Ainda nômades: povos muçulmanos que mantêm a tradição no Mundo Moderno

Facebook
Twitter
WhatsApp

A relação das religiões abraâmicas com as populações nômades é antiga e bem documentada nas Escrituras. Para começo de conversa, o próprio patriarca Abraão (Avraham, Ibrahim) é um nômade que veio da Mesopotâmia e estabelece sua morada na região da Canaã, atual Palestina. Fontes historiográficas e da linguística histórica estabelecem uma relação do nome com o sumério Habiru, que significa atravessar, e que mais tarde daria origem ao verbo abara em árabe, e também ao nome Hebreus, ou seja o povo que atravessa, migra. Essa realidade calca boa parte da tradição poética e da ética presentes nas Escrituras Judaicas e cristãs, quando diz que “O Senhor é meu pastor”, ou quando Salomão (Shlomo; Suleyman) compara os dentes da sua amada a um rebanho de cabras. E Jesus (Isa ibn Maryam), no Novo Testamento, é chamado de o Bom Pastor, ao mesmo tempo que salienta o estado de peregrinação do fiel no mundo. No Islã, esse conceito se manifesta desde o próprio vocábulo hijārah (‘mudar de lugar’, ‘emigrar’), presente no Corão e nos textos dos primeiros estudiosos, indicando não apenas a migração obrigatória pela fé, mas também um aspecto espiritual de jornada contínua.

Essa característica em comum pode ser explicada tanto pela origem semítica dos três grandes monoteísmos, quanto pelas próprias tradições em comum, povos pastoris, que têm nas relações tribais, isto é, no pertencimento a um parentesco maior a sua base social, e nessa complexa relação entre os nômades e as populações sedentárias. No caso do Islã, a península Arábica tem em sua geografia regiões que vão desde as zonas próximas ao mar, que permitem a criação de rebanhos ovinos e caprinos, com o cultivo de algumas lavouras, à regiões desérticas com a presença de oásis nas quais apenas rebanhos de camelos se adaptariam. Ao mesmo tempo, há também uma série de assentamentos estáveis e perenes em torno de oásis, como a Cidade de Meca, no Hijaz. Isso, portanto, cria uma simbiose entre as populações sedentarizadas e nômades que se mantém até o dia de hoje.

Um dos primeiros grupos que aparece, dentro do contexto islâmico, é o dos beduínos (badawī). Ibn Khaldun via os nômades e os povos das montanhas como populações mais próximas da natureza do que os habitantes sedentários dos oásis. Os beduínos pastores de camelos eram o principal exemplo; outros eram berberes, curdos, turcomanos e turcos. Estes eram os seres humanos mais selvagens que existiam, no mesmo nível de animais selvagens e indomáveis. Ao mesmo tempo, eram os mais virtuosos, possuíam a maior fortaleza, bravura e força. Ao contrário das populações sedentárias que viviam no luxo, mantinham um estilo de vida simples e uma pureza de linhagem que se traduzia em um sentimento de grupo que permitia tanto uma liderança eficaz quanto a mobilização. O próprio Profeta Muhammad morou um tempo entre os beduínos e foi nutrido por uma, tendo inclusive uma irmã de leite, como relatado nos Hadith. Essa relação um tanto ambígua pode ser lida como o clássico conflito entre populações sedentarizadas e os povos tradicionais. No entanto, no ethos árabe, essa relação ganha outra proporção, porque ao mesmo tempo que o Beduíno é visto como o homem rude, ele também é o ideal de igualitarismo e de nobreza a que se aspira. Havia também questões práticas, as duas populações precisavam uma da outra, pois se os árabes da cidade forneciam alimentos e produtos, eram os Beduínos os grandes caravaneiros. E em um ambiente árido, esse sistema de trocas não é opcional. Durante a expansão do Califado, tanto dos Rashidun, quanto dos Omíadas, os Beduínos não somente tiveram um papel estratégico na expansão do Islã nas regiões da Síria e do Iraque, pela sua perícia militar, como também foram fundamentais para cimentar uma cultura literária árabe, por meio da Qasidas, tidas como as mais belas. De acordo com a historiadora, Beatrice Forbes Manz: 

Beduínos eram vistos como grandes mestres da fala e, além disso, como moradores do deserto que permaneceram longe das cidades, eles eram a chave para a compreensão da linguagem e dos hábitos antigos, necessários aos comentaristas urbanos, a maioria vivendo fora da Península Arábica. Os maiores centros para a elaboração de estudos beduínos foram as cidades no Iraque — Kufa e, mais especialmente, Basra — que, embora tenham começado como guarnições, logo tiveram uma população mista e uma economia ativa que sustentava uma classe ociosa instruída.

