Arthur Ruppin e o sonho sionista de pureza racial

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Na história do movimento sionista podemos encontrar absolutamente de tudo: seculares, religiosos, revisionistas, pessoas de direita e pessoas à esquerda. Apoiadores e opositores do massacre corrente em Gaza; cristãos e judeus e até mesmo pessoas que sequer conhecem o sionismo mas se identificam de alguma forma, por vezes devido ao apoio genérico dado a um “Estado para o povo judeu”. Independentemente de qual corrente determinado indivíduo escolha se filiar ou como ele define sionismo, como todo movimento há figuras centrais e paradigmáticas que transcendem essas “caixinhas” compartimentadas e se tornam conhecidas por todos devido a sua importância na história, como o próprio Theodore Herzl ou ainda o pensador que veremos hoje: Arthur Ruppin.

Arthur Ruppin é uma das figuras mais centrais e, ao mesmo tempo, complexas do movimento sionista. Frequentemente chamado de “o pai do assentamento sionista”, ele foi o principal arquiteto da colonização judaica na Palestina a partir de 1908. No entanto, por trás de sua imagem de burocrata pragmático e planejador visionário, encontramos teorias raciais e eugênicas que não apenas moldaram sua abordagem, mas também deixaram uma marca profunda e duradoura na estrutura da sociedade israelense que ecoam até os dias de hoje com polêmicas raciais em Israel.

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Arthur Ruppin em 1915.

A visão de mundo de Ruppin foi forjada em sua experiência como um judeu assimilado na Alemanha do final do século XIX. Ele internalizou muitos dos estereótipos antissemitas da época, desenvolvendo um profundo desconforto com a “judiaria” (Judentum) e uma admiração pela cultura e “espírito” alemães. Essa crise de identidade o levou a buscar uma solução científica (ou melhor dizendo, pseudocientífica) para o que ele via como a degeneração do povo judeu, encontrando-a nas teorias do darwinismo social e da eugenia, que estavam em voga na Europa.

Para Ruppin, a regeneração judaica não era apenas uma questão de retorno à terra, mas um projeto biológico de purificação racial. Ele acreditava que os judeus haviam se tornado uma raça inferior e que apenas uma “seleção artificial” e a criação de um novo tipo de judeu poderiam salvá-los. Ele dividia os judeus em diferentes “sub-raças”, estabelecendo uma hierarquia clara que ecoava as teorias raciais europeias da época.

No topo da hierarquia racial de Ruppin estavam os judeus Ashkenazi da Europa Oriental e, portanto, o mais desejável para a construção da nova nação. Em contraste, ele via os judeus sefarditas e Mizrahim (orientais), incluindo os do Iêmen e de outros países, como racialmente degenerados por sua “mistura” com elementos semitas, que ele considerava inferiores.

Colonos judeus russos da Segunda Aliyah almoçando nos campos de Migdal, 1912. 

Como diretor do Escritório da Palestina da Organização Sionista, Ruppin transformou essas teorias em política prática. Ele implementou um sistema de seleção rigoroso para a imigração (Aliá ou aliyah), priorizando jovens Ashkenazim saudáveis e capazes de trabalho físico, a quem ele se referia como “material humano” (Menschenmaterial). Essa política de seleção era explicitamente eugênica, visando criar um novo Volkskörper (corpo do povo) na Palestina, segundo aponta Bloom (2011) citando diretamente trechos de escritos do próprio Ruppin.

A imigração dos judeus iemenitas entre 1908 e 1910 é um exemplo claro da aplicação dessas teorias. Ruppin e outros líderes sionistas viram nos iemenitas uma solução para a “questão do trabalho árabe”. Eles eram considerados trabalhadores naturais, capazes de realizar trabalho manual pesado por salários baixos, substituindo os trabalhadores árabes sem competir com os Ashkenazi, que eram destinados a tarefas mais “dignas”. Essa visão os desumanizava, tratando-os como uma mera força de trabalho barata.

Família de judeus iemenitas na Palestina, 1910.

Segundo Mikhael Elbaz (1980), esses iemenitas foram incentivados por emissários do Sionismo Trabalhista a ir para a Palestina, onde foram colocados para trabalhar como trabalhadores agrícolas. Já na Palestina, dada a falta de vontade dos Sionistas Trabalhistas em empregar não-judeus, era uma solução para o dilema colocado pela disponibilidade de trabalhadores palestinos como mão de obra barata e pelo desinteresse dos judeus europeus em trabalhos manuais com baixos salários.

