A Jihad de Usman dan Fodio e a fundação do Califado de Sokoto

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Muitas das vezes quando as pessoas escutam a palavra Jihād, a primeira imagem que vem à mente seja a dos grupos contemporâneos como Al-Qaeda, Boko Haram e ISIS, e com eles a imagem de toda uma série de violações de direitos humanos e contra o direito das mulheres. Essa percepção, no entanto, é contestada não só por historiadores, mas pela própria teologia islâmica que estabelece não só quais motivações são justificáveis para empreender o combate, como também, mas que fins o combate deve atingir. O principal deles: o fim da injustiça. A Jihād empreendida pelo Sheikh Usman dan Fodio no começo do século XIX e que deu origem ao califado de Sokoto, foi uma dessas revoluções sociais motivadas por essa ideia. E o legado foi não só um dos Estados mais estáveis e ricos, mas como um dos mais letrados tanto para homens quanto para mulheres.

Shehu Usman ibn Fodio (1754-1817) emergiu como uma das figuras mais influentes da renovação islâmica na África Ocidental, combinando uma sólida formação teológica com um profundo compromisso com a justiça social. Nascido em Maratta, no reino do Gobir, norte da atual Nigéria, dan Fodio descendia, pelo lado materno, do Profeta Muhammad através de sua mãe Hauwa Bint Muhammad, que era descendente de Maulay Idris I, o primeiro Emir do Marrocos. Sua educação foi rigorosa e abrangente, tendo estudado sob diversos mestres sufis e juristas, dominando não apenas as ciências islâmicas tradicionais – Alcorão, hadith, jurisprudência e teologia – mas também filosofia, literatura árabe e história, tal formação o tornou autor de dezenas de tratados sobre as mais diversas áreas. Curiosamente, foi sua própria mãe Hauwa quem se tornou sua primeira professora, estabelecendo desde cedo uma tradição familiar de valorização do conhecimento que se estenderia igualmente a homens e mulheres. O Islã que dan Fodio professava era marcado por uma síntese entre o sufismo ortodoxo e um reformismo purificador, influenciado pela tradição intelectual da Qadiriyya, uma das principais ordens sufis. Diferentemente de interpretações rígidas posteriores, sua visão do Islã enfatizava tanto a dimensão espiritual quanto a responsabilidade social, defendendo que a verdadeira jihad deveria ser empreendida não apenas contra a ignorância e a injustiça, mas também pela educação e elevação moral de toda a sociedade, incluindo as mulheres. Essa abordagem intelectual e inclusiva do Islã se refletiria posteriormente na estrutura educacional e social do califado que ele estabeleceria.

A chegada do Islã na África Ocidental foi um processo multifacetado que teve início no século VIII, através das diversas rotas comerciais que atravessavam a região. A principal delas, a Rota Transaariana, era uma das responsáveis pelo intercâmbio de produtos como ouro, marfim e tecidos, não só no contexto interno, mas nos grandes mercados do Egito, Levante e Península Arábica. Tal posição permitiu uma vasta troca cultural, que acabou culminando em uma expansão pacífica do Islã através de mercadores berberes que interagiam com os povos hauçás, fulani e mandingas. O resultado disso foi a formação de uma forte e multifacetada cultura islâmica marcada não só pela adesão à fé, mas pela criação de vários centros de conhecimento, como a universidade de Tombuktu. De tal modo que o “bilad as-Sudan” – país dos negros – foi conhecido como Dar al-islam – casa do Islã. Na coleção da UNESCO História Geral da África, o professor Aziz Batran escreveu um parágrafo interessante sobre esse tema:

Os instigadores das jihad situavam as suas origens na região mais sagrada do Bilād al‑Sudān, o famoso Takrūr (Fouta Toro), legendário berço do primeiro Estado islâmico da África do Oeste; mas, sobretudo, eles pertenciam todos a esta “sociedade” de ‘ulamā‘ (letrados), conhecida sob a denominação torodbe. J. R. Willis ensina-nos que os torodbe eram um grupo heterogêneo de muçulmanos oriundos de diversas famílias étnicas do Sudão Ocidental e Central. A “sociedade” dos torodbe – acrescenta ele – era composta de grupos de origem fulbe, wolof, mande, hauçá, berbere, descendentes de escravos e indivíduos de castas. Entretanto, os torodbe eram semelhantes aos fulbe: eles falavam a sua língua (o fulfulde), aliavam-se a eles através do casamento e seguiam-nos em suas perpétuas migrações. Em todo o Sudão Ocidental, a palavra “torodbe” tornou-se sinônimo de “fulbe” e, de fato, os torodbe formavam a elite intelectual do povo fulbe.

