Texto de Chris Hedges, tradução de Guilherme Freitas.
Quase todos os estudiosos do Holocausto, que veem em qualquer crítica a Israel uma traição ao Holocausto, se recusaram a condenar o genocídio em Gaza. Nenhuma das instituições dedicadas a pesquisar e comemorar o Holocausto traçou os paralelos históricos óbvios ou denunciou o massacre em massa de palestinos.
Os estudiosos do Holocausto, com um punhado de exceções, expuseram seu verdadeiro propósito, que não é examinar o lado sombrio da natureza humana, a assustadora propensão que todos nós temos de cometer o mal, mas sim santificar os judeus como vítimas eternas e absolver o estado etnonacionalista de Israel dos crimes de colonialismo de povoamento, apartheid e genocídio.
O sequestro do Holocausto, a falha em defender as vítimas palestinas porque são palestinas, implodiu a autoridade moral dos estudos sobre o Holocausto e dos memoriais do Holocausto. Eles foram expostos como veículos não para prevenir o genocídio, mas para perpetuá-lo; não para explorar o passado, mas para manipular o presente.
Qualquer reconhecimento tímido de que o Holocausto pode não ser propriedade exclusiva de Israel e de seus apoiadores sionistas é rapidamente silenciado. O Museu do Holocausto de Los Angeles deletou um post no Instagram que dizia: “‘NUNCA MAIS’ NÃO PODE SIGNIFICAR APENAS NUNCA MAIS PARA OS JUDEUS” após uma reação negativa. Nas mãos dos sionistas, “nunca mais” significa precisamente isso, nunca mais apenas para os judeus.
Aimé Césaire, em “Discurso sobre o Colonialismo,” escreve que Hitler pareceu excepcionalmente cruel apenas porque presidiu “a humilhação do homem branco,” aplicando à Europa os “procedimentos colonialistas que até então haviam sido reservados exclusivamente aos árabes da Argélia, aos cules da Índia e aos nègres d’Afrique.”
Foi essa distorção do Holocausto como algo único que incomodou Primo Levi, que esteve preso em Auschwitz de 1944 a 1945 e escreveu “É Isto um Homem?” [nome que recebeu em português a obra Survival in Auschwitz]. Ele era um crítico ferrenho do estado de apartheid de Israel e de seu tratamento aos palestinos. Ele via a Shoah como “uma fonte inesgotável de mal” que “se perpetua como ódio nos sobreviventes, e brota de mil maneiras, contra a vontade de todos, como sede de vingança, como colapso moral, como negação, como cansaço, como resignação.”
Ele deplorava o “maniqueísmo,” daqueles que “evitam a nuance e a complexidade” e que “reduzem o rio dos acontecimentos humanos a conflitos, e os conflitos a dualidades, nós e eles.” Ele advertiu que a “rede de relações humanas dentro dos campos de concentração não era simples: não podia ser reduzida a dois blocos, vítimas e perseguidores.” O inimigo, ele sabia, “estava do lado de fora, mas também do lado de dentro.”
Levi escreve sobre Mordechai Chaim Rumkowski, um colaborador judeu que governou o gueto de Lodz. Rumkowski, conhecido como “Rei Chaim,” transformou o gueto em um campo de trabalho escravo que enriqueceu os nazistas e a si mesmo. Ele deportou oponentes para campos de extermínio. Ele estuprou e molestou meninas e mulheres. Exigia obediência inquestionável e personificava o mal de seus opressores. Para Levi, ele era um exemplo do que muitos de nós, sob circunstâncias semelhantes, somos capazes de nos tornar.
Gueto de Lodz, Litzmannstadt, Mordechai Chaim Rumkowski, chefe do Conselho de Anciãos, se encontra com oficiais alemães em uma rua do gueto, Polônia, 1940, Segunda Guerra Mundial. (Foto de: Dukas/Universal Images Group via Getty Images)
“Todos nós nos espelhamos em Rumkowski, sua ambiguidade é a nossa, é nossa segunda natureza, nós, híbridos moldados de barro e espírito,” escreveu Levi em “Os Afogados e os Sobreviventes”. “A febre dele é a nossa, a febre da nossa civilização ocidental que ‘desce ao inferno com trombetas e tambores,’ e seus adornos miseráveis são a imagem distorcida de nossos símbolos de prestígio social.”
