Eleições em Nova Iorque revelam a força do lobby israelense no Ocidente

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A obra ‘Soumission’ (Submissão) de Michel Houellebecq (2015) é um romance que nos transporta para um futuro próximo e distópico (2022, já no passado), onde a França experimenta uma profunda transformação social e política. A narrativa gira em torno da ascensão de um partido político islâmico ao poder, que gradualmente implementa políticas que islamizam a sociedade francesa após a eleição do primeiro presidente muçulmano na França, Mohammed Ben-Abbes.

No livro, Michel Houellebecq conta a história de como a França se torna um país islâmico. Islã significa ‘submissão’ em árabe e o livro usa isso como ponto de partida. Com um pano de fundo de crise dos refugiados, ódio aos imigrantes, fim da União Europeia e o crescimento do nacionalismo na Europa, o livro de Houellebecq, que já era conhecido por ser polêmico, causou ainda mais debates. Para piorar, o livro foi lançado logo antes do ataque ao Charlie Hebdo, que tinha feito uma caricatura do autor. Por causa disso, ‘Soumission’ alcançou uma posição de destaque no cenário literário internacional.

Capa da edição brasileira do livro de Houllebecq

A narrativa de ‘Soumission’ pode ser compreendida como uma representação condensada da teoria do Le Grand Remplacement (A grande substituição), frequentemente associada ao autor Renaud Camus. Essa teoria postula um processo gradual de substituição da população europeia, especialmente a francesa de origem, por imigrantes e seus descendentes, majoritariamente provenientes da África e do Magrebe, e predominantemente muçulmanos. Houellebecq, em seu romance, explora essa premissa, apresentando uma visão ficcional das consequências dessa suposta substituição.

Em ‘Soumission’, a responsabilidade pela ascensão do Islã na política é atribuída à elite intelectual e política francesa. Já em ‘Le Grand Remplacement’, Renaud Camus atribui essa transformação a uma conspiração mais ampla, envolvendo eurocratas, financistas e outras figuras influentes. É interessante notar que, apesar de suas raízes aparentemente antissemitas, a teoria de Camus apresenta similaridades com a teoria da Eurábia de Bat Ye’Or, embora radicalmente diferentes em alguns aspectos, como o papel atribuído aos judeus e a importância conferida à deslegitimação de Israel. 

A teoria de Bat Ye’or é muito curiosa, para dizer o mínimo. Segundo ela, há forças globais, em especial a França e países árabes, conspirando para islamizar a Europa através da imigração em massa e da redução da natalidade da população nativa. Essa teoria, frequentemente associada a movimentos anti-imigração e de extrema direita, busca justificar a hostilidade contra muçulmanos e minar a coesão social na Europa. Bat Ye’or defende a ideia de uma oposição intransponível entre o mundo islâmico e o ocidental. Para ela, a história recente seria marcada por uma contínua perseguição à “civilização judaico-cristã”, culminando no Holocausto e que se estende até os dias atuais.

Embora alguns desses temas já devam ser familiares para vários leitores, seja pelos termos clichês sem sentido como “judaico-cristão” – seja lá o que isso signifique, mas tão repetido pela direita brasileira como um mantra – ou por qualquer outro motivo, há algo especialmente interessante na teoria delirante de Bat Ye’or: devido à Guerra do Yom Kippur (outubro de 1973), em retaliação ao apoio dos EUA a Israel, os países árabes da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), liderados pela Arábia Saudita, impuseram um embargo de petróleo às nações ocidentais. O caos foi gigante, visto que os países europeus eram altamente dependentes do petróleo. Para Bat Ye’or, a crise do petróleo de 1973 não foi meramente uma mera crise econômica, mas um ponto de inflexão geopolítico que redefiniu as relações euro-árabes e as políticas internas dos países europeus, com a Europa cedendo à pressão para adotar uma nova orientação política.

Bat Ye'or, l'égérie des nouveaux croisés

Bat Ye’or (pseudônimo de Gisèle Littman) nasceu no Egito e foi profundamente influenciada pela Guerra do Yom Kippur, quando deixou o país.