Essa política teve consequências trágicas. A operação de imigração dos judeus do Iêmen, mais tarde batizada como “Operação Tapete Mágico”, foi marcada por negligência e desastre. No verão de 1949, centenas de pessoas perderam suas vidas a caminho de Israel e a grande maioria dos sobreviventes chegou com problemas de saúde. Muitos deles morreram nas rotas do Iêmen, mas centenas morreram depois de deixar o Iêmen, no território de Aden. 

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Judeus iemenitas partindo de Áden a caminho de Israel vindos de Áden no contexto da Operação Tapete Mágico.

Essa desvalorização dos judeus iemenitas é o pano de fundo para um dos traumas mais profundos da sociedade israelense: o “Caso das Crianças Iemenitas”. Entre 1948 e 1950, centenas de bebês e crianças pequenas, a maioria de famílias iemenitas e Mizrahim, desapareceram de hospitais e campos de imigrantes. A crença generalizada entre as famílias é que seus filhos foram sequestrados e entregues para adoção a famílias Ashkenazi sem filhos, um crime facilitado pela visão de que os pais iemenitas eram “primitivos” e incapazes de cuidar de seus próprios filhos. Segundo Tova Gamliel e Haim Hazan (2021): 

Há mais de 1000 casos oficiais relatados de bebês e crianças desaparecidas, enquanto as estimativas dos defensores chegam a 4500. Suas famílias acreditam que os bebês foram sequestrados pelas autoridades israelenses e ilegalmente colocados para adoção por famílias ashkenazis sem filhos — judeus de ascendência europeia. Durante muito tempo, a explicação oficial sustentou que as famílias adotivas ficaram com os bebês porque seus pais biológicos não os procuraram ou não puderam cuidar deles no caos dos campos de transição. De acordo com uma explicação alternativa, os bebês foram deliberadamente levados a clínicas ou hospitais, precisassem ou não de cuidados médicos, e foram entregues a famílias israelenses intencionalmente (HAZAN; GAMLIEL, 2021, p. 450).

No que diz respeito aos judeus etíopes, a posição de Ruppin foi ainda mais extrema e explícita. Ele se opôs veementemente à sua imigração, argumentando que eles não tinham nenhuma ancestralidade sanguínea com o povo judeu, tendo entrado no judaísmo pela espada. Em suas anotações, chegou a usar termos depreciativos e racistas para descrevê-los [1]. Para Ruppin, a pureza racial da nova nação hebraica não podia ser comprometida pela inclusão de judeus negros.

As ideias eugênicas de Ruppin não desapareceram com a fundação do Estado. Elas ecoam em políticas posteriores, como o escândalo da Depo-Provera, no qual mulheres imigrantes etíopes receberam injeções contraceptivas sem seu consentimento. A política visava controlar a taxa de natalidade de uma população considerada indesejável, uma continuação lógica do pensamento de Ruppin sobre a necessidade de gerenciar a demografia racial do Estado de Israel, conforme artigo de Bayan Abusneineh (2021) no Feminist Review.

Caso não bastassem suas ideias, um dos aspectos mais perturbadores da biografia intelectual de Ruppin é sua relação com Hans F. K. Günther, um dos principais ideólogos raciais do Partido Nazista e uma influência intelectual para figuras como Heinrich Himmler, ninguém menos que um dos principais responsáveis pelo Holocausto. 

Em 1933, pouco depois de Hitler chegar ao poder, Ruppin encontrou-se com Günther. O encontro foi amigável, e Ruppin registrou em seu diário que ambos concordavam em muitos pontos, incluindo a ideia de que os judeus não eram inferiores, mas “diferentes”, e que a questão judaica deveria ser resolvida de forma “decente”, segundo Bloom (2011).

Deutsche Biographie - Günther, Hans F. K.

Günther teve grande influência no pensamento racialista do nazismo.

Ainda para citarmos a obra de Etan Bloom, essa colaboração se insere no que o historiador chama de “Nazistas de solução primária”. Este grupo, que incluía muitos sionistas e nazistas nos primeiros anos do regime, via a remoção dos judeus da Alemanha para a Palestina como a solução ideal para a famigerada questão judaica. Ambos os lados compartilhavam o objetivo da separação étnica, o que para os sionista representava a construção de uma nação; já para os nazistas, tornar a Alemanha Judenrein (livre de judeus).

O resultado mais concreto dessa aliança de interesses foi o Acordo de Transferência (Haavara), firmado em 1933. O acordo permitiu que dezenas de milhares de judeus alemães emigrassem para a Palestina, transferindo parte de seus bens na forma de mercadorias alemãs. O acordo foi vital para a economia do Yishuv (a comunidade judaica na Palestina), fortalecendo-o imensamente, ao mesmo tempo em que servia aos objetivos nazistas de expulsão dos judeus e quebrava o boicote econômico internacional contra a Alemanha. O próprio Ministério do Interior nazista reconheceu a importância crucial do acordo em um memorando de 1937.