“Como Rumkowski, nós também estamos tão deslumbrados pelo poder e pelo prestígio que esquecemos nossa fragilidade essencial,” acrescenta Levi. “Querendo ou não, nos conformamos com o poder, esquecendo que estamos todos no gueto, que o gueto é murado, que fora do gueto reinam os senhores da morte e que logo ali perto o trem está esperando.”
Essas amargas lições do Holocausto, que alertam que a linha entre a vítima e o algoz é extremamente tênue, que todos nós podemos voluntariamente nos tornarmos carrascos, que não há nada intrinsecamente moral em ser judeu ou um sobrevivente do Holocausto, são o que os sionistas buscam negar. Levi, por essa razão, era persona non grata em Israel.
Os estudos sobre o Holocausto, que explodiram na década de 1970 e foram personificados pela deificação do sobrevivente do Holocausto e fervoroso sionista Elie Wiesel — o crítico literário Alfred Kazin o chamou de “Jesus do Holocausto” — agora renunciaram a qualquer pretensão de defender verdades universais. Esses estudiosos do Holocausto usam um mal de referência, como aponta Norman Finkelstein, “não como uma bússola moral, mas como uma clava ideológica.” O mantra “Não compare,” escreve Finkelstein, “é o mantra dos chantagistas morais.”
Os sionistas encontram no Holocausto e no estado judeu um senso de propósito e significado, bem como uma superioridade moral enjoativa. Após a guerra de 1967, quando Israel tomou Gaza e a Cisjordânia, Israel, como Nathan Glazer observou, tornou-se “a religião dos judeus americanos.”
Os estudos sobre o Holocausto se baseiam na falácia de que um sofrimento único confere um direito único. Esse sempre foi o propósito do que Finkelstein chama de “A Indústria do Holocausto.”
“O sofrimento judeu é retratado como inefável, incomunicável e, ainda assim, sempre a ser proclamado,” escreve o historiador europeu Charles Maier em “The Unmasterable Past: History, Holocaust, and German National Identity.” “É intensamente privado, para não ser diluído, mas simultaneamente público para que a sociedade gentia confirme os crimes. Um sofrimento muito peculiar deve ser consagrado em locais públicos: museus do Holocausto, jardins da memória, locais de deportação, dedicados não como memoriais judaicos, mas cívicos. Mas qual é o papel de um museu em um país, como os Estados Unidos, longe do local do Holocausto? … Sob que circunstâncias uma dor privada pode servir simultaneamente como luto público? E se o genocídio for certificado como um luto público, não devemos então aceitar as credenciais de outras dores particulares também? Armênios e cambojanos também têm direito a museus do holocausto financiados publicamente? E precisamos de memoriais para os Adventistas do Sétimo Dia e para os homossexuais por sua perseguição nas mãos do Terceiro Reich?”
Qualquer crime que Israel cometa em nome de sua sobrevivência — seu “direito de existir” — é justificado em nome dessa singularidade. Não há limites. O mundo é preto e branco, uma batalha sem fim contra o nazismo, que é proteiforme dependendo de quem Israel alveja. Desafiar essa sede de sangue é ser um antissemita que facilita outro genocídio de judeus.
Essa fórmula simplista não serve apenas aos interesses de Israel, mas também aos interesses das potências coloniais que realizaram seus próprios genocídios, aqueles que buscam ocultar. O que foi a aniquilação dos nativos americanos por colonos europeus, dos armênios pelos turcos, dos indianos na fome de Bengala pelos britânicos ou a fome orquestrada pelos soviéticos na Ucrânia? O que foi o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki? O Destino Manifesto é diferente da adoção pelos nazistas do conceito de Lebensraum? Esses também foram holocaustos, alimentados pela mesma desumanização e sede de sangue.
A sacralização do Holocausto nazista oferece um bizarro quid pro quo. Armar e financiar o estado de Israel, impedir que resoluções e sanções da ONU sejam adotadas para condenar seus crimes, e demonizar os palestinos e seus apoiadores, é prova de expiação e apoio aos judeus. Israel, em troca, absolve o Ocidente de sua indiferença ao sofrimento dos judeus durante o Holocausto, e a Alemanha por tê-lo perpetrado.
A Alemanha usa essa aliança profana para separar o nazismo do resto da história alemã, incluindo o genocídio que os colonos alemães realizaram contra os Nama e Herero no Sudoeste Africano Alemão, hoje a Namíbia.