Nesse sentido e para selar essa nova aliança, foi criado o Diálogo Euro-Árabe (DEA). A autora não o vê como um fórum de cooperação mútua, mas como o principal instrumento para uma fusão política e cultural em que a Europa sistematicamente alinhou seus interesses aos da Liga Árabe, especialmente em detrimento de Israel – que, obviamente, é o centro do universo. Esta aliança geopolítica teria se manifestado internamente através de políticas deliberadas de imigração e de uma forma específica de multiculturalismo. O objetivo, segundo a teoria, era transformar demográfica e culturalmente a Europa para solidificar os laços com o mundo árabe.

Em sua conclusão, Bat Ye’or argumenta que a hostilidade europeia a Israel não é um fenômeno isolado, mas o sintoma mais claro da própria crise de identidade e soberania da Europa. A batalha sobre a legitimidade de Israel é, para ela, uma guerra por procuração sobre o futuro da civilização ocidental. Resumidamente: a Europa está submissa ao Islã enquanto abandona Israel, sendo esse abandono o prelúdio da queda da civilização ocidental. O apoio à Israel, segundo essa teoria tresloucada, é o que diagnosticaria a saúde da Europa. Mas será que as nações europeias e ocidentais no geral realmente abandonaram Israel?

A pergunta acima é puramente retórica. A realidade política, especialmente nos Estados Unidos, demonstra não um abandono, mas uma aliança tão profunda que exige uma submissão ideológica quase absoluta de seus atores políticos. O Ocidente vive, portanto, uma grande ironia: enquanto debate e teme uma “submissão” ficcional e futura ao Islã, pratica no presente uma submissão factual e indiscutível aos imperativos do lobby sionista, em especial sob a figura da AIPAC, onde o desvio da ortodoxia pró-Israel é punido com aniquilação política e financeira e com um “belíssimo” assassinato de reputação. A teoria de Bat Ye’or deixa tudo mais claro e chega até mesmo a soar caricata: para que o Ocidente sobreviva, é necessário apoiar Israel.

O palco mais recente para essa dinâmica foi a corrida pela prefeitura de Nova York. Nela, o candidato democrata Zohran Mamdani, um crítico aberto das políticas de Israel, viu sua posição se tornar um teste decisivo para sua viabilidade em uma eleição local. A questão para os eleitores e para a mídia não era primariamente sua capacidade de gerir a cidade, mas sua recusa em se submeter à agenda sionista, expondo a premissa de que o apoio irrestrito a Israel é um pré-requisito não negociável para ocupar um cargo público nos Estados Unidos. É curioso (e de novo, caricato) ver políticos locais brasileiros agindo de forma semelhante e prestando vassalagem a Israel, como o senhor Rodrigo Manga (prefeito de Sorocaba) e o governador de SP, Tarcísio Nunes. Isso, claro, para não mencionarmos as figuras tenebrosas em Brasília. 

Zohran Mamdani says Israel wouldn't let him visit if he came as New York  mayor | The Times of Israel

Zohran Mamdani nasceu em Uganda, filho de pai indiano-ugandense e mãe indiana-americana.

Voltando aos EUA, essa exigência de submissão foi explicitada de forma contundente pela imprensa. Um editorial do New York Post declarou que a posição de Mamdani o desqualificava sumariamente, não por uma falha de caráter ou incompetência administrativa, mas por sua resposta a uma pergunta sobre o direito de Israel existir. Ao afirmar que Israel tem o direito de existir “como um estado com direitos iguais” para todos os seus cidadãos, em vez de um “estado judeu”, ele falhou no teste de lealdade. A mensagem é clara: a única posição aceitável é a submissão total à definição sionista do Estado, independentemente se na prática há ou não um apartheid ocorrendo em Israel.

Essa pressão não é apenas retórica; ela é esmagadoramente financeira. O caso do congressista Jamaal Bowman, membro do chamado “Squad”, é a prova material. Por ser uma das “vozes mais críticas a Israel”, Bowman enfrentou uma campanha recorde de gastos externos liderada pelo já mencionado Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel (AIPAC), que investiu mais de 14,5 milhões de dólares para garantir sua derrota nas primárias democratas. Este não é um debate político; é uma demonstração de força para impor submissão, essa sim real e concreta.

