Texto de João V. Pios Castela
Uma teoria que tem circulado pela Internet há certo tempo, é a de que o chapéu de couro nordestino teria uma suposta origem no solidéu judaico. Um dos vídeos mais conhecidos sobre o tema é os do músico cearense Santanna, o Cantador, que menciona essa alegada relação histórica. Segundo Santanna, que é um dos entusiastas do assunto “judeus no Nordeste” — essa seria a maior herança judaica da região e uma forma disfarçada que os cristãos-novos, descendentes de judeus forçados a se converter ao cristianismo, teriam encontrado para preservar secretamente sua identidade religiosa, isentos de punições pela inquisição.
Santanna, “o Cantador”, aproveita toda oportunidade para destacar uma suposta origem judaica da cultura nordestina.
No vídeo, ele aponta algumas aparentes características do chapéu nordestino que teriam influência da cultura judaica, como a estrela de seis pontas (Estrela de Davi), a tradição, em certas localidades do sertão (quais?), de denominar o chapéu de couro como “kipá”, o uso de correias no chapéu como uma alusão aos peiots (mechas de cabelo características dos judeus ortodoxos) e o formato da copa do chapéu que, ao ser usado sem as abas, lembraria o solidéu judaico.
Apesar de criativa e atraente, essa teoria carece de suporte histórico e etnográfico para ser validada. Um exemplo é que a Estrela de Seis pontas que não é um elemento característico das representações iconográficas dos vaqueiros nos séculos XVIII e XIX. A sua incorporação nos chapéus é uma inovação estética recente, influenciada pela popularidade dos chapéus dos cangaceiros, que enfeitavam seus chapéus com símbolos de proteção talismânicos, como estrelas, cruzes, moedas, e motivos florais da arte do couro andaluza (guadameci), sendo esta última não judaica, mas sim árabe-islâmica.
Em relação às correias supostamente simbolizando os peiots no chapéu, que carece de fontes que demonstre sua relação com o judaísmo, é possível que essa tradição tenha surgido da forte identificação entre o chapéu e seu portador, levando os vaqueiros a chamarem as correias de “cabelo”, como se fossem uma extensão do próprio corpo, e por isso as vezes a usarem como tranças ou pedaços soltos.
Para Santanna, as correias presentes em alguns chapéus de couro seriam alusivas, de alguma forma, aos peiots.
Luís da Câmara Cascudo, ao destacar a importância do uso do chapéu no passado, menciona que ‘’outrora, como toda a gente não dispensava o chapéu, sair sem ele dizia-se sem cabeça. Perdeu a cabeça? perdi minha cabeça! Eram frases alusivas ao uso do chapéu’’. Quanto ao costume chamar o chapéu de couro de “kipá’’, isso é mais um exemplo de como as culturas reinterpretam símbolos externos para expressar sua própria identidade. Caso contrário, essa seria uma forma muito peculiar e ostensiva para disfarçar um hábito religioso (as pessoas perseguidas pela Inquisição não passariam a usar algo que pudesse claramente as identificar como judeus).
Ainda, é fato amplamente conhecido entre os judeus praticantes e os estudiosos do judaísmo que a tradição de longos peiotim são um costume encontrado apenas nas comunidades hassídicas (surgidas no século XIX no seio dos haredim ashkenazim) e dentre a isolada comunidade dos judeus iemenitas. Ambas com motivos diferentes: os hassídicos detém um conceito cabalista de “ampliar os mandamentos positivos”, então se Levítico 19:27 diz para não raspar o “pe’a” de sua cabeça (sem especificar tamanho), os hassídicos “ampliam positivamente” esse mandamento e deixam os peiot tão longos quanto podem. O costume dentre os iemenitas, por sua vez, se deve ao fato de seus hábitos serem parecidos e influenciados pelo dos seus vizinhos árabes, que raramente (ou nunca) cortavam nem sequer aparavam suas barbas, de modo que seus peiot ficavam grandes.
Judeu iemenita com peiot.