O professor Paul Lovejoy, da Universidade de Wiscosin também coloca nos seguintes termos:

A origem da jihad na África Ocidental pode ser traçada a partir do colapso do império muçulmano de Songhai, em 1591-1592, e o período subsequente caraterizado pela decadência política e a consolidação de uma diáspora comercial e de centros de aprendizagem islâmica. A ideia de jihad e de mudanças políticas revolucionárias foi associada com a irmandade Qadiriyya, às famílias de clérigos kuntas, bem como com os fulbes, suas elites acadêmicas e religiosas. Estas haviam se espalhado por toda a savana e o Sahel da África Ocidental devido à migração de transumância, uma vez que eram pastores de gado. A liderança intelectual muçulmana era aliada aos chefes de clãs que detinham e geriam os rebanhos de gado que atravessavam a África Ocidental. Etnicamente relacionados, conhecidos como peul, ful, ­fulbe, fula, fulani, dependendo de sua localização na África Ocidental, esses grupos falam uma língua comum, o fula, além da elite intelectual também dominar o árabe graças aos estudos dos textos clássicos do Islã.

Em suma, apesar da distância geográfica dos grandes centros tradicionais, essa região se configura até hoje uma das mais representativas quanto ao legado islâmico na África. Não é demais lembrar também que foi ao lado de mesquitas africanas que surgiram as primeiras Universidades.

Portanto, é preciso analisar o contexto da Jihad que surge no século XIX dentro de uma série de combinações políticas, econômicas e sociais – sendo a religião uma resposta sociológica à esse fenômeno. Havia, de um lado, a percepção de um estado de deterioração da sociedade e das leis islâmicas pela tolerância a diversos sincretismos dos reinos vizinhos. Para o Shehu dan Fodio, por exemplo, o governo sobre uma sociedade determinava que tipo de sociedade estaria se formando, ou, em palavras mais comuns, em que tipo de modelo civilizacional os reinos locais se assentavam. De acordo com Aziz Batran:

À época, os muçulmanos desta região esperavam impacientemente o advento do mujaddid (reformador/renovador). Segundo uma profecia atribuída a Muhammad, ele próprio devia ter doze califas (mudjaddidūn) como sucessores; em seguida, viria uma era de anarquia, anunciadora do fim do mundo. As tradições locais defendiam orgulhosamente que o Profeta reservara ao Takrūr (África do Oeste) a honra de engendrar os dois últimos mudadídūn. […] Profundamente ancorados na ortodoxia e nas ideias sufi, as jihad conduzidos na África do Oeste, no curso do século XIX, não eram fenômenos isolados, mas as últimas manifestações de uma tradição reformista de longa data estabelecida no Bilād al‑Sūdān, cujo objetivo consistia em instaurar, através da revolução, a equidade e a justiça prometidas pelo islã, todavia recusadas por regimes opressores, comprometidos e iníquos.

Por outro lado, havia também outra série de fatores que se juntavam ao zelo religioso. A jihad contou entre seus seguidores membros das etnias fulani, wolof e tuaregues, grupos que estavam sofrendo represálias por parte dos bambara e dos faama no reino de Gobir. Essas represálias podiam ser vistas pelas cobranças abusivas de impostos, ao sequestro de gado e à redução de boa parte de sua população ao trabalho escravo. Havia também outro elemento de insatisfação para os reformadores: a crescente interferência francesa na região. Cabe lembrar que no final do século XVIII e inícios do XIX, estamos vivendo um amadurecimento da revolução industrial e que diversas potências europeias já iniciavam seu movimento de expansão até o continente africano que viria a resultar na Conferência de Berlim (1884). A França tinha na região do Sahel um importante entreposto não só para matérias primas, mas também para o tráfico de escravos para as suas colônias. De acordo com os dados de JR Willis, houve nas vésperas da jihad uma expansão do comércio de escravos graças à introdução de armas de fogo, sendo que a metade destes apresados eram fulanis. A adesão destes à causa se deu por causa de que muitos deles, ao fugir para as terras de maioria muçulmana, eram libertados da escravidão, de acordo com o princípio islâmico.

