A privação de alimentos, utilizada deliberadamente como instrumento de subjugação e aniquilação, representa uma das táticas mais cruéis em conflitos e ocupações. A história oferece exemplos sombrios dessa prática, sendo o Gueto de Varsóvia (Polônia) durante a Segunda Guerra Mundial um caso emblemático de como a fome foi metodicamente empregada para estrangular uma população inteira. Tragicamente, ecos dessa estratégia ressoam em crises contemporâneas, em especial na Faixa de Gaza, onde um bloqueio prolongado, intensificado drasticamente após outubro de 2023, criou condições de fome catastróficas que espelham, em método e intenção, as táticas usadas pelos nazistas e causam hoje desnutrição severa em adultos e principalmente em crianças na Palestina.
O estabelecimento do Gueto de Varsóvia em outubro de 1940 pelos ocupantes nazis alemães confinou cerca de meio milhão de judeus numa área minúscula e murada da cidade. Este ato não foi apenas de segregação física, mas o início de um processo calculado de extermínio lento através de condições de vida insuportáveis, doenças e, crucialmente, fome. As autoridades alemãs controlavam estritamente tudo o que entrava e saía do gueto, implementando políticas deliberadas para garantir que os seus habitantes não tivessem acesso a sustento adequado, transformando a fome numa política de Estado contra a população judaica ali encarcerada.
A política de fome no Gueto de Varsóvia foi meticulosamente orquestrada. As rações alimentares oficiais impostas pelos alemães eram absurdamente baixas, fixadas muito abaixo dos níveis mínimos de subsistência. Em 1941, a ração calórica diária oficial para judeus no gueto era estimada em cerca de 184 calorias, em comparação com 699 para não-judeus em geral e 2613 para alemães. Esta disparidade grotesca foi intencional, desenhada para enfraquecer e matar. Como o historiador Emanuel Ringelblum documentou secretamente no seu arquivo intitulado Oyneg Shabbos, “os invasores [alemães] queriam que os judeus passassem fome em massa” por meio de suas políticas (KASSOW, 2007, p. 475, nota nº 169).
Recentemente veio à tona um experimento realizado nessa época em Varsóvia sobre as consequências da desnutrição severa. Em fevereiro de 1942, um grupo de 28 médicos judeus, liderado por Israel Milejkowski, resolveu transformar a fome — uma condição que infelizmente não podiam evitar — em objeto de estudo científico. Com o auxílio de suprimentos obtidos por contrabando, eles deram início a uma investigação detalhada sobre os efeitos brutais da inanição no corpo humano, analisando mudanças nos sistemas metabólico, cardiovascular, ocular, imunológico, entre outros.
Mesmo enfrentando severa escassez de recursos, ameaças de morte (já que os nazistas proibiam judeus de exercerem atividades científicas) e debilitados pela própria fome, esses médicos conseguiram seguir um protocolo de pesquisa rigoroso, que incluía isolamento de pacientes, testes com glicose e até análises patológicas. De certa forma, “A Doença da Fome” — como ficou chamado o experimento —, era uma versão médica do chamado “Arquivo Oyneg Shabbos” que mencionamos acima.
Avançando para o século XXI, a Faixa de Gaza apresenta um paralelo contemporâneo perturbador: é o nosso exemplo contemporâneo de território densamente povoado, murado e faminto, sendo a Varsóvia do nosso tempo. Desde 2007, Gaza está sob um bloqueio rigoroso imposto por Israel, controlando severamente a entrada de bens, incluindo alimentos, medicamentos e materiais de construção, inclusive tendo usado a mesma tática de restrição calórica entre 2007-2010. Mesmo antes da escalada de outubro de 2023, organizações de direitos humanos (como a Human Rights Watch) e a própria ONU alertavam consistentemente que estas restrições estavam a causar insegurança alimentar crônica e a estrangular a economia e o povo de Gaza, impactando desproporcionalmente a população civil. A política israelense foi descrita pela ONU e pelas agências humanitárias como sendo uma verdadeira “prisão a céu-aberto”.
A situação piorou drasticamente após os ataques de 7 de outubro de 2023. Em resposta, Israel impôs um “cerco completo” a Gaza, cortando o fornecimento de alimentos, água, combustível e eletricidade e restringindo severamente a entrada de ajuda humanitária. Bombardeios destruíram infraestruturas civis vitais, incluindo reservas de alimentos, sistemas de água e hospitais. Relatórios de organizações internacionais, como a Oxfam, descrevem uma situação de fome catastrófica, com partes da população prestes a enfrentar condições de fome. Segundo o relatório da Oxfam, pouco após o 7 de outubro e antes das medidas israelenses mais severas: a fome está sendo usada como arma de guerra contra civis em Gaza. Reiteramos mais uma vez que a população de Gaza estava em condições de fome iminente em 2023, antes do bloqueio mais pesado de março de 2025.
