As Cruzadas salvaram a Europa de se tornar muçulmana?

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É impossível nos aproximarmos do passado de maneira solitária. Dar de cara com os acontecimentos históricos depende sempre da direção dada por alguém disposto a contá-los e, no Ocidente, quando o assunto são as Cruzadas, há sempre alguém disposto a nos dizer: “as Cruzadas conseguiram salvar a Europa Cristã da expansão destrutiva dos mouros/sarracenos/muçulmanos”. Partindo dessa orientação, estamos assumindo que havia um arranjo harmônico entre todos os cristãos do período das Cruzadas, em defesa de um projeto comum de civilização e que era contrário a um elemento externo, interessado apenas na destruição completa desse projeto. Para afirmar isso, é preciso ignorar convenientemente a presença islâmica numa Europa fraturada por disputas nada amigáveis entre reinos cristãos e que se aliavam aos muçulmanos, antes mesmo das Cruzadas.

Desde a primeira incursão de Tariq ibn Ziyad, em 711, sobre o sul da Península Ibérica (em aliança com a nobreza local, diga-se de passagem), os soldados do Califado Omíada derrotaram com facilidade os dominadores visigóticos e avançaram sem páreo até a Septimânia, região ao sul do reino franco e subjugada no ano de 720, um importante ponto de comércio marítimo, marinha de guerra e pirataria a partir de então. Mesmo após a glorificada Batalha de Poitiers em 732, com a vitória dos francos sobre uma mera razia omíada, os muçulmanos continuaram avançando na Gália Franca até 759, quando efetivamente abandonaram a Septimânia diante da unificação territorial de Pepino, o Breve, além de questões internas relacionadas à disputa em território islâmico.

No meio desse caminho, importa ressaltar o papel do Ducado da Aquitânia, região vizinha à Septimânia e que sofreu constantemente com as razias e invasões mouras em suas terras. Percebendo as constantes movimentações militares dos omíadas, o duque Odo foi obrigado a se aliar a um governante rebelde na Catalunha Islâmica, Uthman ibn Naissa, confiando sua própria filha ao senhor berbere, em 730, haja vista que não havia recebido qualquer indicativo de ajuda por parte de Carlos Martel, duque dos francos à época e soberano de facto do reino. Ou seja, não só as autoridades daquele tempo estavam alheias a qualquer percepção de uma ameaça de aniquilação à “civilização cristã”, como também desavenças locais foram mais decisivas na formação do arranjo geopolítico do que uma ameaça externa. Muito menos houveram batalhas “finais” onde, por puras vitórias em campo, avanços islâmicos foram barrados.

Além disso, pequenos emirados islâmicos foram fundados por líderes militares e viajantes do mundo muçulmano na Europa, servindo aos interesses locais. O potentado islâmico de Taranto (840-883) foi uma base de assalto para razias nos interiores da Itália, fornecendo soldados mercenários para as guerras entre os principados lombardos do sul, de Benevento a Salerno, e entre estes e as hostes bizantinas. Essa mesma situação de instabilidade lombarda-bizantina foi favorável para a consolidação de outro emirado, o de Bari (847-871), na região da Apúlia. Fundado por um líder militar berbere, Khalfun, assume proeminência sob o reinado de Sawdan a partir de 857, quando o Califado Abássida reconhece oficialmente esse território como membro vassalo de seus domínios. Crônicas cristãs e hebraicas da época relatam a garantia de salvo-conduto para quem quisesse peregrinar à cidade santa de Jerusalém e que Sawdan mantinha boas relações com o estudioso judeu local, o rabino Abu Aaron, sendo inclusive uma época de muito prosperidade econômica.

Fundado em 890 por 20 aventureiros de Al-Andalus, que aportaram na região de Provença, temos o Emirado de Fraxineto (Fraxineto vem do latim “Fraxinetum”, pequeno forte). Por meio de um acordo firmado em 924 com Hugo, duque de Provença, o emirado, além de consolidar a presença entre os provençais (que não os viam como inimigos), conseguiu formalmente o controle dos Alpes Suíços em troca de suporte militar ao duque. Com isso, Hugo garantiu o apoio do poderoso califa árabe-basco Abdul Rahman III de Córdoba na Espanha, um possível aliado contra ameaças vindas do norte. As rotas comerciais floresceram, conectando Fraxineto a Genebra, Lyon e ao norte da Itália. A influência cultural transcendeu as fronteiras do comércio: Palavras como “aceituna” e “alcazar” se incorporaram ao idioma provençal, eternizando a presença muçulmana. O padrão de alianças políticas pragmáticas ininterruptas entre cristãos e muçulmanos na Europa Medieval também foi altamente prolífico na Península Ibérica, e ocorreram em todos os séculos, do VIII ao XV, onde a “Reconquista” era travada por décadas quando um rei cristão considerava que salvar aliados muçulmanos de inimigos mútuos era mais interessante de que expulsar os mouros, e o contrário, de líderes muçulmanos ajudando a tomar bastiões islâmicos para os cristãos também era muito comum (as alianças entre monarquias islâmicas e cristãs com objetivos comuns na Europa irão durar até a Primeira Guerra Mundial, diga-se de passagem).