Temos, então, os elementos formados. A disputa territorial entre os reinos locais; situação de crise social entre as etnias, agravada pela presença estrangeira e o tráfico de escravos e o fervor religioso. As tensões entre o Shehu Usman dan Fodio e o rei Yunfa de Gobir alcançaram seu ponto crítico em 1804, quando a crescente popularidade do movimento reformista passou a ser vista como uma ameaça direta ao poder constituído. A ruptura definitiva ocorreu quando Yunfa, temendo a influência crescente de dan Fodio e seus seguidores, decidiu atacar a comunidade de Degel, centro das atividades do movimento reformista. Yunfa ofereceu a dan Fodio a opção de exílio antes de destruir Degel, mas Usman se recusou a abandonar seus seguidores, em vez disso liderando uma hégira (hijra) em grande escala da comunidade para Gudu. Esta migração não foi apenas uma fuga estratégica, mas um ato consciente de ruptura com o poder estabelecido, inspirado na migração histórica do Profeta Muhammad de Meca para Medina. Tantas pessoas acompanharam dan Fodio através do estado que em 21 de fevereiro de 1804, Yunfa declarou guerra contra dan Fodio e ameaçou punir qualquer um que se juntasse a ele.  O estabelecimento em Gudu marcou o início formal da jihad, quando os seguidores de dan Fodio o declararam Amir al-Mu’minin “Comandante dos Fiéis” e renunciaram sua lealdade a Gobir. A primeira grande confrontação militar aconteceu na batalha de Tabkin Kwotto, em Rabi’ al-Awwal 1219 ou junho de 1804 d.C., quando as forças fortemente armadas de Gobir sob Yunfa encontraram o exército mal equipado e menor da Jama’a sob comando de Abdullah. Apesar da inferioridade numérica e material, os muçulmanos foram auxiliados por fatores geográficos, sendo protegidos em um flanco por um rio que agora tinha água devido à estação chuvosa. Esta vitória inicial não apenas consolidou a legitimidade militar do movimento, mas também serviu como catalisador para atrair mais apoio de comunidades fulani, wolof e outras que viam na jihad uma oportunidade de libertação das opressões políticas e econômicas dos reinos hauçá. A partir deste ponto, o movimento transformou-se rapidamente de uma reforma religiosa local em uma revolução política de amplitude regional. Após sua hégira, dan Fodio lançou uma poderosa jihad em 1804, e em 1809, ele havia estabelecido o califado de Sokoto que governaria sobre grande parte do norte da Nigéria até ser conquistado pelos britânicos em 1903.

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O Califado de Sokoto no século XIX.

Boa parte desse sucesso pode ser explicada por uma ética islâmica aplicada em contraponto a uma razão nobiliárquica que predominava antes. Expliquemos melhor. A Jihad do Shehu Dan Fodio pressupunha acima de tudo uma transformação através da educação. Suas filhas foram grandes estudiosas da lei corânica. O Califado estimulou a criação de escolas até nas mais afastadas regiões do país, sem fazer diferença entre homens e mulheres. O próprio Fodio se opunha aos Wahabbis dizendo que não se poderia condenar metade da humanidade à ignorância. Por outro lado, os princípios de ética islâmica também foram levados em conta na hora de formação da burocracia estatal. De acordo com Murray Last:

Os reformistas muçulmanos (que compreendiam ao menos um dos últimos reis hauçá reformadores) pretendiam implantar um sistema político muito distinto. O rei foi substituído por um emir cuja pessoa e tampouco o palácio eram sagrados. A origem da sua autoridade não era mais o Estado, personificado pelo rei, mas Allah. Consequentemente, o emir era designado não em razão de um caráter sagrado hereditário, mas pela sua piedade. O emir era primus inter pares; os seus companheiros, tomados coletivamente, eram convocados a dividir o poder, sob a sua direção. Portanto, os escravos do palácio não tinham mais como atribuição senão o serviço pessoal do emir; as dignidades da rainha-mãe e da rainha-irmã foram abolidas. O emir fazia parte do mundo político e as suas funções podiam, teoricamente, ser ocupadas por qualquer candidato suficientemente pio. Em conformidade com o projeto dos reformistas, uma administração restrita, composta por ministros, juízes, inspetores, policiais e imames foi estabelecida; a sharī ‘a, tal qual interpretada pela escola malikiya, deveria reger as relações entre os indivíduos e os grupos. Tratava-se de limitar e tratar os processos políticos, evitar os desvios das regras até então não escritas e restringir o papel político do palácio, cuja importância aumentava progressivamente. Os reis eram muçulmanos, embora detivessem um poder ritual fundado em crenças religiosas locais e tradicionais. Era necessário substituir este poder ambíguo por um poder fundado em Alá, não somente aceitável para a comunidade muçulmana, mas igualmente, responsável vis‑à‑vis desta comunidade. O projeto dos reformistas foi exposto, clara e nitidamente, por ‘Abdullahi dan Fodio em sua obra o Diya ’al‑hukkam, destinada a familiarizar a comunidade de Kano com a nova constituição.

