs, além de guardar a admiração do seu enteado, o sucessor do trono Mehmed II, “O Conquistador”, que segundo as fontes tinha uma ótima relação com Mara.
Notável pelo cerco e tomada de Constantinopla no ano de 1453, Mehmed II também realizou incursões bem sucedidas contra o Despotado da Moreia, província do então império bizantino e que foi atacado entre os anos de 1458 e 1460, e contra o império trebizonda, fundado por Aleixo I logo após a Conquista de Constantinopla e que sofrera nas mãos de Mehmed II entre os anos de 1460 e 1461.
No primeiro caso, Mehmed levou para seu harém a filha do déspota Demetrios, Helena Paleóloga, também sobrinha do último imperador bizantino Constantino XI Paleólogo. Porém, ao invés de ficar no harém do sultão, Helena foi agraciada com uma pensão e uma propriedade em Adrianópolis onde viveu até sua morte de causas desconhecidas, por volta de 1469, com apenas 27 anos de idade. Já no segundo caso, Mehmed recebeu uma oferta do imperador trapezuntino, David II, para desposar sua filha Anna Megale logo após saber da queda de Constantinopla, proposta que só foi aceita pelo sultão em 1461. Entretanto, é muito pouco provável que essa relação tenha gerado frutos. Depois de sucessivas gerações de sultões otomanos, começando com Mehmed II, a prática de ter filhos com nobres estrangeiras foi ficando cada vez mais rarefeita, no intuito de evitar ao máximo qualquer interferência externa nos assuntos domésticos, e os sultões do filho de Mehmet, Bayezid II, e seu sucessor, Selim I, em diante, passaram então a extrair consortes imperiais apenas das mulheres de origem cativa. Sendo a única dinastia na Europa que foi de casar com princesas de casas reais para se casar com mulheres “comuns” das classes mais baixas possíveis (ou seja, cativas).
Referências
LOWRY, Heath W. THE NATURE OF THE EARLY OTTOMAN STATE. New York: SUNYP, 2012, p. 158
PEIRCE, Leslie P. “wives and concubines: the fourteenth and fifteenth centuries”. IN: ____________. THE IMPERIAL HAREM: Women and sovereignty in the ottoman empire. New York: Oxford University Press, 1993, p 36.
BUXTON, Anna Ivanova. THE EUROPEAN SULTANAS OF THE OTTOMAN EMPIRE. Carolina do Sul: Create Space, 2016, pp 5 – 25
FARIS, Zara. Por que historicamente o mundo islâmico não desenvolveu o seu próprio feminismo? História Islâmica. 04 janeiro 2021.