Conforme matéria do The New York Times, as propagandas financiadas pela AIPAC contra Bowman raramente mencionavam Israel. Em vez disso, a estratégia era pintá-lo como um pária por outros motivos, como um suposto “ataque ao Presidente Biden”. O objetivo é destruir a reputação de um dissidente de forma tão completa que sua crítica a Israel se torne apenas mais um item em uma lista de supostos fracassos. É uma forma de controle que exige submissão ao tornar o custo da dissidência politicamente insustentável.

Contrastando essa realidade com a ficção de Michel Houellebecq, a natureza da “submissão” é fundamentalmente diferente. Em Soumission, a tomada do poder pelo partido islâmico não ocorre por meio de uma conquista violenta ou de uma pressão financeira externa avassaladora. Pelo contrário, ela é o resultado da elite política e intelectual francesa, que se alia aos muçulmanos para impedir a ascensão da extrema-direita de Marine Le Pen. A submissão é um ato voluntário, nascido do vácuo espiritual e da decadência.

O alvo principal de Houellebecq não é o Islã em si, mas a fraqueza da elite ocidental. A submissão em seu romance é um sintoma de uma civilização que já desistiu de si mesma, que busca ordem e propósito, mesmo que ao custo da liberdade.

O próprio Houellebecq admite que seu trabalho se alimenta do medo e se reconhece como “provavelmente islamofóbico”. Seu livro é, portanto, um artefato cultural que simultaneamente explora e amplifica um pavor de uma submissão imaginada, legitimando uma fobia que distrai da realidade política. Ele joga com o medo de uma dominação hipotética, enquanto o sistema político real opera sob as regras de uma dominação já existente: a sionista com seu lobby bilionário que opera através de campanhas multimilionárias e do bullying contra dissidentes intelectuais. Curiosamente, para certos sujeitos na política ocidental, imigrantes pobres apenas com a roupa do corpo representam uma ameaça muito maior para o seu país do que lobbies estrangeiros bilionários escolhendo quem pode ou não se candidatar numa democracia de fachada. 

Aqui reside o paradoxo central. A cultura ocidental é obcecada por uma “submissão” ficcional, um fantasma de dominação islâmica que assombra o debate público e a literatura. No entanto, ela normaliza e ignora uma submissão política e financeira muito real, onde o desvio da linha partidária sionista é recebido com uma fúria capaz de encerrar carreiras e lançar ao ostracismo o menor dos opositores. A liberdade de expressão para criticar o sionismo é infinitamente mais restrita e perigosa no establishment ocidental do que a liberdade para expressar islamofobia, especialmente com a retórica que tenta igualar a crítica ao sionismo e aos crimes do Estado de Israel com o antissemitismo e uma crítica aos judeus e sua religião. É o que vemos, por exemplo, em nosso país com projetos escatológicos de políticos direitistas buscando criminalizar o “antissemitismo”, incluindo na definição a “crítica a Israel” – como proposto recentemente pelo deputado Eduardo Pazuello com base nas definições da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, ou ainda já há mais tempo pelo deputado Pr. Marco Feliciano.

A paranoia não está apenas na França. Cartaz do partido de extrema-direita alemão, AfD, diz: Europeus, votem pelo AfD, para que a Europa jamais se transforme em “Eurábia”!, 2019.

Em última análise, o medo da “submissão” ao Islã funciona como a mais eficaz das cortinas de fumaça. Enquanto o Ocidente se distrai com as distopias de Houellebecq e as teorias de Bat Ye’or, um poder real e tangível molda sua política externa e interna, definindo os limites do discurso aceitável. A verdadeira submissão não é a de um futuro imaginário, mas a de um presente inegável, onde o maior doador de dinheiro é um lobby pró-Israel, provando quem, de fato, dita as regras do jogo.

Referências

A IHRA e a censura que se esgueiram pelas frestas do Estado brasileiro. Disponível em: <https://www.monitordooriente.com/20250607-a-ihra-e-a-censura-que-se-esgueiram-pelas-frestas-do-estado-brasileiro/>. Acesso em: 12 jun. 2025.

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QURESHI, Emran; SELLS, Michael A. The New Crusades: Constructing the Muslim Enemy. Columbia University Press, 2003.

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YE’OR, Bat. The Decline of Eastern Christianity Under Islam: From Jihad to Dhimmitude. Fairleigh Dickinson University Press, 2009.

Zohran Mamdani’s anti-Israel stance disqualifies him AND anyone who supports him. New York post, 5 jun. 2025.

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