Além disso, na cultura sefardita, que é a dita influenciadora dessa suposta emulação, é costume coercitivo que o peiot seja pequeno e discreto. O motivo? Os hakhamim (sábios) sefarditas eram a favor e defendiam o máximo de assimilação possível dos sefarditas às sociedades circundantes, de modo que os peiot não deveriam ser grandes e nem ficarem expostos (deveriam ser colocados atrás da orelha, no máximo), e é por isso que também até hoje os judeus sefarditas têm o costume de usar os tzitzit por dentro da roupa, enquanto os ashkenazim usam por fora.
Mas então, qual é a origem do chapéu nordestino? Sua origem remonta ao início da criação extensiva de gado durante o século XVI, quando a Coroa Portuguesa proibiu a criação de gado próximo às plantações de canaviais, levando à internalização da pecuária no interior nordestino. O chapéu surgiu nesse contexto, junto ao ofício de vaqueiro, e foi projetado para resistir ao ambiente físico da caatinga, assim como o restante do traje (jaleco, gibão e alpargatas, que por sinal são todos termos de origem árabe). Parafraseando Euclides da Cunha ‘’um expressivo exemplo do quanto importam as reações ao meio’’. Amplamente difundido, o chapéu de couro foi um acessório comum entre brancos, índios, negros, mulatos e mamelucos, estando presente tanto entre as classes dominantes quanto nas camadas populares. Apesar de sua designação comum, apresentou diversas formas e variações, conforme a época e localidade.
Um Vaqueiro do Sertão de Pernambuco. Aquarela de Charles Landseer, 1826. Acervo do Instituto Moreira Salles.
Os modelos mais antigos, com copa redonda e abas curtas, remetem a um capacete medieval português bastante comum, criado para proteger a cabeça contra os espinhos e galhos da caatinga. Existem algumas reminiscências árabes no chapéu de couro, considerando que os árabes-mouros trouxeram para a Península Ibérica a indústria de papel e de couro e esses conhecimentos chegaram no Nordeste, e no seu modo de uso mais primitivo que incluía um lenço debaixo do chapéu, influência dos turbantes de al-Andalus na cultura camponesa ibérica, que aparecem em muitas pinturas sobreviventes.
Ao abordar a relação entre cultura e geografia, Roger Bastide destaca a forte influência do meio físico e das condições climáticas na formação cultural. Dentro dessa perspectiva, é possível entender por que o uso do chapéu esteve, e ainda está primariamente ligado ao sertão, onde as características geográficas e climáticas demandam adaptações específicas, como a proteção contra o sol e a vegetação espinhenta da caatinga. Vale ressaltar que um chapéu de couro muito semelhante ao nordestino é utilizado também na região do Chaco, que, assim como o sertão nordestino, possui clima semiárido. O que comprova que sua origem está muito mais ligada à funcionalidade do que alguma prática religiosa para se disfarçar da Inquisição (e, se disfarçar, se destacando?).
Portanto, sem desconsiderar a importância do chapéu no imaginário religioso dos judeus e nem os simbolismos do chapéu nordestino tardio, não há motivos para liga-los como derivados devido a muitas problemáticas históricas gritantes. Embora seja verdade que os cristãos-novos, os descendentes de judeus e cripto-judeus, deixaram traços culturais no Nordeste, o chapéu de couro não é um deles. E como é largamente documentado, esses contornos orientais na cultura nordestina são heranças do passado árabe-islâmico de al-Andalus, incorporados pelos próprios cristãos e judeus, que foram também seus grandes transmissores.
Referências
ASSUNÇÃO, F. O. Pilchas criollas: Usos y Costumbres del gaúcho. Buenos Aires, Editora Emecé.
BASTIDE, Roger. O folclore brasileiro e a geografia. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Editora Global, 2004.
CHAVES, Luciano Gutembergue Bonfim. Da cabeça aos pés: a estética do cangaço. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Rio de Janeiro, 2021.
CUNHA, Euclides da. Os sertões.
El Sombrero Chaqueño. HOLA CHACO, 1993.
FARIA, Oswaldo Lamartine de. O Sertão. Vol. 3. Natal: EDUFRN, 2022.
Ofício de Vaqueiros | IPAC – Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.
SANTOS, Laina Ramos dos. Entrevista: Nordeste – da ocupação às mudanças que influenciam os hábitos e modificam os estilos de vida.