Portanto, essa cultura “migrante”, pode ter não somente servido como fator militar, mas também um fator cultural importantíssimo para o que mais tarde seria a “civilização islâmica”, dando não só uma forte identidade, mas uma adaptabilidade aos diversos povos que mais tarde se islamizariam.

A conquista da Palestina pelo califa Omar, e a posterior mudança da capital do califado de Medina para Damasco, permitiu que os muçulmanos agora estivessem de posses de uma importante rota comercial que interligava o norte da África até o extremo Oriente. Foi nesse contexto que tivemos a islamização de populações nômades do Iraque e Irã. O contexto quase sempre seguia uma receita parecida, as populações locais estabeleciam relações comerciais com as sociedades muçulmanas, a religião ganhava relevância, os governantes se convertiam e as populações nômades também. E a rota da Seda, ao leste, junto com a rota transaariana, ao oeste, foram fundamentais nessa divulgação. Nesse contexto, as populações túrquicas nômades das estepes formam todo um mosaico que vem desde os uighures na China, aos turcos atuais. Um dos primeiros grupos  a se tornarem muçulmanos foram os Qaracânidas. Eles conquistaram os Samanidas (819–999), uma dinastia iraniana que governava a Transoxiana e o Khorasan como vassalos nominais dos califas Abássidas em Bagdá. Ali estabeleceram um canato dominando os oásis e as pastagens que foi até meados do século XII. Essa presença permitiu com que grupos nômades de língua túrquica se estabelecessem no Irã e cuja presença é vista até hoje.

undefined

Acampamento beduíno próximo ao Mar Morto | Edwin Weeks

Um desses grupos é o povo Qashqai, que habita na região de Fars, sudoeste do Irã. É um povo de língua Oghuz, isto é, dos túrquicos que vieram do extremo leste a partir de meados do século XI, e que vive principalmente do pastoreio. O grupo em específico se assentou na região de Fars em uma aliança política e militar com o Xá Ismail contra os portugueses no século XVI. De acordo com Marie-Thérèse Ullens de Schooten:

As migrações anuais dos Kashkai, em busca de pastos frescos, os impelem do sul para o norte, onde se deslocam para seus alojamentos de verão, “Yailaq”, nas altas montanhas; e do norte para o sul, para seus alojamentos de inverno, “Qishlaq”. No verão, os rebanhos Kashkai pastam nas encostas do Kuh-è-Dinar; um grupo de montanhas de 12.000 a 15.000 pés de altitude, que fazem parte da cadeia de Zagros . No outono, os Kashkai levantam acampamento e, gradualmente, deixam as terras altas. Eles passam o inverno nas regiões mais quentes perto de Firuzabad, Kazerun, Jerrè, Farashband, às margens do rio Mound, até que, em abril, reiniciam sua jornada anual.

Outro fator importante é que no século XX, eles assumiram um papel estratégico durante a Primeira Guerra Mundial na defesa do território. Porém, ao longo do último século, o modo de vida deles tem sido prejudicado e muitos têm abandonado o nomadismo. As principais causas são as dificuldades econômicas e os próprios incentivos governamentais para que eles se sedentarizem.

Casal qashqai | Pascal Mannaerts.

Indo ainda mais ao leste, podemos perceber a presença islâmica no sudeste asiático. Especificamente na região das Filipinas, onde a presença de mercadores muçulmanos permitiu um forte crescimento religioso a partir dos séculos XIII e XIV. O ponto alto foi a criação dos Sultanatos de Sulu e de Maguindanao, no século XV, e que estabeleceram forte influência na região. Por ser uma região insular, o estabelecimento de diversos portos criou uma rede de contatos com diversos povos, um deles os Sama-Bajau, conhecidos como ciganos do mar. Esse grupo se dedica especialmente à pesca e vive a sua vida em casas flutuantes ou palafitas, outras atividades envolvem artesanatos de tecidos e de joias de pérolas. Uma curiosidade interessante a respeito deles é que, devido a sua vida marítima, eles passam boa parte de seu dia em mergulhos de mais de 70m, o que lhes conferiu uma mudança genética que lhes permite maior resistência e agilidade nos mergulhos, bem como maior tempo sem respirar. Embora sejam muçulmanos, os Sama Bajau antigamente eram animistas e ainda carregam boa parte dessa carga na sua religiosidade, chamando as entidades do mar de jinn, ou rezando aos antepassados. Esse sincretismo é mais ou menos comum em grupos nômades, onde a tradição se mistura a elementos da ortodoxia.

Mulheres Sama Bajau em trajes tradicionais.