O paralelo entre as táticas empregadas no Gueto de Varsóvia e as que podem ser observadas em Gaza reside na utilização deliberada da restrição de alimentos e necessidades básicas como meio de controle e subjugação de uma população civil inteira. Em ambos os casos, a escassez de alimentos não é apenas uma consequência colateral do conflito ou uma combinação de fatores igual a muitos episódios de fome na história, mas uma ferramenta central da estratégia implementada pelas autoridades no poder; faz parte da estratégia de extermínio em massa de uma população indefesa. Vale lembrar ainda que o uso da fome como arma de guerra é vedado internacionalmente e considerado crime de guerra, tanto é que o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandado de prisão contra o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, pelo cometimento de crimes de guerra.
Apesar de algum acesso humanitário, Israel continuou com restrições severas, bloqueando 56% da ajuda ao norte de Gaza em janeiro de 2024 e impedindo a entrega de alimentos a 1,1 milhão de palestinos em fevereiro do mesmo ano. Desde março de 2025, Israel bloqueou completamente a entrada de todos os suprimentos no território, tornando-se o mais longo bloqueio total até agora. A população da Faixa de Gaza corre alto risco de morrer de fome devido aos ataques aéreos e ao bloqueio israelense, bloqueio esse que inclui itens essenciais básicos (alimentos, vestuário, material de higiene) e ajuda humanitária. Atualmente, cerca de 280 mil crianças correm risco de morrerem de desnutrição. Israel continua com seu bloqueio criminoso, inclusive bombardeando cargas contendo ajuda humanitária para o povo de Gaza, como ocorreu recentemente com o navio Gaza Freedom Flotilla no começo deste mês.
A justificativa de Israel, como sempre, seria de que o Hamas teria confiscado os suprimentos e os manteve longe dos civis desesperados, o que obviamente não se sustenta. Hospitais já foram destruídos com essa justificativa, agora crianças morrem de inanição por conta desse mesmo bode expiatório. Sabe-se lá como, mas bombardear hospitais e matar pessoas de fome faz algum sentido na lógica perversa sionista, afinal de contas ninguém mais precisa de hospital se o bombardearmos com os enfermos dentro, assim como ninguém mais morrerá de fome depois que a população for completamente extinta.
A história do Gueto de Varsóvia serve como um aviso e um paralelo sombrio sobre as profundezas da desumanidade que podem ser alcançadas quando a fome é transformada numa arma de extermínio em massa. Apesar da defesa e complacência de muitos com os atos bárbaros de Israel — por vezes até com justificativas teológicas espúrias de grupos que vivem numa realidade paralela —, a história certamente não os perdoará, assim como não perdoou os algozes do povo judeu.
REFÊRENCIAS
- ASSOCIATED PRESS. Israel used “calorie count” to limit Gaza food during blockade, critics claim. The guardian, 17 out. 2012.
- BORGER, J.; ROTH, A. ICC issues arrest warrant for Benjamin Netanyahu for alleged Gaza war crimes. The guardian, 22 nov. 2024.
- GUTMAN, I. The Jews of Warsaw, 1939-1943: Ghetto, underground, revolt. [s.l: s.n.].
- Jewish doctors’ secret study of Warsaw ghetto starvation rediscovered 80 years later. Disponível em: <https://www.timesofisrael.com/jewish-doctors-secret-study-of-warsaw-ghetto-starvation-rediscovered-80-years-later/>. Acesso em: 12 maio. 2025.
- KASSOW, S. D. Who will write our history?: Emanuel ringelblum, the Warsaw ghetto, and the oyneg shabes archive. Bloomington, MN, USA: Indiana University Press, 2007.
- SHAH, A. Gaza: The Warsaw Ghetto of the 21st century. Disponível em: <https://www.ihrc.org.uk/gaza-the-warsaw-ghetto-of-the-21st-century/>. Acesso em: 12 maio. 2025.
- SHAKIR, O. Gaza: Israel’s ‘open-air prison’ at 15. Disponível em: <https://www.hrw.org/news/2022/06/14/gaza-israels-open-air-prison-15>. Acesso em: 12 maio. 2025.
- Starvation as weapon of war being used against Gaza civilians – Oxfam. Disponível em: <https://www.oxfam.org/en/press-releases/starvation-weapon-war-being-used-against-gaza-civilians-oxfam>. Acesso em: 12 maio. 2025.