A alquimia foi um dos ramos do conhecimento humano que se dedicou durante séculos ao estudo dos materiais que compõem toda a Anima Mundi. Muito embora a ciência contemporânea já tenha avançado muito e a sua parte esotérica apenas encontre eco em alguns nichos “new age”, muitas de suas descobertas foram fundamentais para o avanço científico e têm resistido à prova do tempo. Isso se deve em grande parte ao método de estudo das escolas alquímicas, que consistia em análise, repetição, estudos dos resultados e até uma certa revisão de pares, com as limitações de cada época. Isso é o prelúdio do que mais tarde seria chamado de método científico.
Tendo em vista esse quadro, a Civilização Islâmica também herdou bastante da tradição alquímica proveniente não só dos grandes centros urbanos como Alexandria, mas nos conhecimentos que eram passados dentro da própria comunidade. E o que diferencia a Alquimia da Química? A principal diferença está na ideia de que as coisas possuem “anima”, quer dizer, alma, coisa que a Química Moderna rejeita. Esse olhar nos permite entender a motivação por trás do Hadith no qual se narra que o Profeta Muhammad se sentava em uma cadeira de ferro e qual seria o significado teológico por trás desse elemento.
Os estudos em alquimia no Islã podem ser documentados já no século VIII. Um dos primeiros que se destaca nesse quesito é o teólogo Ja’far Al-Sadiq. Ele é majoritariamente conhecido pela sua escola de jurisprudência islâmica, Jafari, e por ser o sexto imã xiita. No entanto, a ele se creditam diversas descobertas em várias áreas do conhecimento como matemática, física, botânica e farmacologia. Nascido em 702, ele era membro da ahl al-bayt – família do Profeta pela linhagem de Ali ibn Abu Talib – e viveu no período de transição entre o Califado Omíada e o Abássida.
Um grande erudito e transmissor de hadith, passou a maior parte de sua vida na cidade de Medina, onde reuniu uma série de alunos. Buscou não se imiscuir nas questões políticas concernentes ao califado, concentrando seu olhar na piedade e na doutrina. A sua obra científica, portanto, não se separa de sua obra religiosa. Os xiitas atribuem a ele diversas descobertas como a teoria do movimento estrelar, sendo um dos precursores do pensamento de Copérnico; rejeitou a teoria dos quatro elementos de Aristóteles, dizendo que nós somos compostos de vários elementos em proporções distintas; propôs uma teoria da luz com observações avançadas para a sua época, como o princípio da refração e da retenção. Tudo isso, além de reflexões toxicológicas, sobre medicina, filosofia.
O grande problema, no entanto, é que boa parte do corpus atribuído a Ja’far Al-Sadiq é que muitos dos seus escritos podem ser atribuições posteriores, uma vez que era comum no mundo antigo se recorrer ao argumento de antiguidade. Outra dificuldade é separar o que é biografia do que é hagiografia, pois, como mencionado anteriormente, o fato de ser o sexto imã xiita faz com que a dimensão sagrada e a dimensão histórica se misturem.
Problema semelhante enfrenta Jaber ibn Hayyan. Conhecido como o “Pai da Alquimia Islâmica”, ele viveu entre 721 e 815 e foi aluno de Ja’far Al-Sadiq, de quem recebeu bastante influência. Sua principal contribuição reside não somente na pesquisa da alquimia, mas em uma profunda sistematização, baseada em uma metodologia científica clara e sólida, mesmo para os padrões modernos. Foi um dos primeiros que trabalhou com matéria orgânica em sua pesquisa, além de documentar diversos processos químicos como: a destilação fracionada – onde é possível separar vários elementos de uma mistura por meio da ebulição -, sublimação, cristalização entre outros. Desenvolveu técnicas de produção de pigmentos, sais metálicos etc., além de uma teoria dos metais que viria a ser dominante no pensamento alquímico nos próximos 1000 anos.
