Como muitos de nossos seguidores devem ter ficado sabendo, uma comissão de inquérito independente, mandatada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, concluiu que Israel é responsável pela prática de genocídio na Faixa de Gaza. A “Comissão de Inquérito Internacional Independente da ONU sobre o Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental, e Israel” baseou suas descobertas em meses de investigações, entrevistas e análise de provas, afirmando que há uma clara intenção de destruir os palestinos em Gaza, uma acusação que o governo israelense rejeita veementemente. A investigação representa uma das mais severas condenações das ações de Israel desde o dia 7 de outubro.
A comissão não é um órgão da ONU propriamente dito, mas um painel de especialistas independentes nomeados pelos 47 Estados-membros do Conselho de Direitos Humanos. Presidida por Navi Pillay, uma jurista sul-africana com vasta experiência, incluindo a presidência do tribunal internacional sobre o genocídio de Ruanda, a comissão tem o mandato de investigar violações do direito internacional humanitário. Seus relatórios, embora não sejam juridicamente vinculativos, possuem grande peso e podem ser utilizados como fonte subsidiária de direito internacional em processos judiciais, como o caso movido pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ).
Navi Pillay: “O comitê concluiu que Israel cometeu genocídio contra o povo palestino”
A base legal para a acusação de genocídio é a Convenção sobre Genocídio de 1948, que define o crime como atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. O relatório concluiu que Israel cometeu quatro dos cinco atos definidos pela convenção: (i) assassinatos; (ii) danos físicos e mentais graves; (iii) imposição deliberada de condições de vida calculadas para provocar a destruição física do grupo; e (iv) imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos. A única atrocidade não comprovada foi o deslocamento forçado de crianças de um grupo para outro.
Um dos atos mais chocantes e que evidencia a intenção de impedir nascimentos foi o ataque à clínica de fertilização in vitro Al-Basma, a maior de Gaza. A ação destruiu cerca de 4.000 embriões e 1.000 amostras de espermatozoides e óvulos não fertilizados. Este ato específico é visto pelos especialistas como uma medida clara e deliberada que visa impedir a continuidade da vida palestina na região, indo além da destruição física imediata e atacando o futuro do grupo.
O laboratório onde os óvulos eram fertilizados na clínica Al-Basma foi destruído.
A escala da destruição física e humana é avassaladora e serve como pilar para a acusação. O relatório da Anistia Internacional, que corrobora as conclusões da ONU, aponta que até julho de 2024, cerca de 63% de todas as estruturas em Gaza haviam sido danificadas ou destruídas. A organização estimou que, em média, um prédio foi danificado ou destruído a cada 17 metros.
O número de mortos, que segundo as fontes ultrapassa 64 mil pessoas, inclui mais de 18 mil crianças. Além disso, a destruição sistemática de hospitais, escolas e infraestrutura básica reforça a alegação de que as condições de vida foram deliberadamente tornadas insustentáveis. Como abordamos em artigo recente, o ex-chefe da IDF, Herzi Halevi, falou em cerca de 200 mil mortos e feridos em Gaza. Poderíamos mencionar ainda as centenas de milhares de pessoas em estado de fome ou próximo disso, segundo relatório da IPC publicado no mês passado.
Centenas de pessoas foram mortas, incluindo profissionais de saúde em ataques israelenses ao Hospital al-Shifa.
Entretanto, para configurar genocídio não bastam os atos; é preciso provar a “intenção especial” (dolus specialis) de destruir o grupo. A comissão da ONU encontrou essa intenção em declarações diretas de altas autoridades israelenses. O relatório cita o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que prometeu transformar Gaza em “escombros”; o então ministro da Defesa, Yoav Gallant, que afirmou estar lutando contra “animais humanos”; e o presidente Isaac Herzog, que declarou que “uma nação inteira” era responsável pelo ataque de 7 de outubro. Para a comissão, essa retórica desumanizante constitui prova direta da intenção genocida.
Além das declarações, a comissão concluiu que a intenção genocida era a “única inferência razoável” que poderia ser extraída do padrão de conduta das forças israelenses. Isso inclui o “assassinato intencional e sérios danos a um número sem precedentes de palestinos usando munições pesadas”, ataques sistemáticos a edifícios religiosos e educacionais, a imposição de um cerco total e a submissão da população à fome. A combinação de retórica de extermínio com ações militares de escala e escopo desproporcionais solidificou a conclusão do painel.
A resposta de Israel foi de rejeição total, evidentemente. O embaixador israelense na ONU em Genebra, Danny Meron, classificou as descobertas como “pinçadas a dedo” e parte de uma narrativa que serve ao “terrorismo” para “deslegitimar e demonizar o estado de Israel”. O governo israelense argumenta que suas ações são de autodefesa, visam desmantelar o “terrorismo” e são conduzidas em conformidade com o direito internacional, negando veementemente qualquer intenção genocida e acusando a comissão de parcialidade e de se basear em falsidades.
A fome como arma de guerra é um dos elementos mais brutais destacados. De acordo com a OCHA, a ala de coordenação de ajuda da ONU, a fome já foi confirmada na Cidade de Gaza. A imposição de um “cerco total”, que bloqueia ajuda humanitária, alimentos, água e medicamentos, é citada como uma das “condições de vida projetadas para provocar destruição”. A fome não é um subproduto trágico da guerra, mas, segundo a análise da comissão, uma ferramenta deliberadamente imposta para acelerar a destruição física dos palestinos. Podemos ver isso nas interceptações que Israel já realizou contra flotilhas levando ajuda humanitária para Gaza.
Tanques israelenses no lado israelense da fronteira com Gaza, em 1º de setembro de 2025.
Por fim, o relatório enfatiza a obrigação legal de todos os outros Estados de agir. Sob a Convenção do Genocídio, todas as nações têm o dever de “prevenir e punir o crime de genocídio”. A comissão alerta que a inação diante de sinais claros e evidências de genocídio equivale à cumplicidade. Isso coloca uma pressão imensa sobre os aliados de Israel, especialmente aqueles que fornecem armas, pois a continuidade desse apoio pode ser interpretada como uma violação de suas próprias obrigações legais internacionais, tornando-os cúmplices no genocídio.
Referências:
ANISTIA INTERNACIONAL. RELATÓRIO DA ANISTIA INTERNACIONAL DENUNCIA GENOCÍDIO EM GAZA. Anistia Internacional Brasil, 2025.
GRITTEN, David. Israel has committed genocide in Gaza, UN commission of inquiry says. BBC News, 2025.
IHU UNISINOS. O que diz o relatório encomendado pela ONU sobre o genocídio de Gaza, quais são suas implicações e por que ele é importante. Instituto Humanitas Unisinos, 16 set. 2025.
REUTERS. How did a UN inquiry find genocide has been committed in Gaza?. Reuters, 18 set. 2025.
UN NEWS. Gaza: Top independent rights probe alleges Israel committed genocide. United Nations, 2025.