A trágica história da questão palestina pode ser resumida em uma simples imagem: um povo que, ao longo de décadas, implora pelo direito de ter seu próprio Estado, apenas para ver seu território encolher, ser fragmentado e bombardeado, até que, quando pouco resta, o mundo finalmente acena com um “claro”. Esta é a representação visual da hipocrisia global, um reconhecimento tardio que parece mais como um epitáfio escrito “in memoriam” do que uma solução para um povo há décadas oprimido.
A oferta de um Estado, quando este já foi sistematicamente inviabilizado, expõe a profunda desconexão entre a diplomacia simbólica e a realidade, onde um povo assiste à destruição de seu futuro enquanto o mundo debate “formalidades”. A aceitação tardia é performática e vazia de significados, servindo mais para absolver a consciência culpada da comunidade internacional do que para garantir a soberania palestina. Após décadas de massacres, expulsões e todo o tipo de humilhação e morticínio, o “reconhecimento” vem como uma espécie de prêmio de consolação.
A supressão do direito palestino à autodeterminação não é um fenômeno recente, mas uma política deliberada que remonta ao início do século XX. O Mandato Britânico para a Palestina, estabelecido após a Primeira Guerra Mundial, é a pedra angular dessa negação e que, curiosamente, ainda possui os mesmos ‘players’ de 100 anos atrás.
Classificado como um Mandato de Classe A pela Liga das Nações, seu propósito explícito deveria ser o de guiar a população local à autogovernança e independência. Contudo, a Palestina foi a única exceção entre os mandatos desta classe; enquanto outros como Iraque e Síria alcançaram a independência, a população majoritariamente árabe da Palestina teve seus direitos políticos deliberadamente ignorados em favor do projeto colonial sionista, consagrado na famigerada Declaração Balfour.
Mandatos britânicos e franceses no Oriente Médio nos anos 1920.
O próprio texto do mandato britânico evidencia essa política, prometendo facilitar a criação de um “lar nacional judeu” enquanto se referia à esmagadora maioria da população nativa apenas como as “comunidades não-judaicas existentes” – meros empecilhos, é claro –, garantindo-lhes direitos civis e religiosos, mas omitindo crucialmente qualquer menção aos seus direitos políticos e nacionais.
Esta sabotagem continuou ao longo das décadas, assumindo novas formas, mas com o mesmo objetivo e sem perder a essência de outrora. Os Acordos de Oslo, celebrados nos anos 1990 com a promessa de paz e de uma solução de dois Estados, revelaram-se, na prática, um mecanismo para consolidar a ocupação israelense. O processo não foi uma negociação entre iguais, mas uma imposição da parte mais forte (Israel) sobre a mais fraca (a Organização para a Libertação da Palestina – OLP), cuja posição internacional estava erodida. O resultado foi a criação de “bantustões”, áreas fragmentadas e desconexas na Cisjordânia e em Gaza, que desfrutariam de um “Estado simbólico” enquanto, na prática, permaneceriam sob controle israelense. O plano de Israel, desde o início, era oferecer uma autonomia limitada, um arremedo de Estado, garantindo que uma verdadeira soberania palestina jamais se materializasse. Seria uma espécie de protetorado de milésima classe, por assim dizer.
Ao longo dos anos, os palestinos tem perdido cada vez mais controle sobre seu próprio território.
A estratégia de inviabilizar um Estado palestino não se limitou aos corredores da diplomacia, mas com “boots on the ground”, para nos valermos de uma expressão tão corriqueira entre os norte-americanos (e que resume uma parcela significativa de sua política externa também). O período pós-Oslo testemunhou uma expansão sem precedentes dos assentamentos israelenses ilegais na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. Esses assentamentos, juntamente com a construção de estradas exclusivas para colonos, postos de controle militares e o muro de separação, efetivamente desmembraram o território palestino, criando “fatos irreversíveis no terreno”.
Essa política, chamada de “Bantustanização” em referência ao apartheid na África do Sul, isolou cidades e aldeias, estrangulou a economia e tornou a criação de um Estado palestino contíguo e viável uma impossibilidade geográfica. Cada nova casa construída em um assentamento foi mais um prego no caixão da solução de dois Estados, um ato de sabotagem contínuo realizado à vista de todos. Pessoas como Daniela Weiss não surgiram ontem; elas são o resultado da institucionalização dos assentamentos ilegais.
Mapa dos bantustões na África do Sul no final do apartheid em 1994
A continuidade desta política de sabotagem é explícita e confessada por membros do próprio governo israelense. A recente aprovação de milhares de novas unidades habitacionais em áreas estratégicas da Cisjordânia, como o plano para a área E1, não deixa dúvidas sobre a intenção de Israel: enterrar permanentemente qualquer possibilidade de um Estado palestino. Ministros de extrema-direita, como Bezalel Smotrich, declaram abertamente que tais ações são a maneira de “apagar o Estado palestino da mesa não com slogans, mas com ações”.
O projeto visa cobrir toda a área arborizada entre a aldeia palestina de Az-Za’ayyem (canto inferior esquerdo) e o assentamento israelense de Ma’ale Adumim (à direita na imagem).