Após o Holocausto, a historiografia israelense tendeu a minimizar ou ignorar completamente o lado eugenista e racial do pensamento de Ruppin. Sua colaboração com figuras nazistas e a base racial de suas políticas de assentamento tornaram-se um tópico embaraçoso, que contradizia a narrativa de um movimento sionista puramente idealista e vítima do antissemitismo, como bem apontou Tom Segev (2009) em artigo no Haaretz – vale lembrar que Segev é um nome importantíssimo na historiografia israelense, em especial da escola dos Novos Historiadores. 

Apesar dessa tentativa de minimizar ou ignorar o legado obscuro de Ruppin, seu “sonho” de pureza racial chegou tão longe nas entranhas do Estado israelense que ecoou em uma lei de 2011. A “Lei dos Comitês de Admissão” formalizou o poder de comitês locais em “cidades comunitárias”, muitas das quais construídas em terras estatais, para selecionar e rejeitar residentes com base em critérios vagos e subjetivos como a “adequação social” e a compatibilidade com o “tecido social e cultural” da comunidade. Na prática, este mecanismo funciona como uma ferramenta legal para filtrar e excluir cidadãos palestinos de Israel, institucionalizando a segregação racial em centenas de cidades e aldeias. A visão eugênica de Ruppin, que defendia a seleção de “material humano” e a criação de enclaves racialmente homogêneos, chegou tão longe que ainda está entre nós em pleno século XXI.

Criticados por organizações de direitos humanos como uma forma de discriminação contra os cidadãos árabes de Israel, os comitês de admissão existem há décadas nos kibutzim e moshavim sob a direção da Israel Land Authority (ILA). Formalizada em 2011 pelo Knesset (assembleia legislativa israelense), quando foi aprovada a lei estipulando que localidades no Negev e na Galiléia com menos de 400 residências permanentes têm permissão para operar comitês de admissão, em 2023 outra lei aumentou esse número para 700 residências permanentes e permite que comitês de admissão operem fora do Negev e da Galiléia em cidades designadas como “áreas de prioridade nacional”, que recebem benefícios habitacionais e de infraestrutura do governo.

Defensores dessa medida, como políticos da ala direitista e do partido Sionista Religioso (Mafdal–RZ) argumentam que dessa maneira pode-se proteger o “tecido único” da comunidade, bem como a sua expansão. Itamar Ben-Gvir (Otzma Yehudit) declarou que a nova lei “fortalecerá o Negev e a Galileia, fortalecerá regiões afastadas e trará grandes notícias para todo o povo de Israel”. Outros membros do partido de Ben-Gvir ecoam a mesma ideia, mencionando mais uma vez o argumento do “tecido social”, como é o caso de Yitzhak Kreuzer, o idealizador da nova lei.

Como podemos ver, o legado de Arthur Ruppin, portanto, é o da própria contradição fundadora do sionismo prático, um amálgama de correntes de pensamentos e pessoas que vez ou outra precisam ser jogados para escanteio apesar de sua importância na história de Israel e do movimento sionista. Apesar da tentativa de alguns dentro de Israel em se dissociar de suas ideias eugenistas, conforme apontou Segev em 2009, a própria “câmara” israelense aprovou uma lei segregadora que basicamente ressuscita as ideias de Ruppin – se é que elas chegaram a morrer –, inclusive ampliando seu escopo pouco mais de 10 anos depois. Os galhos dessa árvore envenenada de um “sionismo eugenista” continuam dando frutos amargos, e ao que tudo indica não parece haver ninguém em Israel com a capacidade de cortar esse mal pela raiz.

Notas

[1] Evidentemente não iremos transcrever tais termos para o artigo, mas eles podem ser encontrados no livro de Etan Bloom (2011), como por exemplo na página 104 onde há uma citação se valendo da tal “n-word” no seu formato mais ofensivo.

Referências

ABUSNEINEH, B. (Re)producing the Israeli (European) body: Zionism, Anti-Black Racism and the Depo-Provera Affair. Feminist review, v. 128, n. 1, p. 96–113, 2021.

BLOOM, E. Arthur Ruppin and the production of pre-Israeli culture. Brill Academic, 2011.

ELBAZ, M. Oriental Jews in Israeli society. MERIP reports, n. 92, p. 15, 1980.

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SEGEV, Tom. The Makings of History: Revisiting Arthur Ruppin. Haaretz, 2009. Disponível em: <https://www.haaretz.com/2009-10-08/ty-article/the-makings-of-history-revisiting-arthur-ruppin/0000017f-dc90-db5a-a57f-dcfae53c0000?mid5036=open>. Acesso em 14 jul. 2025.

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