Indo ao oeste, pela rota transaariana, o Islã se expandiu pelo norte da África pela presença de fortes escolas e mesquitas situadas no Egito. A partir daí, diversos mercadores foram descendo até o Magrebe, pelas bacias do Níger e do rio Senegal, onde estabeleceram contatos com as etnias locais, como os Mandinga, os Hauçá e os berberes. Foi no século XIII que se formou naquela região um poderoso reino islâmico, o Império do Mali, cujo maior representante, o Mansa Mūsa Keita, é conhecido como o homem mais rico que já pisou na terra e cuja peregrinação a Meca provocou uma crise deflacionária no mercado do ouro, o que levou a uma inflação dos preços – em português claro, o homem distribuiu tanto ouro, que o preço do metal caiu, e isso elevou o preço dos alimentos em ouro. O reino do Mali, não estabeleceu somente uma entidade política, mas também um importante centro de conhecimento islâmico na cidade de Tumbuktu, cuja mesquita é patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Foi nesse contexto que os Wodaabe, também conhecidos como Bororo, se islamizaram no século XV. Esse grupo nômade é famoso por medir a sua riqueza em cabeças de gado, que não pode ser vendida, e pelo seu concurso de beleza anual, Guérewol, onde as diversas tribos se reúnem para ver os trajes tradicionais e onde se estabelecem casamentos. A principal base alimentar consiste em laticínios e carne de cabra. A ética do grupo é marcada pela modéstia e pela valorização da comunidade, boa parte dessa ética é uma mistura de base islâmica com tradições pré-islâmicas. 

Concurso de beleza dos wodaabe | Tariq Zaidi

A presença de povos nômades dentro do mundo islâmico pode ser explicada tanto pelo seu ethos abraâmico, quanto pela extensão das culturas que abarca. No geral, essas populações seguem um modo mais ou menos popular de Islamismo, com mais ou menos graus de ortodoxia. Essa realidade já era percebida no contexto corânico com as populações beduínas e é facilmente explicada pelas relações internas dos grupos, e a distância com os centros de conhecimento islâmico, o que não impediu que fossem vetores importantes na transmissão do Islã. Em termos religiosos, um símile pode ser o catolicismo popular do Nordeste Brasileiro, com suas misturas indígenas, afro-diaspóricas e catolicismo romano. Por fim, é preciso entender a diversidade dos agrupamentos que se identificam com a fé Islâmica e de como essa fé atende às necessidades éticas, espirituais e morais de cada grupo. Voltamos, portanto, ao primeiro tópico, quem sabe o ethos agro-pastoril das religiões abraâmicas, que tem pastores nômades entre seus santos e profetas e que baseia sua harmonia interna em valores de igualdade, justiça e coletividade seja um fator de identificação. O que não se pode negar é que nenhuma mensagem seria seguida e estudada por 1,4 bilhões de pessoas das mais variadas etnias e modos de vida se não tivesse algo relevante a dizer.

Referências

ALATAS, Alwi; SULEIMAN, Hassan; SAMSUDIN, Sofiah. Nomadic and Sedentary Life in the Time of Prophet Muhammad. Journal of Al-Tamaddun, v. 15, n. 2, p. 57–70, 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Alwi-Alatas/publication/348074036_NOMADIC_AND_SEDENTARY_LIFE_IN_THE_TIME_OF_PROPHET_MUHAMMAD/links/5ff3f269299bf140887024aa/NOMADIC-AND-SEDENTARY-LIFE-IN-THE-TIME-OF-PROPHET-MUHAMMAD.pdf. 

MANZ, Beatrice Forbes. Nomads in the Establishment of the Caliphate. In: MANZ, Beatrice Forbes (Org.). Nomads in the Middle East. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/books/abs/nomads-in-the-middle-east/nomads-in-the-establishment-of-the-caliphate/52B402CD3C09DB9F4024EDB1B4AFB3F9. 

WODAABE. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Wodaabe. 

WODAABE. Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Wodaabe. 

QASHQAI PEOPLE. Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Qashqai_people. 

TORRES, Joan. Qashqai people: Meeting authentic nomads of Iran. Againstthecompass, 25 jul. 2024. Disponível em: https://againstthecompass.com/en/qashqai-people-iranian-nomads/. 

SAMA-BAJAU. Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Sama-Bajau. Acesso em: 31 maio 2025.

RINCON, Paul. Bajau people ’evolved bigger spleens’ for free-diving. BBC News, 19 abr. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/news/science-environment-43823885. 

NIANE, Djibril Tamsir (Org.). História geral da África: África do século XII ao XVI. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. v. IV. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000190252.

OBERLING, Pierre. Qašqāʾi Tribal Confederacy I. In: Encyclopaedia Iranica [online]. New York: Encyclopaedia Iranica Foundation, s.d. Disponível em: https://www.iranicaonline.org/articles/qasqai-tribal-confederacy-i/. 

LEE, Joo-Yup. The Turkic peoples in world history : a concise history [online]. New York : Routledge, Taylor & Francis Group, 2024. 1 online resource. ISBN 9781003256496. Disponível em: https://lccn.loc.gov/2022061849.

ÚLTIMOS ARTIGOS PUBLICADOS