No entanto, há contrapontos. Com o desenvolvimento do Califado enquanto Estado e com a morte dos primeiros reformadores, alguns dos aspectos anteriores foram relaxados, como o ideário igualitário e a criação de uma nobreza por parte dos emires. O mais polêmico ponto, porém, foi a manutenção da escravidão em seus territórios, número que representava entre 20 e 25% da população, demonstrando a permanência dessa instituição mesmo em revoluções sociais que libertaram escravos. É preciso, porém, pontuar, a escravidão africana não era igual à transatlântica. Ali ocorria o que o historiador americano Ira Berlin define como “Sociedade com escravos”, onde a escravatura era mais uma forma de trabalho. E não uma sociedade escravocrata, onde a escravidão é a base da cadeia produtiva – Brasil, Sul dos EUA – De acordo com Murray Last:

Nós não sabemos como a proporção de escravos variou nos campos; porém, é provável que o seu número tenha aumentado durante o século. Recorria-se ao trabalho dos escravos para compensar a penúria crônica de mão de obra, sobretudo nos territórios subpovoados, como Sokoto, fundado à margem dos antigos Estados da região. […] Os escravos estavam autorizados a possuírem bens e podiam dispor do tempo para trabalhar por sua própria conta, esperando, com isso, o benefício da possibilidade de comprarem a sua liberdade. Os seus proprietários não tinham, invariavelmente, suficiente trabalho para atribuir-lhes, e estavam dispostos a permitir-lhes oferecerem os seus serviços a terceiros. Igualmente, era plausível que um proprietário concedesse a alforria a um dos seus escravos, para recompensá-lo ou para agradecer a Alá por um feliz acontecimento. Neste caso, tampouco sabemos quantos escravos puderam ser libertos ou qual o ritmo desta concessão.

Ainda assim, o professor Paul Lovejoy aponta que a condenação por parte do Califado à exportação de escravos muçulmanos contribuiu para uma significativa redução do número de cativos exportados na região do Califado. “O número de pessoas exportadas oriundas da região iorubá e da área do jihad de Sokoto foi desproporcionalmente pequeno, apesar de sua importância no Brasil, especialmente na Bahia, assim como em Cuba e Serra Leoa”.

“Os Fundamentos da Justiça para Tutores Legais, Governadores, Príncipes, Governantes Meritórios e Reis” por Usman dan Fodio.

O legado do Shehu é lembrado até hoje com carinho nas comunidades hauçás, Fulani, Tuaregues, não só por ter sido o reino mais rico do século XIX, mas pelo seu legado educacional que atingiu tanto homens quanto mulheres. O Shehu e seus descendentes pensaram um Estado que focou na eficiência e na impessoalidade, características tidas como modernizantes, a partir de uma ética islâmica. Foi essa ética que o fez educar, mesmo com as limitações de sua época. E é nesse sentido que a jihad do Shehu Dan Fodio é revolucionária, de acordo com o argumento levantado pelo professor Paul Lovejoy, nos mesmos termos usados por Hobsbawm, por se opor a uma espécie de Velho Regime, usando sua fé e ética.  Da mesma forma que o Reverendo Martin Luther  King Jr se levantou na luta pelos direitos civis “para a Glória do Senhor”, ou quando o Papa Francisco dizia que quanto mais a Igreja cresce, mais ela deve servir, o quando Gandhi usou o princípio da não violência contra o domínio britânico na Índia. Todas essas pessoas foram movidas pela fé profunda que tinham, inspiradas pelos ideais de misericórdia, justiça e compaixão. Sheikh Usman Dan Fodio, assim como Saladino, Suleyman, o magnífico, foram movidos pelo mesmo princípio. Isso no Islã também se chama Jihad.

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Vista dos arredores de Sokoto, 1890, por Parfait-Louis Monteil.

Referências

DEUTSCHE WELLE. Usman dan Fodio: o fundador do Califado de Sokoto. DW, 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/usman-dan-fodio-o-fundador-do-califado-de-sokoto/a-51955855. 

LOVEJOY, P. E.. Jihad na África Ocidental durante a “Era das Revoluções”: em direção a um diálogo com Eric Hobsbawm e Eugene Genovese. Topoi (Rio de Janeiro), v. 15, n. 28, p. 22–67

UNESCO. Capítulo 21 – A Jihad de Uthman dan Fodio. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.). História Geral da África, volume 6: África do século XIX à década de 1880. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/media/pronacampo/pdf/hga_VI_africa_do_seculo_XIX_a_decada_de_1880.pdf. 

UNESCO. Capítulo 22 – O Califado de Sokoto e seus Estados Vassalos. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.). História Geral da África, volume 6: África do século XIX à década de 1880. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/media/pronacampo/pdf/hga_VI_africa_do_seculo_XIX_a_decada_de_1880.pdf. 

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