A história é feita de ironias, e exemplos disso não faltam. Uma delas, inclusive, acabou de ocorrer: num um dia, morreu Dick Cheney, um dos arquitetos da “Guerra ao Terror” dos EUA. No dia seguinte, a cidade de Nova York – palco do 11 de Setembro, a grande justificativa para Cheney e outros em sua cruzada moderna – elegeu seu primeiro prefeito muçulmano.
Zohran Mamdani, novo prefeito de Nova Iorque.
O contraste não poderia ser mais simbólico: de um dia para o outro, enquanto o coração do império acolhe um homem de fé islâmica como líder, morre aquele que transformou essa mesma fé em sinônimo de ameaça. Cheney, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, moldou o século XXI com guerras preventivas, tortura institucionalizada e um medo fabricado que ecoa até hoje nas fronteiras do Oriente Médio.
Dick Cheney representou o que há de mais brutal e repugnante na política externa norte-americana. À sombra do “Big Stick” e da Doutrina Monroe versão expandida, sob sua direção, o governo intervencionista de George Bush filho invadiu o Afeganistão e o Iraque, resultando na morte de mais de um milhão de civis e no deslocamento forçado de milhões de outros. Mesmo após comprovada a ausência de armas de destruição em massa, desculpa esfarrapada inicial para a intervenção contra Saddam Hussein, Cheney continuou a defender não apenas a guerra, mas facetas macabras dela como o uso de “interrogatórios aprimorados” (eufemismo para a tortura em casamatas do horror como Abu Ghraib). Até seus últimos dias, declarava que não se arrependia de nada, justificando as atrocidades em nome da segurança nacional do império estadunidense.
Soldado estadunidense Sabrina Harman posa para uma foto atrás de detentos iraquianos nus forçados a formar uma pirâmide humana, enquanto outro soldado estadunidense, Charles Graner, observa.
Para o mundo islâmico, Cheney foi mais do que um mero político com mau gosto: foi o símbolo de humilhação e de genocídio. Seu legado paira sobre as ruínas de Bagdá e Fallujah, Kabul e Kandahar, sobre as prisões secretas da CIA e as memórias de famílias despedaçadas. A “Guerra ao Terror” que ele ajudou a construir não erradicou o extremismo; pelo contrário, o multiplicou, ao transformar populações inteiras em alvos e ao alimentar a retórica islamofóbica que se entrincheirou no Ocidente e se tornou lugar-comum nas opiniões e políticas ocidentais. O corpo de Cheney pode ter sido enterrado, mas o sangue em suas mãos demorará séculos para secar.
Enquanto isso, em Nova York, a maior megalópole dos EUA, Zohran Mamdani, filho de imigrantes indianos radicados em Uganda, muçulmano e autoproclamado socialista, venceu as eleições para a prefeitura da Big Apple. A mesma cidade que viveu as cinzas do 11 de Setembro será em breve liderada por alguém que encarna o oposto do projeto de Cheney: inclusão, justiça social e pluralidade. De fato, uma grande ironia: o epicentro da guerra ideológica contra o Islã agora celebra um de seus filhos como símbolo de mudança e reforma democrática.
Dick Cheney, um dos mais impopulares vice-presidentes dos EUA.
Talvez essa curiosa coincidência marque o início de uma cura. A vitória de Mamdani tem tudo para simbolizar um tímido, mas novo ciclo — um em que os muçulmanos deixam de ser vistos como inimigos e passam a ser reconhecidos como parte da sociedade norte-americana (e da espécie humana). O homem que viveu de guerra e mentiras parte, e o que vive de diálogo e sinceridade ascende. O império jingoísta que Cheney ajudou a militarizar treme, com rebuliço (esperado) das figuras ditas de “direita” e “conservadores”. Apesar disso, Nova York, outrora ferida pelo medo imposto pelos engenheiros de narrativa que vivem entre Washington e Tel Aviv, escolheu superar esse para buscar uma vida melhor.
Bibliografia:
BBC NEWS. Dick Cheney: Vice-presidente dos EUA e arquiteto da guerra ao terror morre aos 84 anos. 27 out. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-67328912
AL JAZEERA. Zohran Mamdani elected first Muslim mayor of New York City. 26 out. 2025. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2025/10/26/zohran-mamdani-first-muslim-mayor-new-york
THE GUARDIAN. Dick Cheney’s legacy: torture, war and the making of the surveillance state. 27 out. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2025/oct/27/dick-cheney-dead-legacy-war-on-terror
REUTERS. Cheney defended Iraq war until his death, saying he had ‘no regrets’. 28 out. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/world/us/cheney-defended-iraq-war-until-his-death-2025-10-28/