Parte de sua obra foi traduzida ao latim onde ele foi chamado de Geber e seria referência para autores como Francis Bacon. O problema de sua obra reside no mesmo do anterior, muito do que se lhe atribui é material tardio. Há outro problema: o corpus jaberiano é composto de 3000 volumes, abrangendo áreas muito vastas, sendo humanamente impossível para alguém. produzir tanto assim no século IX, daí por que muitos historiadores chamam alguns escritos de “autores jaberianos”.
Representação artística de Geber
Dentre todos estes, a figura de Khalid ibn Yazid se destaca por dois aspectos: o primeiro se dá pela sua posição de príncipe omíada, mesmo que preterido ao trono, o que lhe permitiu não só pesquisar, mas patrocinar pesquisas. É considerado um dos patronos das traduções, uma vez que solicitou diversos profissionais para traduzirem para o árabe obras em copta, escritos alexandrinos e sírios, nas áreas de medicina, astronomia e alquimia. Esse movimento foi responsável pela preservação de milhares de obras, mesmo no período conturbado de transição política. Sua obra científica, no entanto, é mais escassa e fortemente misturada ao seu carisma. Desenvolveu teorias da transformação dos metais baseadas em princípios aristotélicos; enfatizou o controle da temperatura nos processos de alquimia e na classificação de substâncias.
Gravura representando Morienus, o grego (à esquerda) e o Khalid ibn Yazid (à direita). Esta gravura é da “Symbola aureae”, de Michael Maier, publicada em Frankfurt em 1617.
Apesar dos problemas relacionados à historiografia, onde muito do mito e da realidade se misturam, sendo difícil estabelecer uma fronteira clara, uma coisa não se pode negar, a existência de uma gama de pesquisas ocorrendo entre os séculos VIII e IX. Carlo Ginzburg defende que, mesmo quando confrontados por fontes fragmentadas, ou de autenticidade questionável, os “sintomas”, “sinais” e “pistas” apontam para um paradigma epistemológico concreto. Ou seja, a busca na alquimia das verdades contidas no cosmos, imbricadas profundamente em uma tradição religiosa, levaram à produção de toda uma rede intelectual, tecnológica e teórica que viria a resistir ao tempo e mesmo à própria consolidação da química moderna. E embora ninguém mais esteja à procura da pedra filosofal, ou do elixir da longa vida, a utopia deles permitiu que o conhecimento caminhasse.
A historiadora das religiões Karen Armstrong estabelece que o pensamento místico exige disciplina. Ao mesmo tempo ela defende que se por um lado nós temos o pensamento analítico e descritivo, lado esquerdo do cérebro, ao mesmo tempo a dimensão intuitiva, mágica, emotiva, dada pelo lado direito é que nos permite projetar e encontrar novas formas de ver as coisas. E é exatamente esse o trunfo dos mestres alquimistas. Eles não separavam necessariamente o conhecimento dito científico de suas experiências místicas e espirituais, mas as equilibravam. Aprender era um ato que se dava “de corpo e alma”. Essa demanda educacional é extremamente atual. Não se trata de uma defesa do Anima Mundi, mas entender que um cientista, um historiador, um biólogo só produzem ciência quando ele é encantado pelo mundo que pesquisa.
Referências
KAZEMI MOUSSAVI, Ahmad. JAʿFAR AL‑ṢĀDEQ v. And Herbal Medicine. Encyclopaedia Iranica Online, [s.l.], 2012. Disponível em: https://www.iranicaonline.org/articles/jafar-al-sadeq-v-and-herbal-medicine/.
MOHAMEDALI, Hasnain. Imam Jaʿfar al-Sadiq’s Contribution to the Sciences. Al-Islam.org. Disponível em: https://al-islam.org/articles/imam-jafar-al-sadiqs-contribution-sciences-hasnain-mohamedali
MAKHDOOM ASHRAF FOUNDATION. Imam Jaʿfar al-Sadiq: The Father of Chemistry. Makhdoom Ashraf Foundation. Disponível em: https://makhdoomashraf.org/blogs/quraan-modern-science/imam-jafar-al-sadiq-the-father-of-chemistry.
CHEM EUROPE. Alchemy (Islam). Disponível em: https://www.chemeurope.com/en/encyclopedia/Alchemy_%28Islam%29.htm