“[Essa] mágica,” escreve o historiador israelense e estudioso de genocídio Raz Segal, “legitima o racismo contra os palestinos no exato momento em que Israel perpetra genocídio contra eles. A ideia da singularidade do Holocausto, portanto, reproduz, em vez de desafiar, o nacionalismo excludente e o colonialismo de povoamento que levaram ao Holocausto.”
Segal, diretor do programa de Estudos sobre Holocausto e Genocídio na Stockton University, em Nova Jersey, escreveu um artigo sobre Gaza em 13 de outubro de 2023 intitulado: “Um Caso Clássico de Genocídio” [A Textbook Case of Genocide]. Esta denúncia de um estudioso israelense do Holocausto, cujos familiares morreram no Holocausto, foi uma posição muito solitária.
Segal viu na exigência imediata do governo israelense para que os palestinos evacuassem o norte de Gaza, e na demonização de gelar o sangue contra os palestinos por parte das autoridades israelenses — o ministro da defesa disse que Israel estava “lutando contra animais humanos” — o fedor do genocídio.
“A ideia toda sobre prevenção e ‘nunca mais’ é que — como ensinamos aos nossos alunos — existem sinais de alerta que, uma vez que os notamos, devemos trabalhar para impedir o processo que poderia escalar para genocídio,” disse Segal quando o entrevistei, “mesmo que ainda não seja genocida.”
Você pode assistir à minha entrevista com Segal aqui.
“Os estudos sobre o Holocausto como campo de pesquisa podem estar mortos, o que não é necessariamente uma coisa ruim,” ele continuou. “Se, de fato, os estudos sobre o Holocausto estão entrelaçados desde o início com a ideologia da memória global do Holocausto, talvez seja bom que não tenhamos mais estudos sobre o Holocausto e talvez isso abra a porta para pesquisas ainda mais interessantes e importantes sobre o Holocausto como história, como história real.”
Segal pagou por sua coragem e honestidade. A oferta para liderar o Centro de Estudos sobre Holocausto e Genocídio da Universidade de Minnesota — que não emitiu nenhuma condenação ao genocídio — foi revogada.
Quase dois anos após o início do genocídio, a Associação Internacional de Estudiosos de Genocídio finalmente emitiu uma declaração dizendo que a conduta de Israel atende à definição legal estabelecida na Convenção da ONU sobre o Genocídio.
Mas a grande maioria dos estudiosos do Holocausto permanece em silêncio, condenando incessantemente as ações do Hamas enquanto ignora as cometidas por Israel. Eles ficaram em silêncio quando a África do Sul argumentou perante a Corte Internacional de Justiça que Israel estava cometendo genocídio. Ficaram em silêncio quando a Anistia Internacional publicou um relatório em dezembro de 2024 acusando Israel de genocídio.
“Quantos estudantes palestinos se candidatam a programas de pós-graduação em Estudos sobre Holocausto e Genocídio ao redor do mundo? Geralmente nenhum. Quantos estudiosos palestinos se identificam como especialistas nesta área? Eles também podem ser contados em uma mão,” escreve Segal em um artigo em coautoria no Journal of Genocide Research.
O genocídio está codificado no DNA do imperialismo ocidental. A Palestina deixou isso claro. O genocídio é o próximo estágio no que o antropólogo Arjun Appadurai chama de “uma vasta correção malthusiana mundial” que está “voltada para preparar o mundo para os vencedores da globalização, menos o ruído inconveniente de seus perdedores.”
O financiamento e o armamento de Israel pelos Estados Unidos e pelas nações europeias enquanto ele realiza um genocídio implodiram a ordem jurídica internacional do pós-Segunda Guerra Mundial. Ela não tem mais credibilidade. O Ocidente não pode mais dar lições a ninguém sobre democracia, direitos humanos ou as supostas virtudes da civilização ocidental.
“Ao mesmo tempo em que Gaza induz vertigem, uma sensação de caos e vazio, ela se torna para inúmeras pessoas impotentes a condição essencial da consciência política e ética no século XXI — assim como a Primeira Guerra Mundial foi para uma geração no Ocidente,” escreve Pankaj Mishra em “O Mundo Depois de Gaza.”
A capacidade de vender a ficção de que o Holocausto nazista é único, ou que os judeus têm um direito único, acabou. O genocídio prenuncia uma nova ordem mundial, na qual a Europa e os Estados Unidos, juntamente com seu procurador Israel, são párias. Gaza iluminou uma verdade sombria — a barbárie e a civilização ocidental são inseparáveis.