Esta estratégia deliberada visa conectar assentamentos, dividir a Cisjordânia ao meio e isolar Jerusalém Oriental, tornando fisicamente impossível que ela sirva como capital de um futuro Estado. A comunidade internacional, em grande parte, condena verbalmente, mas falha em tomar medidas punitivas eficazes, permitindo que a anexação gradual prossiga sem impedimentos. No fim das contas, o prêmio de consolação para os palestinos é o próprio prego em seu caixão.
Nesse cenário de fragmentação e ocupação, a própria representatividade do povo palestino tornou-se uma questão complexa. A Autoridade Palestina (AP), nascida dos Acordos de Oslo e liderada pelo partido Fatah, governa partes da Cisjordânia, mas sua legitimidade é questionada. Após a vitória do Hamas nas eleições legislativas de 2006, um conflito interno levou a uma divisão: o Hamas assumiu o controle da Faixa de Gaza, enquanto a AP, apoiada pelo Ocidente, manteve seu poder limitado na Cisjordânia. Esta fratura política interna, somada à ausência de eleições gerais há mais de uma década e acusações de autoritarismo, enfraquece a posição da AP como única representante de todo o povo palestino e é frequentemente usada por Israel como pretexto para evitar negociações sérias sobre um acordo final.
Os palestinos foram às urnas em 2006, dando a vitória eleitoral ao Hamas.
É neste contexto de mais de um século de negação de direitos, décadas de ocupação e colonização e um processo de paz fracassado, que a violência de outubro de 2023 eclodiu, seguida por uma resposta israelense de uma brutalidade (quase) sem precedentes em Gaza. Diante do horror televisionado em Gaza, algumas nações ocidentais, como Espanha, Irlanda e Noruega, finalmente decidiram reconhecer formalmente o Estado da Palestina.
Embora simbolicamente importantes, esses reconhecimentos tardios carregam o peso da hipocrisia, tão enraizada nas políticas ocidentais. Eles ocorrem em um momento em que o território desse potencial Estado está sendo pulverizado e sua população massacrada. O gesto soa vazio quando não é acompanhado por ações concretas e robustas para deter a violência israelense, como sanções econômicas, embargos de armas ou uma intervenção para proteger a população civil. O reconhecimento parece ser mais uma tentativa de salvar a aparência da solução de dois Estados do que um esforço genuíno para salvá-la da aniquilação.
A Grande Mesquita de Omari está entre os muitos marcos históricos de Gaza que agora se encontram em ruínas.
As potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos, continuam a fornecer apoio militar e diplomático a Israel, enquanto simultaneamente defendem uma solução de dois Estados que as políticas de Israel ativamente destroem. A condenação dos assentamentos ilegais é relativamente comum, mas raramente seguida de consequências verdadeiramente práticas. Esta duplicidade permite que Israel mantenha seu projeto colonial com impunidade, sabendo que a retórica internacional não se traduzirá em pressão efetiva. O mundo assiste (e contribui ativamente) à morte da possibilidade de um Estado palestino, oferecendo condolências na forma de reconhecimentos diplomáticos, em vez de fornecer a ajuda que poderia salvá-lo.
Enviada especial dos Estados Unidos para o Oriente Médio, Morgan Ortagus, veta uma resolução que exige um cessar-fogo em Gaza durante a votação dos membros do Conselho de Segurança da ONU em 18 de setembro de 2025.
O reconhecimento oferecido hoje, em meio às ruínas de Gaza e à Cisjordânia fragmentada, assemelha-se a uma certidão de óbito emitida tardiamente para uma vítima que foi torturada na frente de todos até dar seu último suspiro. Futuramente, quando não restar mais nada da Palestina e de seu povo, líderes ocidentais dirão que ao menos “tentaram conter Israel”, embora saibamos que isso nem de longe foi verdadeiro.
Referências
BIGER, Gideon. The Boundaries of Modern Palestine, 1840-1947. London: RoutledgeCurzon, 2004.
FEDERAÇÃO ÁRABE PALESTINA DO BRASIL (FEPAL). Há 100 anos começava o mandato britânico sobre a Palestina e o início da catástrofe do povo palestino. Fepal, 2023. Disponível em: <https://fepal.com.br/ha-100-anos-comecava-mandato-britanico-sobre-a-palestina-e-o-inicio-da-catastrofe-do-povo-palestino/>. Acesso em: 03 nov. 2025
KHALIDI, Rashid. The Iron Cage: The Story of the Palestinian Struggle for Statehood. Boston: Beacon Press, 2006.
KRÄMER, Gudrun. A History of Palestine: From the Ottoman Conquest to the Founding of the State of Israel. Princeton: Princeton University Press, 2011.
LIEBERMANN, Oren. Israel aprova plano na Cisjordânia que complica criação do Estado palestino. CNN. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/israel-aprova-plano-na-cisjordania-que-complica-criacao-do-estado-palestino/>. Acesso em: 03 nov. 2025.
PAPPE, Ilan. Os processos de paz de Israel não levaram a lugar nenhum. Jacobin, . Disponível em: <https://jacobin.com.br/2023/11/os-processos-de-paz-de-israel-nao-levaram-a-lugar-nenhum/>. Acesso em: 03 nov. 2025.
SCHNEER, Jonathan. The Balfour Declaration: The Origins of the Arab-Israeli Conflict. New York: Random House, 2010.
SEGEV, Tom. One Palestine, Complete: Jews and Arabs Under the British Mandate. New York: Henry Holt and Company, 2000.