Esse cenário complexo se estende até um século antes da época das Cruzadas, que foram campanhas militares iniciadas entre a última década do século XI e meados do XIV, com motivações que transcendem a mera proteção da Europa. Embora o discurso do Papa Urbano II no Concílio de Clermont (1095) tenha destacado a necessidade de auxiliar o Império Bizantino contra os Seljúcidas e libertar a Terra Santa, dando início oficial à Primeira Cruzada (1095 – 1099), o Concílio tratou, em grande parte, de questões internas, como reformas monásticas na Igreja e a tentativa de resolução de conflitos entre os próprios francos. Urbano, o próprio organizador das Cruzadas, não menciona em momento algum a iminência de uma tomada islâmica ou um avanço islâmico na Europa e os bizantinos a serem ajudados também enviavam missivas de apelo a reinos muçulmanos quando precisavam lidar com inimigos cristãos vindos da Europa.

Os alauitas, seita xiita que surge na Síria no século IX com as ideias sincréticas de Muhammad ibn Nusayr, tentando sobreviver às perseguições de seus adversários sunitas, direcionam seu proselitismo para os cristãos nestorianos e siríacos da época, adaptando para sua doutrina termos teológicos e feriados cristãos. Durante as Cruzadas, muitos “nusayritas” foram mortos quando os cruzados europeus tomaram o Monte Líbano. No entanto, logo compreenderam que o estranho povo não era de fato “sarraceno”, muçulmano, e passaram a forjar alianças com os sheikhs nusairis. Através dessa parceria, os nusairitas reconquistaram muitos castelos na região que ainda estavam sob poder dos ismaelitas e dos sunitas.

A realização de Cruzadas frequentemente aprofundou divisões entre os próprios cristãos. A Quarta Cruzada (1202–1204) é um exemplo claro, com o saque de Constantinopla por cruzados contratados por Veneza, que resultou em um golpe devastador contra o Império Bizantino. Essa ação, embora dirigida contra cristãos ortodoxos, enfraqueceu a principal barreira politica da Europa Ocidental contra a alegada “ameaça dos infiéis” e até auxiliou o avanço muçulmano no Mediterrâneo Oriental. Em muitos episódios, o objetivo principal declarado das Cruzadas (a conquista da Terra Santa) sofreu diversos reveses ou mudou de objetivo: A Terceira Cruzada (1189–1192), apesar de alguns sucessos como a retomada de Acre e Jaffa, não conseguiu recuperar Jerusalém, terminando com acordo diplomático de retirada com o sultão aiúbida Saladino; os ataques cruzados contra o Cairo, visando a posterior reconquista de Jerusalém, como nas campanhas na Quinta Cruzada (1217–1221), falharam fragorosamente.

Se levarmos em consideração apenas as expedições/peregrinações militares cujo objetivo explícito consistia na reconquista da Terra Santa, há um total de 18 cruzadas entre as principais e as secundárias. Dessas, apenas duas podem ser contabilizadas como vitórias propriamente ditas: A Primeira Cruzada, que inaugura os estados cruzados (Reino de Jerusalém, Principado de Antioquia, Condado de Edessa e Condado de Trípoli), e a chamada Cruzada Veneziana (1122 – 1124), que resultou na captura de Tiro do atabeg (governante seljúcida) damasceno Toghtekin e na retomada mais aproximada das fronteiras de Jerusalém. Todas as demais redundaram em fracassos ou concessões diplomáticas dos governos muçulmanos, representando um percentual de mais de 90% de sucesso para o lado dos “sarracenos”. Ou seja, como derrotas sistemáticas e continuas, objetivos militares fracassados seguidos de avanço inimigo podem representar algum impeditivo ao domínio muçulmano sobre a Europa? Continuamos sem respostas satisfatórias…

Mas o discurso das “batalhas salvíficas” perdura mesmo após as expedições cruzadistas, como, por exemplo, na Batalha de Lepanto (17 de outubro de 1571). A vitória da Santa Liga, formada por uma coalizão liderada pelo Papa Pio V, mostrou-se um triunfo militar relevante sobre a marinha otomana, impulsionada por inovações no campo militar, como as das galeaças venezianas, navios que combinavam mobilidade e poder de fogo. Apesar do impacto inicial, a vitória não foi suficiente para neutralizar o poder otomano no Mediterrâneo Oriental: Em apenas dois anos, os otomanos consolidaram ganhos significativos, como a anexação de Chipre e a imposição de pesadas indenizações a Veneza, que debilitaram financeiramente a potência marítima italiana que “ganhou” em Lepanto. Além disso, as campanhas subsequentes, como a retomada de Túnis (1574) e o apoio à conquista de Fez (1576), ampliaram a influência otomana no norte da África, havendo inclusive incursões contra territórios sob controle europeu, como Lanzarote (1585), Lundy (1625) e Madeira (1617) no Atlântico. Esses avanços revelam o alcance global das operações otomanas, que reforçaram o desafio ao equilíbrio de poder europeu muito além das águas mediterrâneas.

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Representação da Batalha de Lepanto

E para finalizar a questão, os otomanos, mesmo após as sucessivas Cruzadas, seguiram anexando territórios da Europa ao domínio islâmico até 1529 em Viena na Áustria (tomando partes dos atuais Montenegro, Albânia, Macedônia, Kosovo, Sérvia, Grécia, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Hungria, Romênia, Geórgia, Bulgária e Ucrânia). Portanto, as Cruzadas não tinham como objetivo “salvar a Europa do Islã”, e se mesmo assim houver insistência no ponto, após elas, o mundo islâmico teve sua maior extensão na Europa da história. Portanto elas não só não foram, como também não salvaram.

Referências

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GAIÃO, Pedro. POITIERS NÃO SALVOU NADA: Conheça a Septimania, o enclave muçulmano da França Medieval. Disponível em: Portal História Islâmica. Acesso em: 11/12/2024

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